2022/09/18

Entretanto no sul global ...

O “Espirito Samarcanda” será guiado pelas “potências responsáveis” Rússia e China
(Pepe Escobar, 2022/09/16)


Entre sérios terramotos no mundo da geopolítica, foi extremamente apropriado que a cúpula dos Chefes de Estado da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) deste ano tivesse lugar em Samarcanda – o último cruzamento da Rota da Seda em 2.500 anos.

Quando, em 329 AC, Alexandre o Grande chegou à então cidade sogdiana de Marakanda, parte do império Aqueménida, ficou atónito: “Tudo o que eu ouvi sobre Samarcanda é verdade, exceto que é ainda mais bonita do que eu tinha imaginado”.

Registan, em Samarcanda, ao cair da tarde. 


Saltando rapidamente para o artigo de opinião do presidente uzbeq, Shavkat Mirziyoyev, publicado antes da cúpula da SCO, onde enfatiza como Samarcanda agora “se pode tornar numa plataforma capaz de unir e reconciliar estados com diferentes prioridades da política externa”.

Afinal, historicamente, do ponto de vista da Rota da Seda, o mundo sempre foi “percebido como uno e indivisível, não dividido”. Esta é a essência de um fenómeno único – o “Espírito Samarcanda”.

E aqui Mirziyoyev liga o “Espírito de Samarcanda” ao original “Espírito de Xangai” da SCO, estabelecido no início de 2001, alguns meses antes dos eventos de 11 de setembro, quando o mundo foi forçado a envolver-se em lutas e guerras sem fim, quase da noite para o dia.

Todos estes anos, a cultura da SCO tem evoluído de uma forma distinvamente chinesa. Inicialmente, os Cinco de Xangai focaram-se no combate ao terrorismo – meses antes da guerra de terror dos EUA (itálico meu) se espalhasse do Afeganistão ao Iraque e mais além.

Ao longo dos anos, os iniciais “três sem” iniciais – sem alianças, sem confrontos, sem a mira em terceiros – acabaram equipando um veículo rápido e híbrido cujas “quatro rodas” são “a política, a segurança, a economia e a humanidade”, completadas com uma Iniciativa de Desenvolvimento Global, todas elas contrastando fortemente com as prioridades de um ocidente hegemonista e confrontativo.

O maior destaque da cúpula da Samarcanda desta semana é que o presidente chinês Xi Jinping apresentou a China e a Rússia, juntas, como “potências globais responsáveis” empenhadas em garantir a emergência da multipolaridade, e recusando a “ordem” arbitrária imposta pelos Estados Unidos e a sua visão unipolar do mundo.

O Ministro das Relações Exteriores russo Sergey Lavrov resumiu a conversa bilateral de Xi com o Presidente Vladimir Putin como “excelente”. Xi Jinping, antes de sua reunião, e dirigindo-se diretamente a Putin, já havia enfatizado os objetivos comuns Rússia-China:

“Diante das mudanças colossais, à escala global, do nosso tempo, sem precedentes na história, estamos prontos, com nossos colegas russos, para dar o exemplo de uma potência mundial responsável e desempenhar um papel de liderança para colocar um mundo em tão rápida mudança na trajetória do desenvolvimento sustentável e positivo”.


Mais tarde, no preâmbulo da reunião dos chefes de estado, Xi foi direto ao ponto: é importante “evitar tentativas de forças externas de organizar ‘revoluções coloridas’ nos países da SCO”. Bem, a Europa seria incapaz de dizer tal coisa porque tem sido continua e coloridamente revolucionada desde 1945.

Putin, por sua vez, enviou uma mensagem que vai soar por todo o Sul Global: “Transformações fundamentais foram delineadas na política e economia mundial, e são irreversíveis“. (itálico meu)

Irão: "Its show time"

O Irã foi a estrela convidada do espetáculo em Samarcanda, oficialmente abraçado como o 9º membro da SCO. O Presidente Ebrahim Raisi enfatizou, significativamente, antes de se encontrar com Putin que “o Irã não reconhece sanções contra a Rússia”. A parceria estratégica deles será reforçada. Na frente dos negócios, uma forte delegação composta por líderes de 80 grandes empresas russas estará de visita a Teerã na próxima semana.

A crescente interpolação Rússia-China-Irã – os três principais motores da integração Euroasiática – assusta os suspeitos do costume, que podem estar a começar a entender como a SCO representa, a longo prazo, um sério desafio para a seu jogo geoeconómico. Assim, como todo grão de areia no deserto da Heartland já está ciente, a pressão geopolítica contra o trio vai aumentar exponencialmente.

E depois houve o mega-crucial encontro trilateral em Samarcanda: Rússia-China-Mongólia. Não houve fugas oficiais, mas este trio discutiu, sem dúvida, o gasoduto Power of Siberia 2 – a interligação a ser construída através da Mongólia; e o papel reforçado da Mongólia num corredor de ligação crucial da Iniciativa de Cintrurão e Estrada [Belt and Road Initiative (BRI) – nota do tradutor], agora que a China não está usando a rota Trans-Siberiana para exportações para a Europa por causa de sanções.

Putin informou Xi sobre todos os aspectos da Operação Militar Especial da Rússia [Special military operation (SMO) – nota do tradutor] na Ucrânia e, sem dúvida, respondeu a algumas perguntas realmente difíceis, muitas delas circulando loucamente há meses nas redes chinesas.

O que nos leva à coletiva de imprensa de Putin no final da cúpula – com praticamente todas as perguntas girando previsivelmente em torno do teatro militar na Ucrânia.

A informação chave vinda do presidente russo: “Não há mudanças no plano do SMO. As principais tarefas estão a ser implementadas”. Sobre as perspectivas de paz, é a Ucrânia que “não está pronta para falar com a Rússia”. E em geral, “é lamentável que o Ocidente tenha tido a ideia de usar a Ucrânia para tentar derrubar a Rússia”.

Sobre a novela dos fertilizantes, Putin comentou, “fornecimento de alimentos, fornecimento de energia, eles (o oeste) criaram esses problemas, e agora estão tentando resolvê-los à custa de outros” – referindo-se às nações mais pobres. “Os países europeus são antigas potências coloniais e ainda têm este paradigma da filosofia colonial”. Chegou a hora de mudar esse comportamento, de se tornarem mais civilizados”.

Sobre o seu encontro com Xi Jinping: “Foi apenas uma reunião regular, já faz algum tempo que não tínhamos uma reunião cara a cara”. Os lideres falaram sobre como “expandir o volume de negócios das trocas comerciais” e contornar as “guerras comerciais causadas pelos nossos chamados parceiros”, com a “expansão das trocas em moedas nacionais não progredindo tão rápido quanto desejariamos”.

Reforçando a multipolaridade

O encontro bilateral de Putin com o Primeiro Ministro indiano Narendra Modi não poderia ter sido mais cordial – com um registro de “amizade muito especial” – com Modi a reclamar soluções sérias para as crises de alimentos e combustíveis, dirigindo-se realmente ao Ocidente. Enquanto isso, o Banco Estatal da Índia vai abrir contas especiais em rupias para lidar com o comércio russo.

Esta é a primeira viagem de Xi ao exterior desde a pandemia de Covid-19. Ele pôde fazer isso porque está totalmente confiante em ser premiado com um terceiro mandato durante o Congresso do Partido Comunista no próximo mês em Pequim. Xi controla agora e/ou tem aliados colocados em pelo menos 90 por cento do Politburo.

A outra razão séria foi para recarregar o apelo da BRI em estreita parceria com a SCO. O ambicioso projeto BRI da China foi oficialmente lançado por Xi em Astana (agora Nur-Sultan) há nove anos. Ele permanecerá como o conceito global da política externa chinesa por décadas.

A ênfase do BRI no comércio e na conectividade está ligada à evolução dos mecanismos de cooperação multilateral da SCO, congregando nações focadas no desenvolvimento económico independente da “ordem baseada em regras” hegemonistas e nebulosas. Até mesmo a Índia sob Modi está tendo uma outra ideia sobre confiar nos blocos ocidentais, para quem Nova Deli é, na melhor das hipóteses, um “parceiro” neo-colonizado.

Então Xi e Putin, em Samarcanda, para todos os fins práticos, delinearam um roteiro para fortalecer a multipolaridade – como enfatizado pela declaração final de Samarcanda assinada por todos os membros da SCO.

O quebra-cabeça cazaque

Haverá muitos solavancos na estrada. Não foi por acaso que Xi começou a sua viagem no Cazaquistão – a retaguarda ocidental mega-estratégica da China, compartilhando uma fronteira muito longa com Xinjiang. A fronteira triangular no porto seco de Khorgos – para caminhões, ônibus e trens, separadamente – é algo muito importante, um nó absolutamente chave do BRI.

A administração do Presidente Kassym-Jomart Tokayev em Nur-Sultan (que em breve será novamente renomeado Astana) é bastante complicada, oscilando entre as orientações políticas orientais e ocidentais, e infiltrada pelos americanos tanto quanto durante a era do antecessor Nursultan Nazarbayev, o primeiro presidente pós-URSS do Cazaquistão.

No início deste mês, por exemplo, Nur-Sultan, em parceria com Ankara e a British Petroleum (BP) – que praticamente governa o Azerbaijão – concordou em aumentar o volume de petróleo no oleoduto Baku-Tblisi-Ceyhan (BTC) para até 4 milhões de toneladas por mês até o final deste ano. Chevron e ExxonMobil, muito ativos no Cazaquistão, são parte do acordo.

A agenda declarada dos suspeitos habituais é “finalmente desligar as economias dos países da Ásia Central da economia russa”. Como o Cazaquistão é membro não apenas da União Econômica da Eurásia (EAEU) liderada pela Rússia, mas também do BRI, é justo assumir que Xi – assim como Putin – discutiu algumas questões bastante sérias com Tokayev, e provavelmente disse-lhe para compreender de onde sopram os ventos aconselhando-o a manter a situação política interna sob controle (vide o golpe abortado em janeiro, quando Tokayev foi de fato salvo pela Organização do Tratado de Segurança Coletiva [CSTO] liderada pela Rússia).

Não há dúvida de que a Ásia Central, historicamente conhecida como uma “caixa de pedras preciosas” no centro do Heartland, passando pelas Antigas Estradas da Seda e abençoada com uma imensa riqueza natural – combustíveis fósseis, metais de terras raras, terras agrícolas férteis – será usada pelos suspeitos habituais como uma caixa de Pandora, libertando todo tipo de truques tóxicos contra a legítima integração eurasiática.

Isso está em nítido contraste com a Ásia Ocidental, onde o Irão agora na SCO irá turbinar o seu papel-chave de conectividade entre a Eurásia e a África, em conexão com o BRI e o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC).

Portanto, não é de admirar que os EAU, Bahrein e Kuwait, todos na Ásia Ocidental, reconheçam os ventos de mudança. Os três estados do Golfo Pérsico receberam o status oficial de “parceiro” da SCO em Samarcanda, ao lado das Maldivas e de Myanmar.

Uma coesão de objetivos

Samarcanda também deu um impulso extra à integração ao longo da Parceria da Grande Eurásia – que inclui a União Económica Euroasiática (EAEU) – e isto, apenas duas semanas após o Fórum Económico Oriental (EEF), realizado em Vladivostok, na costa estratégica da Rússia no Pacífico.

A prioridade de Moscovo na EAEU é implementar uma federação com a Bielorussia (que parece condenada a ser um novo membro da SCO antes de 2024), lado a lado com uma integração mais estreita com o BRI. A Sérvia, Singapura e Irão também têm acordos comerciais com a EAEU.

A Parceria da Grande Eurásia foi proposta por Putin em 2015 – e tem-se tornado mais afiada à medida que a comissão da EAEU, liderada por Sergey Glazyev, projeta ativamente um novo sistema financeiro, baseado no ouro e em recursos naturais, contra-atacando o sistema de Bretton Woods. Uma vez que a nova estrutura esteja pronta para ser testada, o principal disseminador provavelmente será o SCO.

Portanto, aqui vemos em jogo a coesão total dos objetivos – e os mecanismos de interação – implementados pela Parceria da Grande Eurásia, BRI, EAEU, SCO, BRICS+ e o INSTC. É uma luta titânica para unir todas essas organizações e levar em conta as prioridades geoeconómicas de cada membro e parceiro associado, mas é exatamente isso que está a acontecer, e a uma velocidade vertiginosa.

Nesta festa da conectividade, os imperativos práticos vão desde a luta contra engarrafamentos locais até à criação de complexos corredores multiusuários – do Cáucaso à Ásia Central, do Irã à Índia, tudo discutido em múltiplas mesas redondas.

Os sucessos já são notáveis: da Rússia e Irão introduzindo acordos diretos em rublos e riais, à Rússia e China aumentando o seu comércio de rublos e yuan para 20% – e em crescendo. Uma Bolsa de Mercadorias do Leste poderá ser estabelecida brevemente em Vladivostok para facilitar o comércio de futuros e derivados com a Ásia-Pacífico.

A China é o credor/investidor principal indiscutível em infraestrutura em toda a Ásia Central. As prioridades de Pequim podem ser importar gás do Turcomenistão e Uzbequistão e petróleo do Cazaquistão, mas a conectividade não está muito distante.

A construção da ferrovia Paquistão-Afeganistão-Uzbequistão (Pakafuz) de US$ 5 biliões, com 600 km de extensão, vai entregar carga da Ásia Central no Oceano Índico em apenas três dias, ao contrário dos atuais 30. E essa ferrovia estará ligada ao Cazaquistão e à já em andamento ferrovia de 4.380 km de comprimento construída na China, de Lanzhou a Tashkent, um projeto do BRI.

Nur-Sultan também está interessada numa ferrovia Turquemenistão-Irão-Turquia, que ligaria o seu porto de Aktau no Mar Cáspio com o Golfo Pérsico e o Mar Mediterrâneo.

A Turquia, por sua vez, ainda é um observador da SCO e está constantemente a fazer as suas apostas, lenta, mas seguramente, tentando avançar estrategicamente a sua própria Pax Turquica, do desenvolvimento tecnológico à cooperação em defesa, tudo isso sob uma espécie de pacote de segurança político-económica. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan discutiu isso em Samarcanda com Putin, já que este último anunciou mais tarde que 25% do gás russo comprado por Ancara será pago em rublos.

Bem-vindo ao Great Game 2.0

A Rússia, ainda mais do que a China, sabe que os suspeitos do costume estão indo à falência. Somente em 2022, houve um golpe abortado no Cazaquistão em janeiro; problemas em Badakhshan, no Tajiquistão, em maio; problemas em Karakalpakstan, no Uzbequistão, em junho; os contínuos confrontos na fronteira entre o Tajiquistão e o Quirguistão (ambos os presidentes, em Samarcanda, pelo menos concordaram num cessar-fogo e em retirar as tropas das suas fronteiras).

E depois há o Afeganistão recentemente libertado – com nada menos que 11 províncias cruzadas pelo ISIS-Khorasan e seus associados tajiques e uzbeques. Milhares de aspirantes a jihadis da Heartland fizeram a viagem a Idlib na Síria e depois voltaram para o Afeganistão – “encorajados” pelos suspeitos do costume, que usarão todos os truques sob o sol para assediar e “isolar” a Rússia da Ásia Central.

Portanto, a Rússia e a China devem estar prontas para se envolver num jogo imensamente complexo, o Great Game 2.0 em esteroides, com os EUA/NATO lutando unidos pela Eurásia e a Turquia no meio.

Numa nota mais brilhante, Samarcanda provou que existe pelo menos consenso, entre todos os jogadores das diferentes organizações institucionais em que: a soberania tecnológica irá determinar a soberania; e que a regionalização – neste caso, a Eurásia – está destinada a substituir a globalização governada pelos EUA.

Estes atores também entendem que a era Mackinder e Spykman está a chegar ao fim – essa era em que a Eurásia estava “contida” numa forma semi-desmontada para que as potências marítimas ocidentais pudessem exercer total domínio, contrariando os interesses nacionais dos atores do Sul Global.

Agora joga-se a bola de forma completamente diferente. Tanto quanto a Parceria da Grande Eurásia é totalmente apoiada pela China, ambas favorecem a interconexão dos projetos BRI e EAEU, enquanto a SCO forma um ambiente comum.

Sim, este é o projeto civilizacional eurasiático para o século XXI e além. Sob a égide do “Espírito Samarcanda”.

Fontes:
Versão em português do brasil: Comunidad Saker Latinoamérica
O “Espirito Samarcanda” será guiado pelas “potências responsáveis” Rússia e China
Versão em inglês:
The Cradle
‘Samarkand Spirit’ to be driven by ‘responsible powers’ Russia and China

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