A censura já é uma realidade e, actualmente, está a ser massivamente exercida na vertente da distribuição da informação, mais do que na sua produção.
A censura é actualmente executada de duas formas, limitando a distribuição de narrativas que possam desmontar a "verdade única" criada pelas "a"gências de "i"informação "c"entralizada e inundando as televisões e o ciberespaço com essa mesma "verdade única", assim diluindo, e por isso censurando, eventuais afloramentos das factuais narrativas que possam contradizer a "verdade única" autorizada com a chancela das ocidentais "a"gências de "i"informação "c"entralizada.
Nas sociedades capitalistas actuais todos somos livres de presenciar factos e de os narrar no circulo mais ou menos restrito da família, dos amigos e dos conhecidos. A barreira coloca-se quando tentamos expor essa informação às ilhas de cidadãos potencialmente interessados mas estranhos ao nosso circulo restrito de contactos directos. É nesse momento, quando tentamos "distribuir" narrativas que ponham em causa a "verdade única", que se erguem as barreiras censórias das redes sociais e dos motores de busca, todos eles submetidos a "contratos" de funcionamento com organismos anti-democráticos construídos à revelia do escrutínio dos cidadãos.
Se estivermos atentos à (des)informação veiculada pelos media corporativos é impossível não notarmos a ausência do contraditório, das imagens do outro lado, das palavras que afinal ficam por dizer. É gritantemente óbvia a forma como os media corporativos se agarram a uma "verdade única" distribuída pelas "a"gências de "i"nformação "c"entralizada, mesmo que para tal tenham de contradizer verbalmente ou por escrito as imagens que mostram uma outra realidade.
Os exemplos são inúmeros e gritantes. O apagão informativo que reduziu o maior evento politico-cultural do país, a Festa do Avante! comunista, a uma "rentrée" com um comício, umas barracas de comes e bebes e uns espectáculos é só o mais recente exemplo, mas a lista poderia continuar com um Nuno Rogeiro a afirmar que "o chavismo está a perder influência", em voz off, enquanto as imagens em directo mostram uma gigantesca manifestação chavista com mais de um milhão de participantes, ou o embuste dos capacetes brancos, especialistas na encenação de "ataques químicos" na Síria a serem promovidos por hollywood como heróicos socorristas. Outro exemplo gritante de como a meia informação sobre meia verdade acaba por constituir uma colossal mentira é o tratamento dado pelos media corporativos à invasão do Iémene pela Arábia Saudita. A invasão do Iémene é exclusivamente apresentada como intervenção a favor de uma das partes, numa guerra civil da qual apenas nos são dadas imagens do lado do invasor saudita. Em três ou quatro anos de guerra ainda não ouvi nenhuma declaração dos alegados "insurrectos" huttis que o exército pago com o petróleo do golfo ainda não conseguiu exterminar.
Nos últimos meses, o José Goulão, um jornalista com um vasto historial de produção informativa fidedigna tem abordado a instauração de organismos censórios tanto na sua newsletter "O Lado Oculto" como no jornal digital Abril Abril. Vamos tentar coligir aqui esses textos. @Refer&ncia
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A NATO como polícia de opinião
(José Goulão, AbrilAbril, 2019/09/05)
É necessário desarticular a carga de conteúdos verdadeiramente perigosos para a democracia e para a liberdade de expressão que esconde a queixa da NATO de manipulação nas redes sociais.
O Centro de Excelência de Comunicação Estratégica da NATO queixa-se de manipulação nas redes sociais. E quando o Centro de Excelência de Comunicação Estratégica da NATO se queixa só há que esperar uma intensificação das acções policiais de censura na internet, com o pretexto de que as redes sociais são incapazes de se regularem a si próprias. O cerco às opiniões divergentes da doutrina oficial atlantista e europeísta aperta-se e a NATO afina mecanismos policiais para que não haja desvios à opinião única.
A notícia passa quase despercebida, pelo que é necessário desarticular a sua carga de conteúdos verdadeiramente perigosos para a democracia e a liberdade de expressão. Os especialistas de manipulação de informação aglutinados no Centro de Excelência de Comunicação Estratégica da NATO, ou NATO StratCom, garantem que detectaram «buracos» nas redes sociais que poderiam ter permitido influenciar e manipular eleitores antes das eleições europeias de Maio. O que vale por dizer que certamente encontrarão agora mais «buracos» para envenenar eleitores na perspectiva de novas eleições gerais britânicas que, de facto, serão um novo referendo do Brexit; quem sabe ainda se os mesmos «buracos» não serão extensivos às eleições portuguesas de Outubro e por aí sucessivamente.
O NATO StratCom desconhece, em boa verdade, se os «buracos» detectados foram aproveitados para as eleições europeias. Só o Twitter terá facultado o acesso a um deles, designado Vkontakte[1] e de origem russa (obviamente), que por acaso «não foi usado extensivamente», segundo Janis Sarts, o chefe dos censores militares concentrados em Riga.
Um coro de lamentos
O trabalho sobre a NATO e a manipulação da informação, posto a circular pelo website EUObserver, é um coro de lamentos sobre a suposta incompreensão que os polícias do NATO StratCom encontram nas redes sociais e nos gigantes informáticos Facebook, Twitter, WhatsApp, YouTube, Google e por aí adiante; o que os torna ineficazes quando se trata de impedir a criação dos «buracos» por onde se infiltrem informações e opiniões que contrariem as doutrinas oficiais do atlantismo e do europeísmo, definidas dogmaticamente como «valores universais».
«A grande irmandade universal da espionagem da vida pública e privada, que nos faz ver um agente russo em cada esquina e um manipulador chinês em cada semáforo, tem todos os meios necessários ao seu dispôr para filtrar opiniões»
Rolf Fredheim, identificado como o «cientista principal» da associação censória policial, lamenta, por exemplo, o «conflito de interesses» que dita a suposta inactividade do Facebook em matéria de controlo de opiniões. Uma vez que as receitas financeiras da rede social são ditadas pelo número de membros activos, então não há que esperar que esta faça auto-regulação de frequentadores, constata Fredheim. O que leva facilmente à conclusão de que a NATO irá tomar medidas para que a «regulação» se execute por outras vias e os «buracos» se fechem[2].
«Não conhecemos os dados sobre a actividade» desenvolvida através dos supostos «buracos», mas «sabemos que houve», assegura Janis Starts. Valendo isso como uma verdade absoluta que justificará qualquer acção para corrigir a situação.
Um patamar superior de censura
A corrida ao controlo das opiniões divergentes da doutrina oficial é vertiginosa e, percebe-se agora, filtrada através de uma rede hierárquica de organismos no topo da qual estão os militares da NATO.
Como é do conhecimento geral, a União Europeia tem a sua Task Force de Informação Estratégica em funcionamento, também com o objectivo declarado de conter a «desinformação», isto é, a informação que se desvie da que tem a chancela oficial.
Operação «fake news», instrumento de censura
Naturalmente, o que imediatamente atrás ficou escrito é um exemplo de prática desinformativa porque a União Europeia e a NATO, segundo os seus axiomas, respeitam a liberdade de expressão e apenas combatem a manipulação efectuada através da Rússia.
Para que conste, por exemplo, é um exercício de propaganda russa dizer que a NATO destruiu a Líbia e fomenta a guerra na Síria; ou que o tráfico de droga explodiu no Afeganistão desde a invasão da NATO; ou que o golpe de 2014, patrocinado pela NATO e a União Europeia, fomentou a ascensão do nazismo na Ucrânia.
O que, na prática, equivale ao maniqueísmo em que se instalaram a União Europeia e a NATO: quem discorda das suas práticas concorda automaticamente com os russos – um conceito restritivo da liberdade de opinião próprio de quem se orienta por tentações ditatoriais.
O que se observa agora através das queixas do NATO Stratcom veiculadas pelo EUObserver é que os militares puxam dos galões e chamam a própria União Europeia à ordem, por ser demasiado contemporizadora com as redes sociais. Nada mais natural: a União Europeia é apenas o braço político da NATO, sobretudo nestes tempos em que a política se faz cada vez mais através da guerra.
De facto, a Task Force de Comunicação Estratégica da União Europeia tem acordos com várias redes sociais em matéria de fact-checking, como se Bruxelas delegasse nestas entidades parte da acção censória. E é assim que temos o Facebook em Portugal fiscalizado, desde 25 de Abril deste ano, pelo aparelho de um website designado Observador, que supostamente assegura a doutrina oficial mesmo sendo alinhado com a extrema-direita. O caso funciona como uma bússola fiável sobre o sentido em que funcionam estes mecanismos.
O NATO StratCom, porém, não tem a mesma confiança nesta maneira de controlar opiniões e não considera, por outro lado, que «o sistema de alarme rápido» montado ao nível de Bruxelas proporcione os resultados necessários. Tão pouco valida os sistemas montados pelas próprias redes sociais para impedir a suposta manipulação de informação.
Os censores de Riga têm esta posição baseada em experiência própria – é também por isso que a NATO vive em manobras militares permanentes.
«uma equipa de especialistas de manipulação do NATO StratCom conseguiu enganar soldados da Letónia em exercícios através da aplicação de encontros íntimos Tinder1, convencendo-os a divulgar as suas posições no terreno e a criar um grupo falso no Facebook. Segundo os promotores da experiência, a rede social demorou duas semanas a detectar a situação, sendo mais do que tempo para perder uma guerra»
No ano passado, segundo o trabalho publicado por EUObserver, uma equipa de especialistas de manipulação do NATO StratCom conseguiu enganar soldados da Letónia em exercícios através da aplicação de encontros íntimos Tinder, convencendo-os a divulgar as suas posições no terreno e a criar um grupo falso no Facebook. Segundo os promotores da experiência, a rede social demorou duas semanas a detectar a situação, sendo mais do que tempo para perder uma guerra.
Dizem os militares da central censória de Riga que são obrigados a seguir os metadados para detectar as origens da desinformação e liquidá-la no ovo. Convenhamos que, em bom rigor, o NATO Stratcom não precisa da auto-regulação das redes sociais para nada. Dar-lhes-ia, provavelmente, menos trabalho terceirizar a fiscalização, mas com o controlo das informações privadas de entidades e cidadãos alcançado pelas agências de espionagem dos Estados Unidos não haverá segredo que lhes escape. A grande irmandade universal da espionagem da vida pública e privada, que nos faz ver um agente russo em cada esquina e um manipulador chinês em cada semáforo, tem todos os meios necessários ao seu dispôr para filtrar opiniões.
O coro de queixas emitido pelo NATO StartCom é uma espécie de exercício de vitimização abrindo passagem a um grau superior de policiamento de opiniões e consciências tendo em conta a envergadura do «inimigo» e as cumplicidades que este consegue.
A internet é ainda uma espécie de última fronteira da liberdade de expressão e opinião, praticamente já inexistente no circo mediático convencional. E fronteiras, como se sabe, não são obstáculos que travem a NATO e os seus mecanismos de excelência.
[1]Trata-se, muito simplesmente, de uma rede social de contactos do tipo Facebook, mas em língua russa, muito popular na Rússia, Ucrânia e Bielorrússia.
[2] Rolf Fredheim parece ser capaz de medidas suficientemente eficazes para garantir a ausência de contraditório na internet. Uma breve pesquisa no Google por “Rolf Fredheim, NATO” não devolve qualquer artigo com uma visão minimamente crítica das ideias de Fredheim. O máximo que se consegue obter – se calhar por constituir uma publicação da Cambridge University Press – é a referência a um artigo da investigadora Julie Hemment intitulado «Red Scares and Orange Mobilizations: A Critical Anthropological Perspective on the Russian Hacking Scandal» (2017). Daí até à piada do primeiro de Abril desse ano do ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, dada em nota no referido artigo, com a respectiva ligação, vai um curto mas saboroso passo, que exemplifica o cenário de histeria informativa vivido no meio atlantista dos mainstream media.
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Viagem ao Mundo da Verdade Única
(José Goulão, O Lado Oculto, 2019/08/13)
Uma viagem ao mundo da “estratégia de comunicação” da União Europeia e respectivas emanações é uma experiência indispensável para confirmar os indícios de que os dirigentes europeus convivem cada vez mais desconfortavelmente com a liberdade de opinião. Na verdade, como ilustra essa incursão, já encaram a informação como propaganda, o contraditório como um abuso e a liberdade como um delito. Está aberto o caminho para a imposição da opinião única, em que se baseiam todas as formas de censura, desde a dos coronéis à dos “fact-checkers” contratados a peso de ouro por Bruxelas.
As poucas linhas introdutórias que o leitor acaba de consultar são uma “desinformação”, à luz da “estratégia de comunicação” que a União Europeia tem vindo a por em prática desde que os chefes de Estado e de governo declaram a sua necessidade, numa cimeira em Março de 2015.
Uma “desinformação” porque, segundo a definição oficial chancelada pelos órgãos europeus, “distrai e divide, semeia a dúvida através da deformação e falsificação de factos para criar a confusão, mina a confiança das pessoas nos media, nas instituições e nos processos políticos estabelecidos”.
A simples menção de que a União Europeia continua a dar mostras de uma propensão censória, fruto de uma opinião fundamentada de um jornalista, é inegavelmente uma “desinformação” porque pode “minar” a confiança dos leitores “nas instituições e nos processos políticos estabelecidos”.
Contra isso age a União Europeia, defendendo-se através da sua “estratégia de comunicação”, uma “abordagem coordenada em total conformidade com os nossos valores europeus e os nossos direitos fundamentais”. Entre os quais figura, por ironia do destino, o direito de opinião.
Esta é a ocasião em que o leitor pode supor: bom, contestar uma ideia não passa de uma fase de um debate, quanto muito de uma reprimenda moral, uma maneira talvez um pouco excessiva, é certo, de defender a narrativa oficial europeia perante opiniões que a contradizem.
Será mesmo assim?
A “estratégia de comunicação” europeia já tem o seu histórico desde 2015 através de uma coisa designada East StratCom Task Force (Task Force da Estratégia de Comunicação para Leste), associada ao Serviço Europeu de Acção Externa, e que neste ano de 2019 custa a módica quantia de três mil milhões de euros aos contribuintes europeus.
Os serviços da União montaram uma equipa de 16 pessoas a tempo inteiro, todas elas “com vasta experiência em áreas de comunicação” e falando muitas línguas, “entre elas o russo”, para responder às opiniões que contradigam ou contrariem o discurso oficial da União Europeia e desmontá-las com supostas provas e argumentos.
Entre as opiniões a desmantelar estão, por exemplo, as que acusam as sanções norte-americanas de serem responsáveis pela crise na Venezuela, as que afirmam a presença de neonazis no actual poder ucraniano ou que consideram o Grupo dos Sete (G7) como uma emanação dos interesses que governam o mundo. Caem nas más graças dos 16 verificadores ou fact-checkers aqueles que dizem ou escrevem que os Estados Unidos abandonaram o Tratado de mísseis de médio alcance (INF) em benefício do seu próprio complexo militar e industrial, que a NATO fez a guerra contra a Jugoslávia violando o direito internacional ou que os “capacetes brancos” na Síria encenam ataques químicos para acusar o governo de Damasco – realidade mais do que provada. É também uma violação “dos nossos valores europeus e dos nossos direitos fundamentais” negar – mesmo apresentando provas - que a Rússia derrubou o avião malaio que fazia o voo MH-17, dizer que Juan Guaidó usurpou a presidência na Venezuela ou que os protestos em Hong Kong são potenciados por agitadores com ligações ao estrangeiro.
EU vs Disinfo
Um dos espelhos da campanha permanente de propaganda e de divulgação da verdade única – a da União Europeia – é o website EU vs Disinfo, a União Europeia contra a desinformação.
Dia a dia, muitas vezes ao dia, ponto por ponto aqui podem encontrar-se as versões que incomodam a União Europeia e as verdades repostas pelos fact-checkers. É um facto que as provas e os argumentos por eles utilizados são débeis e, quase sempre, excertos de discursos ou declarações de dirigentes da União, da NATO, dos Estados Unidos, do próprio Donald Trump, como não podia deixar de ser. E quase todas as respostas começam com uma espécie de salmo decretando imediatamente a falsidade garantida da asserção: “este texto reproduz uma narrativa recorrente do Kremlin”. E o resto vem por acréscimo, dir-se-ia desnecessário.
Por exemplo, sempre que EU vs Disinfo rebate o facto óbvio segundo o qual os Estados Unidos dinamitaram o Tratado INF recorre a uma receita padrão: em primeiro lugar, garante que se trata de “narrativa do Kremlin”; em segundo lugar recorda que foi Obama quem descobriu que a primeira violação do Tratado foi um ensaio de um míssil russo, embora o então presidente norte-americano, e o seu sucessor, não tenham apresentado qualquer prova; em terceiro lugar assegura que os ministros dos Negócios Estrangeiros da NATO assumiram a versão de Obama e Trump. Fica tudo dito e sentenciado sobre o assunto. Provas para quê?
Assim funciona o mecanismo. Umas vezes com o primarismo que se percebe pelo que atrás foi dito; em certas situações, porém, existe mais elaboração, não tanto pelo que se afirma mas pelo que os donos da verdade escondem. É o caso, por exemplo, da cumplicidade dos Estados Unidos e da NATO com o tráfico de órgãos humanos nos Balcãs envolvendo figuras do UCK, o grupo fundamentalista islâmico que foi transformado em governo no protectorado do Kosovo. EU vs Disinfo faz os desmentidos canónicos e omite – por óbvia conveniência – a história do relatório britânico que faz luz sobre o escabroso negócio. Um documento pendente há anos no Conselho da Europa, à espera de ser debatido.
Para que o processo de verificação da verdade seja “independente”, a União Europeia assegura que actividades como as do EU vs Disinfo não têm a chancela que as distingue como “oficiais”. Apesar de Bruxelas pagar três mil milhões só este ano e a título, como sublinha, de “investimento nos domínios da vigilância e da educação”. Em boa verdade, trata-se de uma grande operação de “reeducação europeísta” a que é suposto nenhum de nós escapar se quiser estar do lado da verdade única e indiscutível.
Uma trama ardilosa
A União Europeia não assume que estes processos estejam relacionados com a preocupação generalizada de combater as opiniões contrárias e contraditórias. Nada disso, assegura Bruxelas, não se trata de impor uma verdade oficial, uma opinião única.
A “comunicação estratégica” foi criada e existe porque “a pressão propagandística da Rússia e dos terroristas islâmicos sobre a União Europeia não deixa de aumentar”. Fica definido o pretexto.
Deixemos de lado o facto de o EU vs Disinfo defender os “capacetes brancos”, um grupo terrorista islâmico associado à al-Qaida, manifestando assim uma apreciável aptidão para os golpes de rins.
Esta maneira de glosar a “ameaça russa” leva-nos, de facto, muito mais longe, ao desenvolvimento de uma manobra insidiosa por parte dos propagandistas oficiais da União.
No quadro por eles montado só existem a verdade de Bruxelas e a mentira do Kremlin. É preto ou branco, quem discorda de Bruxelas concorda com o Kremlin e com os terroristas islâmicos.
Ou seja, qualquer jornalista que, exercendo com independência a sua profissão, chegue a factos e forme opiniões que não coincidam com as da União Europeia estará a servir o Kremlin ou os terroristas islâmicos – o cúmulo do delito de opinião.
Denunciar a situação na Venezuela, revelar que os Estados Unidos e outros países da NATO são responsáveis pela guerra contra a Síria, dizer que a invasão do Iraque se baseou em mentiras, demonstrar que as guerras da NATO contra a Jugoslávia e a Líbia, por exemplo, violaram o direito internacional e humanitário, afirmar que o regimento nazi Azov faz parte da estrutura político-militar da Ucrânia, provar que os Estados Unidos e países da União Europeia estiveram por detrás do golpe de 2014 na Ucrânia, manifestar a opinião de que a Europa é um refém militar dos Estados Unidos através da NATO são verdades consabidas, mas para a União Europeia não passam de mentiras que reflectem os inaceitáveis pontos de vista do Kremlin. Isto é, qualquer jornalista ou está com Bruxelas ou está com Moscovo. Nem vale a pena dedicar-se ao seu trabalho, investigar, procurar provas, consultar fontes. Basta-lhe seguir o que diz a União Europeia e estará a cumprir a sua missão; caso contrário identifica-se com Moscovo, incorrendo em delito de opinião.
A “comunicação estratégica” da União Europeia não está verdadeiramente incomodada com a propaganda de Moscovo. A “ameaça russa” funciona, hoje como ontem, de pretexto para que a maneira de a União Europeia olhar para si própria e para o mundo seja inquestionável; tal como inquestionáveis são a NATO, a vontade dos Estados Unidos, o G7, o FMI, no limite o regime neoliberal. Quem escapar a este redil, mesmo brandindo provas irrefutáveis, será uma espécie de marginal, talvez mesmo um terrorista. Tais provas não lhe valem de nada. Do outro lado, como no EU vs Disinfo, estão fontes e argumentos definitivos, impossíveis de bater ou rebater como, por exemplo, “uma ONG venezuelana”, a “Constituição da Venezuela” interpretada por Guaidó, o “Grupo de Lima”, a lei ucraniana “proibindo nazismo e comunismo”, as sentenças de Federica Mogherini, o site Bellingcat, financiado pela NATO. Nada mais fiável e objectivo.
Ao pé da engrenagem de propaganda em desenvolvimento na União Europeia os coronéis da censura salazarista e caetanista eram incipientes e burgessos artesãos.
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A Censura da União Europeia Já Está em Marcha
(Hannes Hofbauer*, www.nachdenkseiten.de/O Lado Oculto, 2019/08/02)
Quem ler o “Relatório sobre a elaboração de um plano contra a desinformação” apresentado pela Comissão Europeia em 14 de Junho ficará chocado ao verificar que a criação de uma autoridade de censura à escala da União Europeia já está muito adiantada.
Segundo o documento, ainda pouco divulgado, a difusão de informações consideradas por Bruxelas como falsas e perigosas passará a ser punida em breve através de sanções como o congelamento de contas e a proibição de viajar.
No documento da Comissão Europeia, pelo qual é igualmente responsável Federica Mogherini, ponta de lança da política externa, a palavra “desinformação” é definida como um processo tendo como objectivo “distrair e dividir, semeando a dúvida através da deformação e a falsificação de factos para criar a confusão e minar a confiança das pessoas nas instituições e nos processos políticos estabelecidos”. Neste caso, não se trata de por o acento nos grandes grupos mediáticos que, dia-após-dia, desviam a atenção dos factos reais e deformam a verdade com o objectivo de estabilizar as relações de poder existentes. Um desinformador a combater é, pelo contrário, alguém que os ponha em causa e revele como funcionam as instituições.
Nesta luta para estabilizar o domínio (do capital) investem-se milhões para criar, segundo a Comissão Europeia, “uma abordagem coordenada em total conformidade com os nossos valores europeus e os nossos direitos fundamentais”. A autoridade, conhecida sob a designação de “Task Force for Strategic Communication”, fiscaliza o respeito pelos verdadeiros valores europeus com a ajuda dos chamados verificadores de factos (executores de Fact Check), os novos censores.
Nas vésperas das recentes eleições europeias, a Comissão conseguiu arrancar aos gigantes da internet como Google, Facebook, Twitter e – um pouco depois – Microsoft um “código de conduta voluntário de luta contra a desinformação” no quadro de acordos de cooperação, mas não sem ameaçar com acções judiciais se os resultados não forem satisfatórios até ao fim de 2019.
Um sistema de alerta precoce da União Europeia para identificar as informações falsas reforça igualmente a sua cooperação com as organizações globalizadas da estrutura económica e militar ocidental, os “parceiros internacionais como o G7 e a NATO”.
Teia censória e inimigo a Leste
Dentro da Task Force para a Comunicação Estratégica funciona a “East StratCom Task Force”, activa desde Março de 2015, quando foi preciso criar uma hegemonia ocidental sobre o discurso relacionado com a crise ucraniana.
As imagens inquietantes dos combatentes da direita radical na Praça Maidan, em Kiev, utilizando bombas incendiárias e (depois) armas de fogo contra as forças da ordem deveriam ser apresentadas como expressão de uma aspiração à democracia e à liberdade. A tarefa não foi fácil, uma vez que as reportagens dos meios de comunicação russos em inglês, alemão, francês e espanhol desmontavam essa narrativa.
O arranque da autoridade de censura na União Europeia tem, portanto, as suas raízes na crise ucraniana de 2014.
Desde então, quase todos os países da União Europeia formaram grupos de trabalho sobre os media cuja tarefa consiste em observar e combater principalmente os meios de comunicação russos.
No final de 2015, a União Europeia acelerou o seu ritmo, quando a maioria dos votos no Parlamento Europeu deram carta branca e importantes meios financeiros à Task Force. O comunicado de imprensa declarou:
“A pressão propagandística por parte da Rússia e dos terroristas islamitas sobre a União Europeia não deixa de aumentar. Esta pressão pretende torpedear a verdade, expandir o medo, provocar a dúvida e dividir a União Europeia”. Portanto, é necessário envolver com maior vigor a Task Force anteriormente criada para “investir nos domínios da vigilância e da educação”.
Menos de um ano depois, o presidente francês, Emmanuel Macron, lançou a ideia de transformar a difusão de notícias falsas numa infracção punível.
Esta ideia ainda não se concretizou, mas os observatórios à escala da União Europeia estão a postos desde Outubro de 2018; e um “sistema de alerta precoce” funciona desde Março de 2019.
Como pode ler-se na página 3 do relatório da Comissão, os dados recolhidos pelos membros da Task Force revelam “uma actividade sustentada e pronunciada de desinformação oriunda de fontes russas”. Os temas sobre os quais, segundo o relatório, a desinformação é difundida são, designadamente, “a colocação em causa da legitimidade democrática da União e os debates sobre migrações e soberania”, isto é, as grandes debilidades de Bruxelas.
Os verificadores de factos encarregam-se, portando, de dissimular essas fraquezas. De acordo com as suas próprias estatísticas, seguiram 998 “casos de desinformação” desde o início de 2019 (até meados de Junho), ou seja duas vezes mais que no mesmo período do ano anterior.
Além da procura da verdade, os censores da UE atribuíram-se como missão fiscalizar e, se necessário, suprimir as inserções publicitárias nas plataformas online. Isto aplica-se, por um lado, aos que utilizam meios astuciosos infectos para aumentar o número de clics; e, por outro lado, aos meios de comunicação indesejados. No relatório da Comissão pode ler-se o seguinte: “as três plataformas online (Facebook, Google, Twitter) intensificaram os esforços para aumentar a transparência da publicidade política”; além disso, “Facebook, ao contrário de Google e Twitter, estendeu a transparência à publicidade temática, mas a sua eficácia suscita dúvidas”. Os assuntos estudados incluem imigração, os valores políticos, os direitos civis e sociais, bem como a política externa e de segurança. As grandes empresas norte-americanas de internet decidiram banir os anunciantes que não lhes convêm (ou que não convêm à União Europeia) e fechar as respectivas contas. RT (Russia Today) e Sputnik já sentiram esses efeitos com o Twitter em fins de Outubro de 2017.
A NATO está em missão de paz. Ponto final.
Sejamos então sérios e minuciosos. A Comissão Europeia documenta cada “caso de desinformação”. Expõe meticulosamente a pretensa inverdade, o meio de difusão e os resultados da “verificação dos factos” (Fact Check).
O exame da lista disponível no plano “UE contra Desinfo” mostra claramente o objectivo do “Plano de Acção da UE contra a desinformação”: impor a visão de Bruxelas nos domínios da política, da economia e da sociedade. Os verificadores concentram-se, entre outros aspectos, na “nação russa”. Quando, por exemplo, a publicação Sputnik Deutschland informou em 7 de Junho que:
“O presidente russo, Vladimir Putin, rejeitou as especulações sobre uma eventual unificação entre a Rússia e a Bielorrússia. Segundo Putin, isso não pode acontecer. Não se coloca a questão da unificação destes dois países e ‘vou dizer porquê. Porque a história se desenvolve de uma maneira em que o nosso povo unido – e eu creio que os bielorrussos, os russos e os ucranianos são o mesmo povo, já o disse várias vezes – vive em diferentes países onde se formaram Estados diferentes’, declarou Putin no Fórum Económico Internacional de S. Petersburgo”.
Os verificadores de factos da União Europeia retiveram desta citação de Putin apenas a frase intercalar “eu creio que os bielorrussos, os russos e os ucranianos são o mesmo povo”. E gritam: Desinformação! Qualificam o ponto de vista do presidente russo como “narrativa pró-Kremlin”, reflectindo uma “ideologia imperial e irredentista”. Deste modo, tentam retirar legitimidade ao ponto de vista russo sobre questões culturais e geopolíticas e afirmam o seu próprio ponto de vista como o único legítimo. Um ponto de vista que corresponde ao avanço económico da União Europeia e à expansão militar da NATO para Leste e, portanto, às ideias de integração ocidental - que devem afirmar-se a par da desintegração a Leste.
Quando no dia anterior, 6 de Junho, a cadeia alemã RT.deutsch acusou Berlim de desacreditar sistematicamente os meios de comunicação russos, os censores da Task Force gritaram: Desinformação! Para o provar citaram Steffen Seibert, o porta-voz do governo, que respondeu assim ao reparo russo: “Quem faz tais acusações absurdas conhece mal a Alemanha e as suas ideias sobre a liberdade de imprensa”. Verdadeiramente. E por aqui se ficam as “informações” avançadas na luta contra a desinformação.
Eis ainda mais dois exemplos de “fact checking” bruxelense para supostamente denunciar desinformações russas, ilustrando assim em que direcções a liberdade de expressão se vai transformando. Os dois dizem respeito à NATO.
Em 5 de Junho, Sputniknews.org mencionou que “em Março de 1999 foi lançada uma guerra da NATO contra a República Federal da Jugoslávia, em violação do direito internacional”. O serviço da verdade da União Europeia reagiu de pronto: Desinformação!... Para explicar, ao-fim-e-ao-cabo, que “a principal razão da campanha da NATO foi acabar com a repressão e a violência e forçar Milosevic a retirar a sua polícia e as suas forças paramilitares”.
E quando uma semana mais tarde, a 10 de Junho, a edição italiana de Sputnik declarou que a NATO põe em perigo o sistema de segurança mundial com o seu reforço militar, os verificadores estavam mais uma vez presentes para gritar: Desinformação!
*Jornalista e editor austríaco com vários livros publicados em alemão pelas Edições Promedia, designadamente “Guerra dos Balcãs: dez anos de destruição da Jugoslávia” e “A ditadura do capital. Perda de soberania na era post-democrática”.
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