Contextos de um Golpe Anunciado
(Ana Prestes, Desacato.Info/O Lado Oculto, 2019/11/11)
Patricia Arce, presidente do município boliviano de Vinto, seviciada e humilhada nas ruas pelas milícias fascistas de Luis Camacho "El Macho", figura tutelar do golpismo na Bolívia
Década e meia de gestão presidencial de Evo Morales catapultou o PIB da Bolívia de cinco mil milhões de dólares para mais de 40 mil milhões, isto é, multiplicou-o por oito vezes. A miséria extrema desceu a pique de quase 80% da população para menos de 15 por cento. O crescimento económico anual estabilizou nos quatro por cento. O sistema político colonial transformou-se num Estado plurinacional, as mulheres e os povos indígenas conquistaram as vozes que não tiveram em 500 anos. O regime neoliberal globalista ficou fora de jogo na Bolívia, onde os recursos naturais foram postos ao serviço das populações. Há coisas que o imperialismo e a sua casa mãe, os Estados Unidos da América, não conseguem perdoar no “quintal das traseiras”. Mais cinco anos de espera, pelo menos, não podiam acontecer. Então chegou o golpe.
Golpe
A onda de restauração conservadora chegou à Bolívia. Não de forma muito diferente de como se tem manifestado na América Latina desde o Golpe nas Honduras em 2009, mas com uma componente de violência acentuada. Não se trata de um golpe jurídico parlamentar como se deu no Paraguai e no Brasil, tem mais semelhança com a onda de violência e desestabilização que abalou a Nicarágua em 2018 ou com a tentativa de sequestro de Correa no Equador, em 2012, ou ainda com o golpe de 2002 na Venezuela, quando os opositores tomaram meios de comunicação e incendiaram as ruas.
Mas vejamos como chegámos a esta situação em que Evo Morales anunciou a sua renúncia depois de ter saído vitorioso das eleições de 20 de Outubro. Pouco antes da renúncia, anunciara que o Parlamento boliviano renovará os cargos dos juízes do Tribunal Eleitoral, por ter competência para fazê-lo, e novas eleições gerais serão convocadas, anulando-se assim os resultados de 20 de Outubro. Horas antes do anúncio, a Organização dos Estados Americanos (OEA) dera sinal de si reconhecendo os resultados após realização de uma auditoria da contagem dos votos. Absurdo o parecer da organização: “Embora sem fraudes, o processo foi impreciso” Na prática, a OEA, através de Luís Almagro fez seu papel, tal e qual nos outros países golpeados.
Contexto económico
As eleições na Bolívia realizaram-se ao apagar das luzes da segunda década do século XXI. Duas décadas marcadas por muitas transformações na América Latina. Um período em que se viveu o chamado ciclo de governos progressistas iniciado com a eleição de Chávez como presidente da Venezuela, em 1998, e continuou vigoroso até à primeira derrota eleitoral importante, a de Cristina Kirchner na Argentina, em 2015. Nesse meio tempo houve várias tentativas de golpe e pelo menos dois com sucesso para a direita, nas Honduras e no Paraguai. De 2015 para cá a onda de restauração conservadora tomou mais corpo, especialmente com o golpe contra o governo Dilma no Brasil e a eleição de Bolsonaro.
Evo Morales esteve perto de ser eleito pela primeira vez em 2002, quando ficou em segundo lugar nas eleições de modo surpreendente para um país de sucessivos governos oligárquicos. Nas eleições de 2005 venceu com maioria absoluta, tornando-se o primeiro presidente de origem indígena.
Quando Evo assumiu a presidência a Bolívia tinha um PIB de cinco mil milhões de dólares e uma dívida externa de igual valor. Já ao final de 2005 o PIB ficou na casa dos nove mil milhões, trepando para 40 800 milhões em 2018. Os governos dos “terratenientes” que antecederam Evo Morales ocupavam-se a utilizar o Estado para acumular as suas riquezas pessoais e as dos seus. Em 14 anos, o governo Evo multiplicou por oito o PIB do país.
Uma das principais chaves da nova economia foi a mudança na abordagem dos recursos naturais, em especial nos sectores agropecuário, mineiro, energético e dos hidrocarbonetos. Decisiva foi também a profunda nacionalização através da recuperação de empresas estratégicas, além do investimento misto, juntamente com o sector privado, na atividade económica realizada por pequenas, médias e grandes empresas. Em paralelo, os governos Evo refundaram politicamente o país, alterando o perfil de um Estado colonial para um Estado plurinacional, com especial atenção aos movimentos indígenas e de mulheres.
Os resultados não tardaram a aparecer. Um país que tinha 78,2% de pessoas em situação de extrema pobreza, passou a ter menos de 15%, estabilizou num crescimento de 4% ao ano e atingiu um PIB per capita de quatro mil dólares – era de 900 dólares em 2005.
Contexto político
A Bolívia é um país que enfrentou 193 golpes de Estado no período entre Bolívar e Sucre, heróis independentistas em 1825, e 1982. A estabilidade política não é o comum no país, muito pelo contrário. E mais: a instabilidade política foi sempre acompanhada por muita violência. Em 84 governos, 32 estiveram nas mãos de ditadores.
O Palácio de Quemados, sede da presidência e dentro do qual os guardas palacianos se amotinaram contra Evo nos últimos dias, tem esse nome por ter sido incendiado numa revolta popular em 1860. Com Evo e Linera a Bolívia viveu nos últimos 14 anos um dos mais longos períodos de estabilidade política desde a independência, se não o maior. Durante esse período houve um princípio de guerra civil em 2008, tentada pelos mesmos golpistas de hoje, sediados em Santa Cruz, Chuquisaca e Tarija, na época também de El Beni e Pando.
Quem tivesse em conta o cenário de estabilidade política, crescimento económico, extermínio da pobreza e melhoria de outros indicadores socioeconómicos poderia pensar que Evo ganharia agora com facilidade, ou teria mesmo uma vitória arrebatadora. A política, porém, é um cenário de nuvens e quando volta a olhar-se o céu lá vem uma tempestade imprevista. A combinação da reorganização dos sectores oposicionistas, animados com os ventos conservadores que vieram soprar no continente, com a insatisfação de sectores indígenas, por considerarem que Evo se aproximou demais do mercado e do agronegócio, os incêndios florestais pré-eleitorais e a não identificação dos eleitores jovens com o programa do MAS formou um cenário complicado para Evo.
Por isso, a vitória não foi avassaladora e capaz de acabar com todas as manobras logo à primeira volta. A estreita margem dos votos, principalmente do campo e do meio rural, que garantiram os 10% de diferença entre Evo e Mesa foi a componente de tempestade perfeita de que o imperialismo precisava para intervir através da OEA e abrir as portas para o golpe.
O impacto das queimadas.
Um ponto importante do cenário e contexto pré-eleitoral foi o das queimadas florestais que alarmaram a Bolívia, em especial na Chiquitania, no mesmo período em que o Brasil enfrentou os fogos na região da Amazónia. Enquanto no Brasil o governo Bolsonaro fazia vista grossa, estabelecia polémica com Macron e rasgava dinheiro europeu, Evo foi pessoalmente para as áreas das queimadas, montou comité de crise em barracas de campanha, pediu ajuda ao mundo inteiro, revelou tecnologias que poucos conhecíamos ao receber aviões tanque e outros tipos de apoio.
Seria impossível, no entanto, que as queimadas não chamuscassem também a candidatura de Evo e dessem de bandeja argumentos para a oposição alvejar o líder indígena. Foram cinco as mortes resultantes do combate ao fogo, quatro bombeiros e um camponês, quatro milhões de hectares consumidos pelo fogo, sendo 12 áreas protegidas com grande biodiversidade de fauna e flora. Tudo isso justamente em Santa Cruz, sede do golpismo anti-Evo.
As eleições
No dia 20 de Outubro, mais de sete milhões de eleitores estavam aptos a votar, tanto no país como no exterior (341 mil puderam votar fora do país). A votação escolheria um presidente e o seu vice-presidente, 130 deputados e 36 senadores para o mandato de 2020 a 2025. Para vencer e conquistar a presidência na Bolívia um dos candidatos deveria ter mais de 50% dos votos ou no mínimo 40% com uma diferença de 10 pontos percentuais à frente do segundo mais votado. Caso contrário, haveria segunda volta. Os principais adversários de Evo (47,08%) foram Carlos Mesa (Comunidad Ciudadana) com 36,51%, Chi Hyun Chung (Partido Democrata Cristão), com 8,83% e Óscar Ortíz (Bolivia dice No), de Santa Cruz, preferido dos EUA, com apenas 4,26%.
Quatro dias antes da eleição, Evo recebeu uma delegação da OEA na Casa Grande do Povo e logo manifestou via twitter: “damos as boas vindas à delegação de observadores da OEA que acompanham as eleições na Bolívia para verificar a transparência e legalidade do processo eleitoral”. A OEA enviou 92 observadores para as eleições bolivianas, sendo que parte desses se deslocou para acompanhar as votações em São Paulo, Buenos Aires e Washington. Apesar da receptividade em relação à OEA, que sabemos bem ao serviço de quem anda “observando” os governos latino-americanos, a bandeira branca de Evo não funcionou muito e a violência instalou-se já nos dias prévios às eleições. O encerramento da campanha do MAS em Santa Cruz foi um exemplo do que estava por vir.
Passado o domingo 20, enquanto ainda se fechava o escrutínio, urnas foram queimados nos escritórios do Tribunal Eleitoral Departamental de Potosí e juízes eleitorais foram agredidos em Tarija, Chuquisaca, Oruro e La Paz. Foi derrubada uma estátua de Hugo Chávez em Riberalta e outros actos de vandalismo espalharam-se pelo país. Os actos violentos tinham um conteúdo racista bastante particular da Bolívia, além de um cariz profundamente antidemocrático.
Enquanto isso, sabe-se que funcionários do Departamento de Estado dos EUA que estão na Bolívia, Mariane Scott e Rolf Olson, mantiveram reuniões com diplomatas do Brasil, Argentina, Paraguai, Colômbia, Espanha, Equador, Reino Unido e Chile para coordenar um não reconhecimento dos resultados eleitorais. A OEA impôs uma auditoria e concluiu que “embora sem fraudes, o processo foi impreciso”; tradução: não reconhecemos a vitória de Evo.
A partir daí ficámos todos a conhecer o filme. O cenário do golpe estava montado: violência nas ruas, não reconhecimento do processo eleitoral por parte dos países da região, raposa instalada dentro do galinheiro - a OEA. Só faltavam alguns elementos essenciais para a efectivação do golpe: forças de segurança e meios de comunicação. E foi justamente o que vimos nos últimos dias através dos motins de forças policiais e tomada de rádios e TV’s à força pelos golpistas. O papel dos militares ainda está por esclarecer, mas sabe-se que Evo Morales decidiu não colocar o Exército nas ruas para não incrementar a violência e dar mais argumentos aos golpistas.
O golpe
No dia 10 de Novembro, domingo, Evo fez um pronunciamento que a uns soou a coragem e a outros a rendição. Veremos o que a vida mostrará nos próximos tempos. Declarou a renúncia, anunciou aceitar o resultado da auditoria da OEA e a convocação de novas eleições. Além de sua anuência para que o Parlamento troque os juízes do Tribunal Superior Eleitoral. Resta saber se as novas eleições terão entre os concorrentes Evo Morales, o presidente que tirou a Bolívia da situação de eterna colónia e deu ao seu povo dignidade e oportunidade de desenvolvimento nunca vistos no país. Evo apostou na paz, resta saber se isso basta para interromper a guerra. De qualquer modo, ele conta com a solidariedade dos povos de todo um continente que sabem o gigante que ele é.
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