(Francisco Seixas da Costa, CNN Portugal, 2022/02/22)
Não tendo uma natural vocação masoquista, dei comigo a pensar, no final da tarde de segunda-feira, por que razão, por quase uma hora, me entretive tanto a ouvir, numa muito profissional interpretação simultânea (num site russo, em espanhol), a integralidade da comunicação que Vladimir Putin fez ao país e ao mundo.
Muito daquele arrazoado tinha um tom algo críptico, historicamente justificativo, num registo e adjetivação que ressoavam muito a ontens “que cantaram”, em outro tempo e em outro modo. E, no entanto, não desliguei um segundo e fiquei (não direi “religiosamente”, mas atentamente) até ao fim.
Quando concluí o exercício, lamentei não ter tomado mais notas, mas voltar atrás e rever a narrativa seria um exercício excessivo. Mas não dei por mal empregue o meu tempo.
O Vladimir Putin que descobri nessa hora de audição é um homem de outra era. Ao ouvir os seus lamentos, o seu orgulho ferido por um mundo que tem humilhado o seu, como que entendi melhor o que tem sido o percurso histórico de uma certa Rússia contemporânea que se acha enganada pelo ocidente - em especial, que se considera abusada na sua fragilidade conjuntural. E que, à evidência, não se resigna. Putin não é uma figura deste tempo, concluí. Ou melhor, a Rússia contemporânea que ele representa decorre de uma linha profunda de continuidade que, embora já presumida por alguns, está muito mais enraizada do eu julgava possível. A Rússia imperial vive em Putin bastante mais do que em caricatura: é um guia para a ação da atual nação russa.
O discurso de Putin estabelece uma espécie de hierarquia de valores nacionais, na qual a Rússia tem um papel central e historicamente incomparável com o artificialismo de outras entidades estatais, cuja representação à escala internacional ele considera não dever iludir esse seu estatuto menor.
A Ucrânia, neste contexto, é um acaso de decisões históricas erradas, tomadas no seio de uma Rússia em anteriores estádios de convulsão. Por isso, na perspetiva de Putin, não pode aspirar a ser vista como uma nação com todos os atributos de dignidade, passível de um reconhecimento por Moscovo.
A tudo isto, Putin soma a leitura de a Ucrânia se ter transformado no joguete de um mundo, tutelado pelos Estados Unidos, onde subsistirá o desígnio deliberado, que já vem da Guerra Fria, de manter a Rússia sob uma pressão que evite a recuperação da sua grandeza histórica. Na linguagem do líder russo, a América é uma entidade internacional celerada, que sobredetermina o comportamento de todos os seus aliados e que objetiva na Ucrânia contemporânea todos os vícios e todos os males, com o único e não assumido objetivo de atingir a Rússia. Por isso, esta Ucrânia, não apenas não tem uma legitimidade que lhe permita afirmar-se como nação como ela própria se converteu, através da cumplicidade com os inimigos da Rússia, num perigo para a própria essência nacional que Moscovo representa.
Quando Putin dá por adquirido que é necessário reconhecer as “Repúblicas Populares” de Luhansk e Donetsk, não está, naturalmente, a atribuir uma dignidade nacional a essas entidades que, “de facto”, já se assumiam como tal desde 2014.
Trata-se apenas, como é óbvio, de utilizar o estratagema de afirmação internacional dessas duas entidades russas como o meio, mais “à mão”, para limitar os danos que a evolução da Ucrânia contemporânea está a provocar à Rússia. Mas, visivelmente, esse é um passo que, sendo necessário, fica muito aquém de ser suficiente para travar o imenso perigo que se desenha para a Rússia, através do poder infiltrado em Kiev, na leitura de Putin.
É este acossamento - a expressão só pode ser esta - da Rússia que Putin pretende sacudir com as suas ações atuais, utilizando, de caminho, a completa subalternidade da Bielorrússia - ficando agora muito clara, se o não fosse já à evidência, a razão pela qual Moscovo nunca teve a menor tentação de apelar à democratização do respetivo regime.
Perante o ocidente - isto é, os Estados Unidos à frente do resto - Putin assume a atitude de querer fazer um “reset” da História. O que é mais estranho, ao configurar um desespero cuja resultante alternativa só pode acabar numa tragédia mundial, é que não parece encarar outro cenário que não seja a reversão completa dos equilíbrios saídos da Guerra Fria - repito, tendo em conta a leitura que faz de que a Rússia foi iludida ao não ter sido cumprido o “trade-off” político que esteve subjacente a esse tempo - o que até pode ter alguns laivos de verdade, mas que já é irreversível.
Ora Putin sabe que não existe o menor cenário em que os países a seu ocidente prescindam da posição que hoje detêm, por opções que foram sendo tomadas, independentemente das razões que Moscovo até possa ter.
Mais do que isso: Putin deve saber que, ao dizer o que disse, carreou para esse debate uma atitude russa que só pode levar a uma muito maior rigidificação de posições por parte de quem pressentiu o crescendo da ameaça.
A saída para tudo isto não é evidente, mas não há razões para cultivar o menor otimismo.
A Final Four na Ucrânia – A Europa apanha bolas
(Carlos Matos Gomes, Opinião, 2022/02/22)
Hoje o pensamento é um subproduto do futebol. O futebolês é uma linguagem que pode servir para um tratado de filosofia. Aderindo então aos ventos do momento:
A “final four” é um torneio em que quatro equipas disputam uma classificação. Uma versão da final four apura os três primeiros e o quarto desce de divisão. O que se está a passar com a crise da Ucrânia é uma final four em que os dirigentes da União Europeia já decidiu que fica em quarto lugar e deixa de participar nos jogos ao mais alto nível nas próximas temporadas. Junta-se à India, ao Brasil, à Austrália.
O que está em jogo na Ucrânia é decisivo para a União Europeia. Escrever e debater o papel da União Europeia neste confronto entre a Rússia e os Estados Unidos, tendo a China a observar, é decisivo em dois pontos: o político e económico (que papel para a União Europeia no Mundo?); e, principalmente, quanto à questão melindrosa e por isso raramente aflorada do conflito de civilizações. Dirão alguns que se fala demais da Ucrânia, que a questão é da maldade intrínseca de Putin — e saem insultos, que são a negação do pensamento e a revelação da falta de argumentos: czar, filho de Estaline, soviético, facínora — e resmas de folhas de História para garantir que os russos veem aí, filhos dos comunistas sanguinários.
Na realidade:
A primeira questão que a Ucrânia coloca à UE é que o conflito assenta numa luta entre duas das três potências de primeira grandeza, no caso os Estados Unidos e Rússia, com 3 vetores por parte dos EUA: (1) manutenção do dólar como moeda de troca internacional (a UE é o maior parceiro da Rússia e o segundo dos Estados Unidos); (2) o domínio militar em terra, no mar e no espaço (a Europa não tem poderio militar significativo em nenhum destes espaços); (3) por fim a questão energética (em particular o gás, de que a Rússia é um grande produtor e o coloca na Europa a 1/3 do preço do gás americano). E um vetor por parte da Rússia: A fronteira Leste dos Estados Unidos não pode ser a Ucrânia, ou, de outro modo, a Ucrânia não pode ser o santuário de atacantes da Rússia, o local das bases de ataque ao seu território (Durante a guerra colonial Portugal conheceu essa situação com as bases de guerrilheiros no Congo, na Zâmbia, na Tanzânia, no Senegal, em Conacri)!
O alinhamento da União Europeia pelos objetivos estratégicos dos Estados Unidos coloca a União Europeia na situação factual de Estado vassalo. A Rússia, os seus dirigentes fazem essa leitura, que é de meridiana clareza. Os cidadãos europeus têm visto os seus dirigentes decidirem ser vassalos. A Rússia entende-os como tal e tirou a conclusão lógica: as suas fronteiras a Ocidente são com os Estados Unidos e por isso tratam de criar uma zona de segurança na Ucrânia!
É isto que os europeus querem? Os europeus estão dispostos a ser o front dos Estados Unidos, ou a pagar para a Ucrânia ser uma base de ataque dos Estados Unidos à Rússia?
A segunda questão que a Ucrânia coloca à União Europeia é, porventura, ainda mais cítica do que a da servidão política, económica e estratégica, é uma questão civilizacional.
A civilização (entendida como um conjunto essencial de valores perenes e de formas de ver o mundo, de partilha de passados e de regulação das sociedades) dita ocidental tem uma matriz cristã. A grande ameaça a esta civilização vem das civilizações ditas islâmicas, que não separaram o religioso do governo terreno. Os eslavos, os russos, têm a mesma matriz cristã de toda a Europa, gostem ou não os incendiários ideológicos. A Rússia não começou com a revolução de 1917, os russos não são uma espécie nova sobre a Terra, os seus dirigentes leram os mesmos livros que todos os outros, da Bíblia ao Príncipe de Maquiavel.
Mais, os russos, por razões de dimensão territorial da Rússia e diversidade étnica dos seus habitantes conhecem bem os problemas e os perigos das políticas integracionistas e multiculturalistas, o que a Europa Ocidental, por sentimentos de culpa colonial, tolerou e desenvolveu com os resultados conhecidos do radicalismo islâmico. O radicalismo islâmico não foi uma criação russa, foi uma criação americana. Mas os europeus escolheram ser os amigos servis dos americanos e eleger os russos como inimigo, agora ainda com mais vigor do que na guerra fria!
Perguntava Putin numa reportagem: Porque nos considera a Europa seus inimigos?
De facto: As vagas de migrantes do Médio Oriente, milhões, iraquianos, afegãos, sírios, palestinianos que obrigam a União Europeia a pagar à Turquia e à Grécia e a levaram a sofrer atentados no seu território não foram originadas pela Rússia, mas pelas invasões dos Estados Unidos. A Europa nunca cobrou sanções aos Estados Unidos por estas invasões, nem pelos mortos nos atentados em Paris, em Bruxelas, em Madrid, em Nice e tantos outros locais, mas tem os Estados Unidos como amigos e como senhores!
Também não foi a Rússia que criou a Al Qaeda (foram os Estados Unidos, crismando-os de combatentes da liberdade! (Reagan), nem o ISIS (no Kosovo), nem quem entregou o Afeganistão aos talibans, até os combateu…mas os Estados Unidos são os amigos!
São questões de facto, mas o nó da questão não é da bondade e maldade intrínseca do senhor Biden ou do senhor Putin, é de exercício de um poder e de defesa de interesses. E a União Europeia colocou-se de fora desse jogo. Serve de apanha bolas.
Por fim, a análise do presente não pode partir do princípio da repetição dos acontecimentos e das decisões históricas. Os atuais dirigentes da Rússia analisam a situação e definem os seus objetivos de acordo com as circunstâncias do presente. Os dirigentes dos Estados Unidos comportam-se do mesmo modo. A Europa serve bebidas, como as de Durão Barroso, Aznar e Blair nos Açores a Bush filho. Visionários!
Infelizmente (em minha opinião) os dirigentes da União Europeia colocaram-se de fora e abdicaram de jogar a final four.
O confronto entre a Rússia e os Estados Unidos no palco da Ucrânia é (era) decisivo para os europeus e os europeus deviam ser chamados a pronunciarem-se sobre o papel da União Europeia no mundo. Seria democrático, até porque não parece à vista desarmada que o senhor Charles Michel, do Conselho Europeu, a senhora Ursula von der Leyen, da Comissão Europeia, a senhora Lagarde do BCE e o senhor Jens Stoltenberg da NATO sejam um quarteto de dirigentes que a União Europeia necessita neste momento, ou que representem os cidadãos europeus. Os extremismos populistas nascem e medram neste caldo cozinhado por sabujos e nesta ausência de democracia.
(Carlos Matos Gomes, Opinião, 2022/02/22)
Hoje o pensamento é um subproduto do futebol. O futebolês é uma linguagem que pode servir para um tratado de filosofia. Aderindo então aos ventos do momento:
A “final four” é um torneio em que quatro equipas disputam uma classificação. Uma versão da final four apura os três primeiros e o quarto desce de divisão. O que se está a passar com a crise da Ucrânia é uma final four em que os dirigentes da União Europeia já decidiu que fica em quarto lugar e deixa de participar nos jogos ao mais alto nível nas próximas temporadas. Junta-se à India, ao Brasil, à Austrália.
O que está em jogo na Ucrânia é decisivo para a União Europeia. Escrever e debater o papel da União Europeia neste confronto entre a Rússia e os Estados Unidos, tendo a China a observar, é decisivo em dois pontos: o político e económico (que papel para a União Europeia no Mundo?); e, principalmente, quanto à questão melindrosa e por isso raramente aflorada do conflito de civilizações. Dirão alguns que se fala demais da Ucrânia, que a questão é da maldade intrínseca de Putin — e saem insultos, que são a negação do pensamento e a revelação da falta de argumentos: czar, filho de Estaline, soviético, facínora — e resmas de folhas de História para garantir que os russos veem aí, filhos dos comunistas sanguinários.
Na realidade:
A primeira questão que a Ucrânia coloca à UE é que o conflito assenta numa luta entre duas das três potências de primeira grandeza, no caso os Estados Unidos e Rússia, com 3 vetores por parte dos EUA: (1) manutenção do dólar como moeda de troca internacional (a UE é o maior parceiro da Rússia e o segundo dos Estados Unidos); (2) o domínio militar em terra, no mar e no espaço (a Europa não tem poderio militar significativo em nenhum destes espaços); (3) por fim a questão energética (em particular o gás, de que a Rússia é um grande produtor e o coloca na Europa a 1/3 do preço do gás americano). E um vetor por parte da Rússia: A fronteira Leste dos Estados Unidos não pode ser a Ucrânia, ou, de outro modo, a Ucrânia não pode ser o santuário de atacantes da Rússia, o local das bases de ataque ao seu território (Durante a guerra colonial Portugal conheceu essa situação com as bases de guerrilheiros no Congo, na Zâmbia, na Tanzânia, no Senegal, em Conacri)!
O alinhamento da União Europeia pelos objetivos estratégicos dos Estados Unidos coloca a União Europeia na situação factual de Estado vassalo. A Rússia, os seus dirigentes fazem essa leitura, que é de meridiana clareza. Os cidadãos europeus têm visto os seus dirigentes decidirem ser vassalos. A Rússia entende-os como tal e tirou a conclusão lógica: as suas fronteiras a Ocidente são com os Estados Unidos e por isso tratam de criar uma zona de segurança na Ucrânia!
É isto que os europeus querem? Os europeus estão dispostos a ser o front dos Estados Unidos, ou a pagar para a Ucrânia ser uma base de ataque dos Estados Unidos à Rússia?
A segunda questão que a Ucrânia coloca à União Europeia é, porventura, ainda mais cítica do que a da servidão política, económica e estratégica, é uma questão civilizacional.
A civilização (entendida como um conjunto essencial de valores perenes e de formas de ver o mundo, de partilha de passados e de regulação das sociedades) dita ocidental tem uma matriz cristã. A grande ameaça a esta civilização vem das civilizações ditas islâmicas, que não separaram o religioso do governo terreno. Os eslavos, os russos, têm a mesma matriz cristã de toda a Europa, gostem ou não os incendiários ideológicos. A Rússia não começou com a revolução de 1917, os russos não são uma espécie nova sobre a Terra, os seus dirigentes leram os mesmos livros que todos os outros, da Bíblia ao Príncipe de Maquiavel.
Mais, os russos, por razões de dimensão territorial da Rússia e diversidade étnica dos seus habitantes conhecem bem os problemas e os perigos das políticas integracionistas e multiculturalistas, o que a Europa Ocidental, por sentimentos de culpa colonial, tolerou e desenvolveu com os resultados conhecidos do radicalismo islâmico. O radicalismo islâmico não foi uma criação russa, foi uma criação americana. Mas os europeus escolheram ser os amigos servis dos americanos e eleger os russos como inimigo, agora ainda com mais vigor do que na guerra fria!
Perguntava Putin numa reportagem: Porque nos considera a Europa seus inimigos?
De facto: As vagas de migrantes do Médio Oriente, milhões, iraquianos, afegãos, sírios, palestinianos que obrigam a União Europeia a pagar à Turquia e à Grécia e a levaram a sofrer atentados no seu território não foram originadas pela Rússia, mas pelas invasões dos Estados Unidos. A Europa nunca cobrou sanções aos Estados Unidos por estas invasões, nem pelos mortos nos atentados em Paris, em Bruxelas, em Madrid, em Nice e tantos outros locais, mas tem os Estados Unidos como amigos e como senhores!
Também não foi a Rússia que criou a Al Qaeda (foram os Estados Unidos, crismando-os de combatentes da liberdade! (Reagan), nem o ISIS (no Kosovo), nem quem entregou o Afeganistão aos talibans, até os combateu…mas os Estados Unidos são os amigos!
São questões de facto, mas o nó da questão não é da bondade e maldade intrínseca do senhor Biden ou do senhor Putin, é de exercício de um poder e de defesa de interesses. E a União Europeia colocou-se de fora desse jogo. Serve de apanha bolas.
Por fim, a análise do presente não pode partir do princípio da repetição dos acontecimentos e das decisões históricas. Os atuais dirigentes da Rússia analisam a situação e definem os seus objetivos de acordo com as circunstâncias do presente. Os dirigentes dos Estados Unidos comportam-se do mesmo modo. A Europa serve bebidas, como as de Durão Barroso, Aznar e Blair nos Açores a Bush filho. Visionários!
Infelizmente (em minha opinião) os dirigentes da União Europeia colocaram-se de fora e abdicaram de jogar a final four.
O confronto entre a Rússia e os Estados Unidos no palco da Ucrânia é (era) decisivo para os europeus e os europeus deviam ser chamados a pronunciarem-se sobre o papel da União Europeia no mundo. Seria democrático, até porque não parece à vista desarmada que o senhor Charles Michel, do Conselho Europeu, a senhora Ursula von der Leyen, da Comissão Europeia, a senhora Lagarde do BCE e o senhor Jens Stoltenberg da NATO sejam um quarteto de dirigentes que a União Europeia necessita neste momento, ou que representem os cidadãos europeus. Os extremismos populistas nascem e medram neste caldo cozinhado por sabujos e nesta ausência de democracia.
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