E sim, de facto gosto mais do Daniel escrito do que do Daniel falado.
Citizen Mercer
(Daniel Oliveira in Expresso, 2018/03/24)
Há muito tempo que o nosso rasto nas redes sociais é abusivamente utilizado para nos manipularem. Enquanto serviu o comércio estava tudo bem. Só quando governos começaram a cair porque, em vez de roupa e jogos, o Facebook nos vendeu partidos e candidatos, os políticos acordaram. E anunciam-se impostos, regulações, multas. Robert Mercer, o milionário que fez fortuna em fundos de investimento altamente especulativos e investiu na Cambridge Analytica, é a besta negra do momento. Mercer foi mecenas de Stephen Bannon, que colocou na Casa Branca, e financiou Ted Cruz, primeiro, e Donald Trump, depois. O informático libertário representa na perfeição o casamento entre as novas tecnologias e o poder financeiro. Está nos antípodas da retórica dos movimentos de direita que resistem à globalização. Porque anda metido com a Liga italiana e Trump, o ‘Brexit’ e a Rússia? O objetivo não é seguramente impor governos protecionistas. Além de ganhar dinheiro, o mais provável é que queira ajudar a criar o caos, enfraquecendo a democracia e o Estado. Na tradição do liberalismo radical, pessoas como Mercer desconfiam do sufrágio universal, que dá ao povo o direito de eleger quem lhes vai cobrar impostos e limitar o poder. Nada têm contra o sistema, que está nas suas mãos, ou contra a globalização, de que são um motor essencial. O seu problema é mesmo com a democracia.
Lembram-se quando os cidadãos tinham acesso a informação livre e independente e era com base nela que votavam? É natural que não se lembrem, porque isso nunca aconteceu. Nem num passado muito distante, como tão bem ilustra “Citizen Kane”, filme inspirado na vida do magnata da imprensa William Randolph Hearst.
Se ao poder global da finança correspondem os gigantes do mundo digital, aos grandes grupos industriais correspondiam grandes conglomerados de comunicação social. A manipulação política através da rede é sucessora da manipulação política através da imprensa e da televisão. Entre Hearst, Murdoch e Mercer mudou a tecnologia e a forma de fazer fortuna e de usar as duas, tecnologia e fortuna, para manipular o povo. Mas não mudou o essencial: o dinheiro continua a comprar a gestão da informação para impedir que os cidadãos elejam quem melhor sirva os seus interesses.
Claro que a mudança na tecnologia não é neutra. Já não o foi quando a televisão sucedeu à imprensa. As redes sociais não são apenas uma fonte de informação. Quem controlar os seus nós controla mais do que o conteúdo da informação. Controla o nosso lugar na comunidade e no mundo. Porque as redes sociais são um dos mais poderosos instrumentos de socialização da atualidade. De tal forma eficaz que houve quem se convencesse que era em redes geridas por multinacionais que podia estar o futuro da cidadania. Agora, se quiserem mudar alguma coisa, terão de redescobrir o único espaço que não tem proprietários: a rua. É sem o filtro confortável dos nossos computadores que teremos de exigir que os Estados nos defendam dos colossos digitais como nunca nos defenderam dos colossos financeiros. Veremos se desta vez temos mais sorte. A boa notícia é que Zuckerberg já pediu desculpas. A má notícia é que não é dos governos que tem medo. Nem de nós, que estamos presos às redes porque perdemos todos os outros lugares onde comunicávamos. É só a bolsa que ele teme. É o poder que sobra. E esse, como sabemos, não é a nós que responde.
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