A geopolítica da crise venezuelana
(Alexandre Main, Le Monde Diplomatique, 2019/07/02)
A ofensiva de Washington contra o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, está apoiada no consentimento dos dirigentes conservadores da região, cada [dia] mais maioritários. Graças a eles, o intervencionismo norte-americano pôde maquilhar-se com uma preocupação humanitária
No início, a Venezuela não figurava na lista de preocupações do presidente norte-americano, Donald Trump. Durante a campanha presidencial, raras vezes ele pronunciou o nome do país e jamais sugeriu a possibilidade de intervenção.
No primeiro semestre de 2017, contudo, o cenário mudou, após uma série de encontros entre Trump e o seu ex-rival das primárias republicanas, Marco Rubio, um senador da Flórida de origem cubana. Próximo de doadores e eleitores hostis a Havana e Caracas instalados em Miami, Rubio pareceu convencer o seu interlocutor sobre o interesse eleitoral de adoptar uma linha dura em relação à Venezuela: segundo ele, uma mudança no regime do país latino-americano garantiria a vitória nesse estado, peça-chave para as eleições presidenciais.
O presidente Trump proclamou então a sua intenção de rever a política de normalização com Cuba, introduzida pelo seu predecessor, Barack Obama. Quanto à Venezuela, frisou que uma “solução militar” estava sobre a mesa, antes de impor uma bateria de sanções devastadoras a Caracas. Em uma situação inimaginável há dez anos, as principais capitais da região somaram-se aos esforços de Washington para acabar com o governo do presidente Nicolás Maduro.
Tectónica dos blocos
A América Latina mudou. Quando Obama assumiu [a presidência], em janeiro de 2009, a maior parte dos países tinha governos à esquerda. Dirigentes políticos defendiam a independência da região, apesar dos esforços das administrações republicanas precedentes de impedir o avanço da “onda vermelha” que se espalhava pelo Sul do continente no início do século XXI.
Quando, no fim do seu segundo mandato, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos fez as malas, a América Latina virou à direita. Importantes organizações de integração regional criadas pela esquerda, como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), foram paralisadas e ameaçadas pelo abandono. Um novo bloco sustentado por Washington apareceu: a Aliança Pacífica, cujos membros (Chile, Colômbia, México e Peru) assinaram um acordo de livre-comércio com os Estados Unidos. Abertamente hostil à Unasul, a Caracas e a Havana, o novo conjunto retomou o porta-estandarte neoliberal e as mesmas políticas que conduziram o continente a duas décadas de estagnação económica e agudização das desigualdades nos anos 1980 e 1990.
O alinhamento revelou-se ideal para Washington, que lançou então a sua operação contra a Venezuela. Em agosto de 2017, os representantes de uma dezena de países latino-americanos governados pela direita[1] reuniram-se no Peru, onde assinaram a Declaração de Lima, que denunciava uma “ruptura da ordem democrática” e violações de direitos humanos na Venezuela. Engajado em isolar o governo Maduro, o “Grupo de Lima” reuniu-se diversas vezes na sequência com uma ordem do dia: a Venezuela. As ameaças que pesam sobre a democracia e os direitos humanos nas Honduras ou na Colômbia (dois países-membros do grupo) não parecem, por outro lado, preocupar muito o mesmo grupo.
Apesar de os Estados Unidos não integrarem oficialmente o Grupo de Lima, representantes norte-americanos do alto escalão estão sempre presentes nas reuniões. Se de um lado a administração Obama se manifestou positivamente [quanto] à criação da Aliança do Pacífico, por outro mostrou-se discreta quanto ao papel que desempenharia na sua génese. A equipe de Trump adopta uma atitude oposta: não perde uma oportunidade de citar as declarações do Grupo de Lima com o objectivo de sugerir um consenso regional sobre a questão venezuelana – um esforço acompanhado por grandes meios de comunicação, aparentemente cegos à uniformidade ideológica da coligação.
Quando o dirigente da oposição Juan Guaidó decidiu autoproclamar-se presidente interino, em janeiro de 2019,[2] os Estados Unidos e o Grupo de Lima apoiaram-no imediatamente. Convidaram as Forças Armadas a tirar Maduro do poder, reeleito nas eleições contestadas de maio de 2018. O único país a tomar certa distância em relação às posições oficiais do grupo é o México, cujo nome de esquerda Andrés Manuel López Obrador assumiu as funções presidenciais em dezembro de 2018. Em coordenação com Montevideu, onde há também progressistas envolvidos no caso, o México propõe um “mecanismo de diálogo” com o objectivo de ajudar a Venezuela a sair da crise.
O Grupo de Lima representa, assim, um apoio determinante à administração Trump. Contudo, apesar da disposição confortável de seus aliados do Sul no contexto regional mais favorável aos Estados Unidos desde a década de 1990, Washington tem-se mostrado tão agressivo que pouco a pouco afasta os seus apoiantes. Quando Guaidó evocou a possibilidade de uma intervenção militar estrangeira, os integrantes do Grupo de Lima condenaram severamente “qualquer ameaça implicando uma acção armada na Venezuela” (15 abril 2019). E ainda reiteraram a posição quando Trump mencionou um deslocamento das Forças Armadas norte-americanas.
“Parceiro alinhado a nós em muitos aspectos”
Apesar de a situação parecer bloqueada em Caracas, o Grupo de Lima fia-se na ideia de uma solução política negociada, posição que os Estados Unidos rejeitam em nome de seu projecto de mudança de regime. O fiasco do levantamento popular que Guaidó tentou articular no dia 30 de abril conduziu o grupo a solicitar o apoio de Cuba no âmbito das negociações. A ideia fez as equipes de Trump entrarem em polvorosa, entre as quais se encontra um certo Elliott Abrams, que defendeu os esquadrões da morte na América Latina ao longo dos anos 1980 e mentiu em seu sermão diante do Congresso sobre sua implicação no escândalo Irã-Contras.[3]
Abrams defende a ideia de que Havana implantou milhares de soldados e agentes de informação na Venezuela para apoiar Maduro. As agências de informação norte-americanas não têm nenhum elemento concreto que valide essa tese, mas pouco importa: desde que o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, contatou as autoridades cubanas em nome do Grupo de Lima, ele recebeu um chamado irritado do vice-presidente norte-americano, Mike Pence, preocupado com a edificação da “influência nefasta” de Cuba em Caracas.4
Enquanto os países do Grupo de Lima se recusam a colocar em prática as sanções económicas contra a Venezuela exigidas pelos Estados Unidos, as fissuras aprofundam-se, pois até os mais dóceis conservadores latino-americanos se incomodam com o intervencionismo reivindicado pela administração Trump. E o conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, não ameniza os temores do grupo na medida em que celebra os méritos da Doutrina Monroe (uma visão de mundo velha, de dois séculos atrás, que justificava o imperialismo norte-americano nos demais países das Américas), ou que explica em rede mundial, no canal Fox Business, que as reservas petrolíferas venezuelanas são as principais motivações norte-americanas, já que “as coisas mudariam bastante para os Estados Unidos no plano económico se as companhias norte-americanas pudessem explorar os recursos desse país” (24 janeiro 2019).
Essas divergências geopolíticas às vezes englobam outras, de natureza económica. Quando chegaram ao poder, alguns dos novos dirigentes conservadores latino-americanos expressaram aberta e amplamente o desejo de assinar acordos de livre-comércio com os Estados Unidos. A chegada de um republicano com inclinações mercantilistas[5] à Casa Branca pode ser um entrave. Rapidamente, a ideia de livre-comércio desapareceu da ordem do dia dos encontros bilaterais.
A administração Trump parece preocupar-se pouco com os seus aliados na região, menos ainda em cultivá-los. O presidente norte-americano tem anulado diversas viagens à região, entre as quais duas à Colômbia e uma para a 8ª Cimeira das Américas, organizada no Peru, apesar de a agenda do encontro – como acabar com Maduro – parecer ter sido concebida para seduzir o Departamento de Estado norte-americano. Enquanto estas linhas estavam sendo escritas, a única viagem do presidente à América Latina resumiu-se à comparência na reunião do G20, em Buenos Aires, em dezembro de 2018.
E, quando interage com os seus aliados, Trump bajula-os tanto quanto os seus adversários. Encarnando a direita dura do país, o presidente colombiano, Iván Duque, não teria “feito nada” para combater a indústria da cocaína, conforme explicou no dia 29 de março, suscitando o temor de grandes figuras da diplomacia norte-americana que consideram a Colômbia um aliado político e militar de primeiro escalão.[6]
A equipe de Trump tem se empenhado em atenuar as tensões, deslocando-se sem hesitar. Pence esteve na região cinco vezes. Já Mike Pompeo colocou os pés na Colômbia e no México como diretor da CIA, antes de realizar seis outras viagens durante o seu primeiro ano como secretário de Estado. Bolton igualmente percorreu a região, notadamente passando pelo Brasil para felicitar o “parceiro alinhado connosco em muitos aspectos”, referindo-se ao presidente de extrema direita Jair Bolsonaro.[7]
Tais esforços, finalmente, contam pouco: o desdém de Trump pela América Latina complica ainda mais o posicionamento geopolítico de dirigentes conservadores, incapazes de desenvolver uma visão de mundo que não repouse numa “liderança” norte-americana para a qual eles entendem contribuir, na esperança de colher qualquer benefício.
Não há melhor ilustração desse impasse que os resultados medíocres alcançados pelas organizações regionais forjadas pela direita. Em oito anos de existência, a Aliança do Pacífico não foi além da integração dos mercados financeiros dos seus próprios membros, sem que a operação contribuísse para incrementar as economias. O mais importante bloco conservador, o Grupo de Lima, foi um golpe de espingarda, imaginado no âmbito da crise venezuelana: encurralado entre o seu apoio a uma lógica de mudança de regime e o extremismo intervencionista de Washington, permanece isolado dos esforços mais promissores para chegar a uma solução negociada (como os da Noruega).[8] A organização mais recente ganhou o nome de Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul, ou Prosul. Fundada em março de 2019 por Argentina, Brasil, Equador, Guiana, Paraguai e Peru, todos com governos à direita, a estrutura veio à luz com o principal objectivo de desacreditar ainda mais a Unasul.
No entanto, a oposição às políticas económicas, sociais e geopolíticas da esquerda basta para constituir um programa de governo? Paradoxalmente, a crise venezuelana parece ser o único elemento de coerência da aliança de conservadores de ambos os lados do Rio Bravo. O que será dessa união quando a questão da Venezuela se resolver?
Alexander Main é diretor de política internacional do Center for Economic and Policy Research (CEPR), em Washington, Estados Unidos.
1 Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai e Peru.
2 Ler Julia Buxton, “Où va l’opposition à Nicolás Maduro” [Para onde vai a oposição a Nicolás Maduro], Le Monde Diplomatique, mar. 2019.
3 Ler Eric Alterman, “Le retour du ‘secrétaire d’État aux sales guerres’” [O retorno do “secretário de Estado das guerras sujas”], Le Monde Diplomatique, mar. 2019.
4 “Pence calls on Canada to do more to engage Cuba over Venezuelan crisis” [Pence convoca o Canadá para expor a influência de Cuba sobre a Venezuela], Reuters, 30 maio 2019.
5 Ler Alain Bihr, “Une autre histoire du mercantilisme” [Outra história do mercantilismo], Le Monde Diplomatique, maio 2019.
6 “How Trump undermined Washington’s best friend in Latin America” [Como Trump desdenhou seu melhor amigo latino-americano], 11 abr. 2019. Disponível em:
7 “Bolton praises Brazil’s Bolsonaro as a ‘like-minded’ partner” [Bolton exalta Bolsonaro como parceiro de “mentalidade”], 11 nov. 2018. Disponível em:
8 Em maio de 2019, representantes do governo de Maduro e da oposição venezuelana estiveram em Oslo para negociações mediadas pelo país anfitrião. São as primeiras negociações de alto escalão desde o fim de 2017.
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