2019/11/05

A Água Privatizada é da Nestlé

Privatização das Águas: As Manobras na Suiça
(Franklin Frederick, Jornal GGN/O Lado Oculto, 2019/11/05)

A cada vez maior interpenetração entre o governo da Suíça, a Nestlé e outras grandes multinacionais e a estratégia helvética de cooperação para o desenvolvimento representam uma ameaça cada vez mais premente sobre os recursos aquíferos de todo o planeta. A ganância privatizadora da água que move as maiores empresas globais do sector alimentar encontra em Genebra uma poderosa alavanca que mina o acesso universal à água como um direito humano fundamental.



Em Fevereiro deste ano o governo da Suíça anunciou a criação de uma Fundação em Genebra com o nome de “Geneva Science and Diplomacy Anticipator” (GSDA). O objectivo desta nova fundação é o de regulamentar novas tecnologias, desde drones e carros automáticos à engenharia genética, os exemplos mencionados pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da Suíça, Ignazio Cassis, na ocasião do lançamento público desta iniciativa. Segundo Cassis, as novas tecnologias estão a desenvolver-se muito rapidamente e esta Fundação deve “ antecipar” as consequências destes avanços para a sociedade e para a política. A Fundação será também uma ponte entre as comunidades científicas e diplomáticas, daí sua colocação estratégica em Genebra, que abriga várias organizações internacionais, desde a ONU até a Organização Mundial do Comércio. O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Suíça contribuirá com três millhões de francos suíços – 2,72 milhões de euros – para a fase inicial da Fundação de 2019 até 2022. A cidade e o cantão de Genebra contribuirão cada um com 300 mil francos suíços para o mesmo período e esperam-se contribuições do sector privado.

O longo braço da Nestlé

Como presidente desta nova fundação foi escolhido o ex-CEO da Nestlé Peter Brabeck-Letmathe e como vice-presidente o ex-presidente do Instituto Federal de Tecnologia de Lausanne – EPFL (sigla em francês) – Patrick Aebischer, desde 2015 também membro da Comissão Directiva do Nestlé Health Science, fundado em 2011 pela Nestlé e localizado justamente no campus da EPFL. A escolha de Peter Brabeck e de Patrick Aebischer – ambos com notória ligação à Nestlé – para dirigir esta nova fundação tem razões muito claras. Representa primeiramente o reconhecimento do poder da Nestlé dentro do governo da Suíça – um ex-CEO da Nestlé é, por definição, competente para dirigir esta iniciativa. Mais preocupante porém, a escolha de Peter Brabeck é mais um exemplo da “parceria” cada vez mais estreita entre governos e grandes companhias transnacionais, levando ao estabelecimento de uma oligarquia corporativa internacional que vem paulatinamente tomando o poder real dentro das democracias ocidentais. Como CEO da Nestlé, Peter Brabeck passou a maior parte da sua carreira lutando contra toda a forma de regulamentação estatal do sector privado; o caso mais conhecido foi a acção contra a regulamentação das normas de marketing dos produtos alimentares infantis, principalmente o leite em pó. O conflito entre a Nestlé, sob a direção de Peter Brabeck, e o IBFAN – International Baby Food Action Network (Rede Internacional para a Amamentação Infantil) – é célebre. Mas a ironia maior – e o maior perigo – é que a escolha de Brabeck para presidir a esta fundação indica que o objectivo real desta iniciativa é justamente impedir qualquer forma de regulamentação pelo poder público que possa impor qualquer limite aos lucros procedentes dos avanços tecnológicos do sector privado. Não é de se esperar também que esta fundação venha a defender qualquer protecção da esfera pública ou do meio ambiente face às possíveis ameaças colocadas à sociedade pelos novos avanços tecnológicos; muito pelo contrário, a escolha de Brabeck indica que esta fundação tem como objectivo prioritário a defesa e a promoção do sector privado. O que pode esperar-se desta fundação são propostas de auto-regulamentação pelo sector privado no caso de conflitos demasiado explícitos, ou seja, nada de efectivo. E como esta Fundação é uma iniciativa do governo da Suíça – certamente depois de conversas com o sector privado – e está localizada em Genebra, ela já dispõe, desde o início, de uma enorme influência e creio que os movimentos sociais organizados devem seguir atentamente os passos futuros desta fundação, pois esta encarna uma enorme ameaça à democracia.

E apenas alguns meses depois do lançamento desta nova fundação, o governo da Suíça anunciou que Christian Frutiger, actual “Global Head of Public Affairs” da Nestlé (Director Global de Negócios Públicos) vai assumir, dentro de pouco tempo, a vice-presidência da Agência Suíça para o Desenvolvimento e a Cooperação – Swiss Development and Cooperation (SDC em inglês, DEZA na sigla em alemão) - ou seja, a agência do governo da Suíça responsável por projectos de ajuda ao desenvolvimento noutros países. Mais um exemplo da crescente colaboração entre o sector privado e o poder público, mas desta vez numa área muito mais sensível, a da cooperação para o desenvolvimento. E mais um exemplo também da influência e presença cada vez maior da transnacional Nestlé dentro do governo da Suíça.

Recurso à espionagem

Esta presença não é nova nem recente. É importante lembrar, por exemplo, que o SDC não só apoiou a criação do Water Resources Group – WRG – a iniciativa da Nestlé, da Coca-cola e da Pepsi para privatizar a água, como o próprio Director do SDC é membro do Conselho Directivo do WRG. A contradição entre o facto de a Suíça possuir um dos melhores serviços públicos de saneamento e distribuição de água no mundo mas utilizar o dinheiro dos impostos dos cidadãos suíços para apoiar a privatização da água noutros países, através da parceria do SDC com a Nestlé, não parece ser um problema. O orçamento para a cooperação internacional da Suíça para o período 2017-2020 é de cerca de 6635 milhões de francos – um pouco mais de seis mil milhões de euros. Como vice-director, Christian Frutiger terá bastante influência sobre as decisões relativas à aplicação de parte destes recursos. Ainda mais importante: como vice-director, Frutiger será responsável directo pela Divisão de “Cooperação Global” do SDC e pelo programa ÁGUA. Christian Frutiger iniciou sua carreira na Nestlé em 2007, como “Public Affairs Manager” – Gestor de Negócios Públicos – depois de ter trabalhado na Cruz Vermelha Internacional. Em 2006 a marca de água engarrafada da Nestlé “Pure Life” tornou-se a sua marca mais lucrativa e em 2007, com a compra do grupo Sources Minérales Henniez SA, a Nestlé tornou-se a empresa líder em água engarrafada dentro do mercado suíço. E em 2008, apenas uma década depois de seu lançamento, “Pure Life” tornou-se a mais vendida marca de água engarrafada em todo o mundo. Dentro deste contexto, era natural que o trabalho de Christian Frutiger na Nestlé se concentrasse, desde o início, no tema ÁGUA. E em 2008 rebentou na Suíça o escândalo da espionagem da Nestlé. Um jornalista da TV da Suiça francófona denunciou num programa que a Nestlé contratou a empresa de segurança SECURITAS para infiltrar espiões no interior dos grupos críticos à Nestlé dentro da Suíça, sobretudo na organização ATTAC. A espionagem comprovada ocorreu entre os anos de 2002 e 2003, mas há evidências de espionagem até ao ano 2006. A ATTAC abriu um processo contra a Nestlé e contra a empresa SECURITAS e em 2013, finalmente, a justiça da Suíça condenou a Nestlé por ter organizado esta operação de espionagem, indicando o envolvimento de pelo menos quatro directores da empresa na operação. Durante este período, Christian Frutiger teve um papel fundamental e muito bem sucedido em minimizar o impacto da operação de espionagem na imagem da Nestlé na Suíça, o que certamente contribuiu para a sua promoção à posição que ocupa hoje. O facto de a Nestlé ter organizado uma operação ilegal de espionagem dentro da Suíça, e de ter sido condenada pela justiça deste país por causa disso, não teve qualquer efeito nas relações da empresa com o governo suíço e sobretudo com a Agência de Cooperação para o Desenvolvimento, como seria de esperar. Ninguém perguntou ao então CEO da Nestlé, Peter Brabeckc, que se a sua empresa é capaz de tais acções dentro da própria Suíça, o que poderemos esperar então do comportamento da mesma empresa noutros países com garantias democráticas mais frágeis? Espiar cidadãos na Suíça, utilizando para este fim a infiltração de agentes disfarçados e sob nome falso é, no mínimo, de uma enorme falta de ética.

Fúria privatizadora da água

Mas parece que a ética não foi um dos critérios que o SDC levou em conta ao contratar Christian Frutiger que, em todo este episódio, manteve o silêncio, jamais se desculpou perante as pessoas espiadas pela empresa para a qual trabalhava e ainda fez tudo para minimizar o impacto do problema, ou seja, pactuou com a falta de ética de seu empregador. Mas a contratação de Frutiger como vice-diretor do SDC aponta para problemas muito mais profundos e abrangentes, sobretudo no que se refere ao tema ÁGUA, pois parece claro que a sua escolha para esta posição tem tudo a ver com isso. A indicação de Peter Brabeck para presidir à nova fundação do governo da Suíça em Genebra e a de Christian Frutiger como vice-presidente da Agência de Cooperação para o Desenvolvimento da Suíça revelam uma articulação entre o sector privado e o governo suíço no sentido de aprofundar as políticas de privatização – sobretudo da água – e o controlo das corporações sobre as políticas públicas. Mas esta articulação vai além do governo da Suíça, ela vai dar-se, sobretudo, ao nível das agências e organismos internacionais presentes em Genebra, pois Christian Frutiger será responsável pelo diálogo com muitas dessas organizações. O que estas novas funções de Peter Brabeck e de Christian Frutiger indicam também é que o sector corporativo transnacional está a organizar-se e a articular-se muito conscientemente ao nível dos governos para assegurar que suas necessidades e propostas políticas sejam atendidas.

Não deve esperar-se muita reacção das principais ONG’s da Suíça diante de tudo isto, principalmente pelo facto de o SDC ser o principal financiador de quase todas elas, o que explica o silêncio profundo em torno da Nestlé e das suas acções dentro da Suíça. Um exemplo recente deste silêncio ocorreu no Brasil, por ocasião do Fórum Mundial da Água realizado em Brasília, em Março de 2018. Como este Fórum é, na realidade, o Fórum das grandes empresas privadas, a Nestlé e o WRG estavam presentes, dentro do pavilhão oficial da Suíça, junto com organizações como HELVETAS, HEKS/EPER e Caritas Suíça, três das maiores agências de desenvolvimento privadas da Suíça - e todas apoiadas pelo SDC. A HEKS/EPER – das siglas em alemão e francês respectivamente – está ligada à Igreja Protestante da Suíça, como a Caritas Suíça está ligada à Igreja Católica. Durante o Fórum, 600 mulheres do Movimento Sem Terra ocuparam por algumas horas as instalações da Nestlé em São Lourenço, Minas Gerais, para chamar a atenção para os problemas causados pela empresa e pelo indústria engarrafadora de água em geral. Nenhuma destas organizações da Suíça manifestou qualquer solidariedade com o MST, nenhuma condenou as práticas da Nestlé, nenhuma sequer mencionou, no seu regresso à Suíça, que esta ocupação tinha acontecido. Mas HEKS/EPER e Caritas Suiça afirmam lutar pelo direito humano à água e “apoiam” os movimentos sociais – mas não quando estes se colocam contra a Nestlé. Em São Lourenço, na região do Circuito das Águas em Minas Gerais, e em muitos outros lugares no Brasil, há problemas com a exploração de água pela Nestlé e com movimentos de cidadãos que tentam proteger as suas águas. HEKS/ EPER tem um escritório no Brasil, mas jamais se aproximou dos grupos que, no Brasil, lutam contra a Nestlé.

Estados cúmplices

O SDC tampouco considera os problemas com a Nestlé em diversas partes do mundo – não apenas no Brasil – como uma razão para reavaliar a sua parceria com a empresa. Há problemas muito bem documentados com os engarrafamentos e os bombeamentos de água da Nestlé nos Estados Unidos, no Canadá e em França, por exemplo, países considerados democracias estabelecidas. O que há de comum entre todos eles é que os governos se colocam, sempre, a favor da empresa e contra os seus próprios cidadãos. Na cidade de Vittel, em França, a situação é absurda: estudos realizados por órgãos do governo francês indicam que o aquífero de onde a população de Vittel retira sua água e de onde a Nestlé também recolhe a água engarrafada como “VITTEL” encontra-se em risco de esgotamento. Não há condições de o aquífero suportar, a longo prazo, as necessidades da população local e da empresa de engarrafamento da Nestlé. Solução proposta pelas autoridades francesas: construir uma tubulação – pipeline – de cerca de 50 quilómetros para buscar a água numa região vizinha à de Vittel para atender às necessidades da população – deixando à Nestlé à exploração das águas do aquífero!!!

No condado de Wellington, Canadá, constituiu-se um grupo local – o Wellington Water Watchers – para proteger as suas águas da exploração da Nestlé, que conta com o apoio do governo local para renovar sua permissão de continuar engarrafando água. Em Michigan, nos Estados Unidos, o problema é semelhante. Nada disso parece incomodar o governo da Suíça, o SDC ou Christian Frutiger – e se tais problemas ocorrem nestes países, o que não poderá acontecer em países bem mais frágeis na sua organização social e política?

No momento em que preparei este texto a Europa sofria uma intensa onda de calor. Havia racionamento de água na França, riscos de incêndio em vários locais. Grandes cidades como Paris sofriam com recordes de temperaturas nunca registados antes e o consumo de água aumentava. Por outro lado, os gelos derretem-se cada vez mais e a água torna-se cada vez mais escassa. As fontes de águas subterrâneas, muitas das quais fósseis, são uma importante reserva para o futuro e deveriam permanecer intocadas. Mas a ganância leva as empresas engarrafadoras como a Nestlé a adquirirem cada vez mais fontes de água. O quadro é o mesmo em todo o planeta – as poucas águas ainda não poluídas encontram-se cada vez mais nas mãos de poucas empresas. No Brasil do governo Bolsonaro a situação é ainda mais grave, com um ministro do meio ambiente cuja tarefa é facilitar a tomada dos recursos naturais brasileiros pelo capital estrangeiro. É importante lembrar que o principal accionista do grupo AMBEV é o cidadão suíço-brasileiro Jorge Paulo Lemann, que certamente dispõe de excelentes canais de comunicação com o governo da Suíça. E a AMBEV também faz parte do WRG que, aliás, já abriu o seu primeiro escritório no Brasil para apoiar a privatização da SABESP.

O que está a acontecer na Suíça é apenas a ponta do iceberg, a parte visível da articulação internacional das grandes corporações e a tomada do espaço público de decisões políticas pela oligarquia corporativa mundial. Temos de ficar atentos e de nos organizarmos para defender as nossas águas, a nossa Terra e a nossa sociedade.

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