2022/02/23

Sobre o Confronto Rússia vs. EUA

Não sei quem ganhará, mas sei que nós, os pacifistas bem intencionados já somos os principais derrotados. As duas panorâmicas que aqui recolhi não auguram nada de bom para os próximos tempos e ambos os autores têm leituras muito lúcidas da realidade, um sobre o que Putin esteve a explicar durante uma hora e outro sobre a indiscritivel passividade da União Europeia face aos vários desmandos que os EUA lhe têm imposto. Vejamos primeiro que disse Putin.

Não Sejamos Otimistas
(Francisco Seixas da Costa, CNN Portugal, 2022/02/22)

Não tendo uma natural vocação masoquista, dei comigo a pensar, no final da tarde de segunda-feira, por que razão, por quase uma hora, me entretive tanto a ouvir, numa muito profissional interpretação simultânea (num site russo, em espanhol), a integralidade da comunicação que Vladimir Putin fez ao país e ao mundo.

Muito daquele arrazoado tinha um tom algo críptico, historicamente justificativo, num registo e adjetivação que ressoavam muito a ontens “que cantaram”, em outro tempo e em outro modo. E, no entanto, não desliguei um segundo e fiquei (não direi “religiosamente”, mas atentamente) até ao fim.

Quando concluí o exercício, lamentei não ter tomado mais notas, mas voltar atrás e rever a narrativa seria um exercício excessivo. Mas não dei por mal empregue o meu tempo.

O Vladimir Putin que descobri nessa hora de audição é um homem de outra era. Ao ouvir os seus lamentos, o seu orgulho ferido por um mundo que tem humilhado o seu, como que entendi melhor o que tem sido o percurso histórico de uma certa Rússia contemporânea que se acha enganada pelo ocidente - em especial, que se considera abusada na sua fragilidade conjuntural. E que, à evidência, não se resigna. Putin não é uma figura deste tempo, concluí. Ou melhor, a Rússia contemporânea que ele representa decorre de uma linha profunda de continuidade que, embora já presumida por alguns, está muito mais enraizada do eu julgava possível. A Rússia imperial vive em Putin bastante mais do que em caricatura: é um guia para a ação da atual nação russa.

O discurso de Putin estabelece uma espécie de hierarquia de valores nacionais, na qual a Rússia tem um papel central e historicamente incomparável com o artificialismo de outras entidades estatais, cuja representação à escala internacional ele considera não dever iludir esse seu estatuto menor.

A Ucrânia, neste contexto, é um acaso de decisões históricas erradas, tomadas no seio de uma Rússia em anteriores estádios de convulsão. Por isso, na perspetiva de Putin, não pode aspirar a ser vista como uma nação com todos os atributos de dignidade, passível de um reconhecimento por Moscovo.

A tudo isto, Putin soma a leitura de a Ucrânia se ter transformado no joguete de um mundo, tutelado pelos Estados Unidos, onde subsistirá o desígnio deliberado, que já vem da Guerra Fria, de manter a Rússia sob uma pressão que evite a recuperação da sua grandeza histórica. Na linguagem do líder russo, a América é uma entidade internacional celerada, que sobredetermina o comportamento de todos os seus aliados e que objetiva na Ucrânia contemporânea todos os vícios e todos os males, com o único e não assumido objetivo de atingir a Rússia. Por isso, esta Ucrânia, não apenas não tem uma legitimidade que lhe permita afirmar-se como nação como ela própria se converteu, através da cumplicidade com os inimigos da Rússia, num perigo para a própria essência nacional que Moscovo representa.

Quando Putin dá por adquirido que é necessário reconhecer as “Repúblicas Populares” de Luhansk e Donetsk, não está, naturalmente, a atribuir uma dignidade nacional a essas entidades que, “de facto”, já se assumiam como tal desde 2014.

Trata-se apenas, como é óbvio, de utilizar o estratagema de afirmação internacional dessas duas entidades russas como o meio, mais “à mão”, para limitar os danos que a evolução da Ucrânia contemporânea está a provocar à Rússia. Mas, visivelmente, esse é um passo que, sendo necessário, fica muito aquém de ser suficiente para travar o imenso perigo que se desenha para a Rússia, através do poder infiltrado em Kiev, na leitura de Putin.

É este acossamento - a expressão só pode ser esta - da Rússia que Putin pretende sacudir com as suas ações atuais, utilizando, de caminho, a completa subalternidade da Bielorrússia - ficando agora muito clara, se o não fosse já à evidência, a razão pela qual Moscovo nunca teve a menor tentação de apelar à democratização do respetivo regime.

Perante o ocidente - isto é, os Estados Unidos à frente do resto - Putin assume a atitude de querer fazer um “reset” da História. O que é mais estranho, ao configurar um desespero cuja resultante alternativa só pode acabar numa tragédia mundial, é que não parece encarar outro cenário que não seja a reversão completa dos equilíbrios saídos da Guerra Fria - repito, tendo em conta a leitura que faz de que a Rússia foi iludida ao não ter sido cumprido o “trade-off” político que esteve subjacente a esse tempo - o que até pode ter alguns laivos de verdade, mas que já é irreversível.

Ora Putin sabe que não existe o menor cenário em que os países a seu ocidente prescindam da posição que hoje detêm, por opções que foram sendo tomadas, independentemente das razões que Moscovo até possa ter.

Mais do que isso: Putin deve saber que, ao dizer o que disse, carreou para esse debate uma atitude russa que só pode levar a uma muito maior rigidificação de posições por parte de quem pressentiu o crescendo da ameaça.

A saída para tudo isto não é evidente, mas não há razões para cultivar o menor otimismo.


A Final Four na Ucrânia – A Europa apanha bolas
(Carlos Matos Gomes, Opinião, 2022/02/22)

Hoje o pensamento é um subproduto do futebol. O futebolês é uma linguagem que pode servir para um tratado de filosofia. Aderindo então aos ventos do momento:
A “final four” é um torneio em que quatro equipas disputam uma classificação. Uma versão da final four apura os três primeiros e o quarto desce de divisão. O que se está a passar com a crise da Ucrânia é uma final four em que os dirigentes da União Europeia já decidiu que fica em quarto lugar e deixa de participar nos jogos ao mais alto nível nas próximas temporadas. Junta-se à India, ao Brasil, à Austrália.

O que está em jogo na Ucrânia é decisivo para a União Europeia. Escrever e debater o papel da União Europeia neste confronto entre a Rússia e os Estados Unidos, tendo a China a observar, é decisivo em dois pontos: o político e económico (que papel para a União Europeia no Mundo?); e, principalmente, quanto à questão melindrosa e por isso raramente aflorada do conflito de civilizações. Dirão alguns que se fala demais da Ucrânia, que a questão é da maldade intrínseca de Putin — e saem insultos, que são a negação do pensamento e a revelação da falta de argumentos: czar, filho de Estaline, soviético, facínora — e resmas de folhas de História para garantir que os russos veem aí, filhos dos comunistas sanguinários.

Na realidade:
A primeira questão que a Ucrânia coloca à UE é que o conflito assenta numa luta entre duas das três potências de primeira grandeza, no caso os Estados Unidos e Rússia, com 3 vetores por parte dos EUA: (1) manutenção do dólar como moeda de troca internacional (a UE é o maior parceiro da Rússia e o segundo dos Estados Unidos); (2) o domínio militar em terra, no mar e no espaço (a Europa não tem poderio militar significativo em nenhum destes espaços); (3) por fim a questão energética (em particular o gás, de que a Rússia é um grande produtor e o coloca na Europa a 1/3 do preço do gás americano). E um vetor por parte da Rússia: A fronteira Leste dos Estados Unidos não pode ser a Ucrânia, ou, de outro modo, a Ucrânia não pode ser o santuário de atacantes da Rússia, o local das bases de ataque ao seu território (Durante a guerra colonial Portugal conheceu essa situação com as bases de guerrilheiros no Congo, na Zâmbia, na Tanzânia, no Senegal, em Conacri)!

O alinhamento da União Europeia pelos objetivos estratégicos dos Estados Unidos coloca a União Europeia na situação factual de Estado vassalo. A Rússia, os seus dirigentes fazem essa leitura, que é de meridiana clareza. Os cidadãos europeus têm visto os seus dirigentes decidirem ser vassalos. A Rússia entende-os como tal e tirou a conclusão lógica: as suas fronteiras a Ocidente são com os Estados Unidos e por isso tratam de criar uma zona de segurança na Ucrânia!

É isto que os europeus querem? Os europeus estão dispostos a ser o front dos Estados Unidos, ou a pagar para a Ucrânia ser uma base de ataque dos Estados Unidos à Rússia?

A segunda questão que a Ucrânia coloca à União Europeia é, porventura, ainda mais cítica do que a da servidão política, económica e estratégica, é uma questão civilizacional.

A civilização (entendida como um conjunto essencial de valores perenes e de formas de ver o mundo, de partilha de passados e de regulação das sociedades) dita ocidental tem uma matriz cristã. A grande ameaça a esta civilização vem das civilizações ditas islâmicas, que não separaram o religioso do governo terreno. Os eslavos, os russos, têm a mesma matriz cristã de toda a Europa, gostem ou não os incendiários ideológicos. A Rússia não começou com a revolução de 1917, os russos não são uma espécie nova sobre a Terra, os seus dirigentes leram os mesmos livros que todos os outros, da Bíblia ao Príncipe de Maquiavel.

Mais, os russos, por razões de dimensão territorial da Rússia e diversidade étnica dos seus habitantes conhecem bem os problemas e os perigos das políticas integracionistas e multiculturalistas, o que a Europa Ocidental, por sentimentos de culpa colonial, tolerou e desenvolveu com os resultados conhecidos do radicalismo islâmico. O radicalismo islâmico não foi uma criação russa, foi uma criação americana. Mas os europeus escolheram ser os amigos servis dos americanos e eleger os russos como inimigo, agora ainda com mais vigor do que na guerra fria!

Perguntava Putin numa reportagem: Porque nos considera a Europa seus inimigos?

De facto: As vagas de migrantes do Médio Oriente, milhões, iraquianos, afegãos, sírios, palestinianos que obrigam a União Europeia a pagar à Turquia e à Grécia e a levaram a sofrer atentados no seu território não foram originadas pela Rússia, mas pelas invasões dos Estados Unidos. A Europa nunca cobrou sanções aos Estados Unidos por estas invasões, nem pelos mortos nos atentados em Paris, em Bruxelas, em Madrid, em Nice e tantos outros locais, mas tem os Estados Unidos como amigos e como senhores!

Também não foi a Rússia que criou a Al Qaeda (foram os Estados Unidos, crismando-os de combatentes da liberdade! (Reagan), nem o ISIS (no Kosovo), nem quem entregou o Afeganistão aos talibans, até os combateu…mas os Estados Unidos são os amigos!

São questões de facto, mas o nó da questão não é da bondade e maldade intrínseca do senhor Biden ou do senhor Putin, é de exercício de um poder e de defesa de interesses. E a União Europeia colocou-se de fora desse jogo. Serve de apanha bolas.

Por fim, a análise do presente não pode partir do princípio da repetição dos acontecimentos e das decisões históricas. Os atuais dirigentes da Rússia analisam a situação e definem os seus objetivos de acordo com as circunstâncias do presente. Os dirigentes dos Estados Unidos comportam-se do mesmo modo. A Europa serve bebidas, como as de Durão Barroso, Aznar e Blair nos Açores a Bush filho. Visionários!

Infelizmente (em minha opinião) os dirigentes da União Europeia colocaram-se de fora e abdicaram de jogar a final four.

O confronto entre a Rússia e os Estados Unidos no palco da Ucrânia é (era) decisivo para os europeus e os europeus deviam ser chamados a pronunciarem-se sobre o papel da União Europeia no mundo. Seria democrático, até porque não parece à vista desarmada que o senhor Charles Michel, do Conselho Europeu, a senhora Ursula von der Leyen, da Comissão Europeia, a senhora Lagarde do BCE e o senhor Jens Stoltenberg da NATO sejam um quarteto de dirigentes que a União Europeia necessita neste momento, ou que representem os cidadãos europeus. Os extremismos populistas nascem e medram neste caldo cozinhado por sabujos e nesta ausência de democracia.

Sem comentários:

Enviar um comentário

O seu comentário ficará disponível após verificação. Tentaremos ser breves.