2025/07/23

A Mentira na Politica

"A Mentira na Política" 

 
O Nascimento de Fachus by Vieira Ressurected

Não é de estranhar que a usual abordagem à mentira na política, parta de um conjunto de pressupostos errados, para acabar numas águas mais ou menos turvas, eivadas de sins, mas tambéns, e vejam lá, pensem melhor sobre o assunto, quando, neste momento, já não há lugar para rodriguinhos: o sapo de loiça™ é um mentiroso compulsivo. Sim, nasceu, cresceu e fortificou-se num ambiente de governação mentirosa, apaparicado pelos leilões de audiências do espaço de infoentretenimento vendido aos anunciantes, mas, no cerne, está apenas e tão só um reles sapo de loiça™ mentiroso.

Mas, afirmava eu, antes de me perder em explicações escatológicas para o milagre do nascimento do sapo de loiça, não estranhar que a normal, usual e rotineira abordagem à mentira na política parta de um conjunto de pressupostos errados.

Não é em vão que vivemos imersos na ideologia dominante, a tal ponto que nem a conseguimos ver como ideologia. É como o ar que nos rodeia ou a água onde nadam os peixes: não o vemos, não o ouvimos, está aqui e nem o sentimos apesar de vivermos nele imersos.

Dizia Marx: "A ideologia dominante, isto é, a ideologia da classe dominante, reproduz-se", naturalmente, acrescento eu frisando a vertente orgânica do pensamento, implícita na frase do jovem filósofo alemão do século XIX, para quem, e volto a reproduzi-lo, livremente e de cor, "A filosofia se ocupou em explicar o mundo quando o que de facto importa é transformá-lo".

Implícita mas não explicitamente, e é por isso que a vou repetir, novamente, com a sua implícita orgânica naturalidade como explicito epílogo.

"A Ideologia dominante, isto é, a ideologia da classe dominante reproduz-se", organicamente, com naturalidade, imperceptivelmente.

Deixem-me repetir estes dois mantras que me têm acompanhado desde a puberdade, quando alguém me impingiu uns caderninhos coloridos escritos pela Marta Harnecker e a Gabriela Uribe.

- A Ideologia Dominante, isto é, a Ideologia da classe dominante reproduz-se.

e

- Muitos filósofos tentaram explicar o mundo, mas o que importa é transformá-lo.

Bom! E sobre a mentira e o mentiroso que nos trouxe aqui? Sobre a mentira, o mais relevante é reconhecer que ela é,   s e m p r e   e sob qualquer forma, cor ou tamanho: moral e mesmo eticamente i n a c e i t á v e l. Ponto.

Poderia frisar com o famoso "ponto final parágrafo, travessão na outra linha" dos ditados que infernizaram a minha infância, mas fiquemo-nos pela versão resumida: a mentira é inaceitável ponto!

De exclamação, concordo. A afirmação é suficientemente pomposa para reclamar mais do que um sonoro, bem sei, mas breve, ponto.

Creio até que, pelo seu peso, merece mais uma mantra, desta vez oriunda do mais do que pragmático jovem intelectual revolucionário Vladimir Ilitch, Lénine para os mais chegados, falecido ali pelos primeiros quartéis do século passado:

- "Só a verdade é revolucionária!"

Já não me lembro bem quando, nem onde, nem a que propósito terá o então jovem revolucionário dito tal verdade, mas gostaria de usar mais esta mantra para nos guiar numa viagem de vastos parágrafos, pelo mesmo mundo, olhado com outros pressupostos.

Proponho-vos, assim, partir de um quadro mental mais fora da caixa para a abordagem d'A Mentira na Política. Proponho-vos tentar partir de um quadro mental menos embebido em ideologia dominante. Um quadro mental baseado, não na Ideologia Dominante, não no pensamento dos intelectuais do sistema, isto é, não no pensamento de intelectuais preocupados em explicar o sistema como ele é, como deveria ser, ou como aparenta ser, como o fizeram o cidadão grego Platão, num tempo em que ser cidadão era pertencer à classe dominante, a única com direito de voto, o serviçal renascentista Maquiavel, serventuário bem pago pelo Príncipe da classe dominante a quem dedicou uma cuidada descrição dos pontos fortes do César Bórgia, ou o filósofo burguês Nietzsche, mas sim, aceitando como pressupostos, as três referidas mantras a que irei brevemente acrescentar uma quarta, para a qual só recentemente despertei, graças a uma Filósofa portuguesa de origem brasileira que tive o prazer de "ouver" há uns meses numa maravilhosa "Sociedade Civil" da RTP 2 dedicada à ... mentira na política.

Ponto de ordem à mesa para repetição das mantras que tomaremos como pressupostos na nossa, mais minha e para a qual vos quero arrastar, caminhada.

- A Ideologia Dominante, isto é, a Ideologia da Classe Dominante reproduz-se.

- Muitos filósofos tentaram explicar o mundo, mas o que importa é transformá-lo.

- Só a verdade é revolucionária.

E, como corolário, um outro pressuposto mais aceitável pela ideologia dominante e, no entanto, verdadeiramente revolucionário, porque indiscutível e universalmente verdadeiro:

- "Quem fala verdade é refém dessa mesma verdade, vê o seu discurso limitado pelas baias dessa verdade, ao passo que quem mente, é livre para mentir no mais vasto universo das mentiras limitado apenas pela imaginação do mentiroso."

Resumindo: a verdade é castradora enquanto a mentira é libertadora.

Uuuoooppss!

Diz-nos a tal Filósofa de quem não recordo o nome, mas para quem poderão, com a facilidade própria da vossa juventude, fazer o favor de encontrar nome, filiação, data de nascimento, biografia e bibliografia, assim haja tempo e vontade.

Sobre esta última mantra vou elaborar um bocadinho, sobre as outras, de tão antigas, tão trabalhadas, tão glosadas, peço-vos que as aceitem como pressupostos. São outros, diferentes dos usuais, bem sei. Mas são alguns dos que, como dizem por aí os websummiters, nos podem ajudar a pensar fora da caixa.

Divaguemos então um pedaço sobre as limitações impostas pela verdade e as liberdades de oratória proporcionadas a quem mais livremente mente e, sim, liberdades só limitadas pela imaginação do mentiroso.

A verdade é sempre uma e só uma, é o facto, é a factual realidade, mesmo quando quântica, mesmo quando indeterminística, mesmo quando o gato pode estar vivo ou morto, enquanto não for observado, e assim permanecer naquele estado quântico de vivo e morto, ao mesmo tempo, a verdade é que, enquanto não abrirmos a caixa, "O Gato" está vivo e morto, simultaneamente, não "não está", nem "deixa de estar", nem "não existe", nem "está na lua", nem "em marte", nem "é imigrante", nem "emigrante", nem "branco", nem "preto", nem "amarelo", ele está, enquanto não abrirmos a caixa, "vivo e morto" e, depois de aberta a caixa, vivo ou morto, mas a verdade é sempre, em cada momento, uma única e não a variedade de mentiras que sobre o gato enquanto gato, ou lebre, ou perdiz poderíamos tecer apenas limitadas pela nossa imaginação.

E sim, a verdade também é algo de completamente diferente das variadíssimas opiniões que possam ser formuladas sobre essa verdade, opiniões essas que podem, essas sim, enquanto apenas algumas das possíveis mil e uma mentiras em redor dessa verdade, serem apresentadas como verdades alternativas, outras verdades, que como vimos paradoxalmente não existem. A verdade era só uma, a que antecedeu as opiniões mais tarde sobre ela formuladas e depois tentativamente apresentadas como verdades.

Sim, quem mente tem muito mais liberdade oratória do que quem diz a verdade que, por estar limitada/o à verdade só se pode repetir num discurso facilmente apelidado de: Está sempre a dizer a mesma coisa.

Pois! A verdade.

Enquanto a verdade for aquela, o discurso não tem campo para ser diferente.

Já para o mentiroso, há sempre uma nova mentira, uma novidade, uma outra mentira, outro falso argumento que consolide a mentira original. Sim para o sedutor e eticamente reprovável mentiroso, sim, não apenas moralmente, mas mesmo eticamente reprovável mentiroso sapo de loiça™ , à revelia do que Platão e Nietzsche afirmam ser, e que Maquiavel, dando mais uns passos em direção ao precipício da iniquidade, defende que deve ser, que deve mesmo ser para que o Príncipe daí tire vantagens, uoops, acabei de tropeçar na Razão de Ser da Mentira para sobrevivência da classe dominante, mas deixemos a pedra no sitio, para nela podermos continuar a tropeçar até ao final deste escrito, dizia, para o sedutor e moralmente mentiroso, a oratória está livre para incluir qualquer mentira que ajude a sedimentar a mentira original.

E sim, a pedra em que tropeçámos é a rocha que a ideologia dominante tenta descaradamente esconder da multidão dos restantes, a saber, a mentira é essencial para que a minoritária Classe Dominante possa continuar a enganar, leia-se textualmente oprimir, a imensa maioria dos produtores.

Só à classe dominante interessa moralizar e normalizar a mentira, afinal, essa Classe Dominante não pode simplesmente dizer à multidão dos outros, sob pena de essa imensa maioria acabar por lhe ir aos brioches, que a mais valia por eles socialmente produzida está a ser privadamente apropriada pelos detentores dos meios de produção. O que a minoritária Classe Dominante tem de "explicar", à imensa maioria, é que é graças a ela, classe dominante, que eles têm um emprego que lhes permite adquirir os bens de consumo, produzidos nas fábricas dessa classe dominante, candidamente omitindo, de passagem, por quem são esses bens produzidos.

Ou ainda que o negócio privado da doença existe, para que os acionistas das empresas que detêm esse negócio se encham à tripa forra, com as prestações dos seguros de saúde sobre a doença alheia, e que a existência de um serviço de saúde gratuito, porque financiado pela imensa maioria dos explorados e, também, a contra gosto, pelos parcos impostos pagos pelos restantes 1%, é um verdadeiro atentado ao divino direito do Príncipe de viver à custa da doença alheia. O que a Classe Dominante, através dos seus arautos mediáticos e restantes sapos de loiça mentirosos, se vê forçada a fazer, em nome da sua sobrevivência e da sua sacrossanta apropriação de mais valias, é ensinar à imensa maioria dos restantes cidadãos que um serviço de saúde público, o único que pode ser gratuito, é ineficiente, nem que para isso tenha de ser subfinanciado, demasiado dispendioso, nem que para isso tenha de o obrigar a adquirir medicamentos, exames e análises ao negócio privado da doença a preços de mercado, carente de médicos, nem que para isso lhes tenha de acabar com as carreiras e de os sobrecarregar com horas extraordinárias, até que todos eles emigrem para o negócio privado da doença.

Ou mesmo que a desregulação dos mercados de capitais, de energia, de alimentos, de comunicações, de tudo e mais alguma coisa, é crucial para aumentar a mais valia socialmente produzida, através das poupanças nos meios de produção, tanto mais caros quanto mais sujeitos a regulamentos ambientais, que evitam catástrofes como derrames de petróleo, oriundo de plataformas offshore, a regulamentos de higiene e sanitagem, que evitam as vacas loucas criadas pela Tatcher, quando exterminou o organismo de vigilância agropecuário do reino unido, ou regulamentos do mercado de capitais que impeçam a Goldman Sachs de emprestar dinheiro à Grécia, ao mesmo tempo que aposta, à laia de seguro contra todos os riscos, em como essa mesma Grécia, a quem está a emprestar dinheiro a rodos, não vai conseguir pagar-lhe o empréstimo, fazendo assim com que os juros do empréstimo cresçam de forma vertiginosa, tornando o empréstimo de facto impagável. Mas não importa, a Goldman já lucrou no mercado de apostas, leia-se de futuros, mais do que lucraria com os juros dos empréstimos que, afinal, acabarão a ser pagos por todos nós através de mais um empréstimo do Banco Mundial, garantido pelo orçamento comunitário, leia-se pelos impostos que todos nós pagamos. Sim, porque se há coisa que a banca sabe fazer é cobrar um empréstimo, nem que para isso tenha de esperar que o bisneto do original devedor venda o palácio. Não, o que a Classe Dominante tem de nos explicar é que a desregulamentação de tudo e mais alguma coisa é absolutamente fundamental para que o desenvolvimento tecnológico, alimentado por essa desregulamentação, nos possa oferecer maior bem estar, mais e melhores produtos a preços mais convidativos, e que os lucros conseguidos pelo sistema financeiro com a desregulamentação dos mercados financeiros é essencial para os bancos, sem os quais óbvia e evidentemente não podemos passar, nos cobrem menos comissões e possam, vejam lá a candidez, baixar uns pontos percentuais nos juros dos empréstimos à habitação. Quanto à Banca Pública, vade retro satanás que ameaça a livre concorrência dos mercados.

Quanto tempo duraria o poder de uma ultraminoritária classe dominante que não conseguisse esconder, com uma muralha de mentira, a verdade de que ela deve o seu bem estar ao mal estar que provoca na imensa maioria dos restantes cidadãos?

É essencialmente por estas, mas também por outras, que a mentira, a repetição da mentira, a normalização da mentira é tão importante para a sobrevivência dos 1% detentores de 50% da riqueza. É por isso que é tão importante deixar claro, a todos nós, que os políticos são todos iguais, todos mentirosos, que não só mentem, como é a sua sobrevivência e não a dos seus patrões que depende da sua capacidade de mentir. E não nos preocupemos. Quando nós, a imensa maioria, tivermos finalmente compreendido que os políticos são todos iguais e todos uma cambada de aldrabões, a classe dominante cria, aduba e fortalece um qualquer novo sapo de loiça™ ainda mais mentiroso que, livre de quaisquer peias de realidade, e mentindo com a maior das imaginações e teatralidade, virá convencer-nos que o melhor é acabar com essa variedade de políticos aldrabões e entregar as nossas vidas nas mãos de um São Sebastião salvador. Ao menos será só um a roubar.

Sapo de loiça é trademark de "Vieira Ressurected".
Todos os direitos reservados.

2025/07/22

A ideologia por trás da “Nova América” é mais perigosa do que parece


A ideologia por trás da “Nova América” é mais perigosa do que parece
Os super-humanos estão a chegar – e o perigo também.
(Artyom Lukin(*), RT, 2025/07/20)
Nos últimos 500 anos, o Ocidente reinou como a civilização dominante do mundo. Embora o seu domínio tenha diminuído nos últimos anos, o Ocidente — especialmente os Estados Unidos — continua a ser a força mais poderosa na política global e na economia internacional. Este poder, embora capaz de construir muito, também tem o potencial de destruir muito.

Hoje, uma nova ideologia está a tomar forma no Ocidente, particularmente nos EUA. Nas condições certas, pode ser tão perigoso para a humanidade como foram o fascismo e o nazismo no século passado. A reeleição de Donald Trump pode marcar um ponto de viragem decisivo, transferindo poder para pessoas e ideias que são, na melhor das hipóteses, profundamente ambíguas.

Esta “Nova América” não é movida por uma visão única do mundo, mas antes por uma convergência de quatro facções ideológicas.

Os restauracionistas imperiais

No centro está o próprio Trump e os seus aliados — reminiscências da era do imperialismo das grandes potências. O discurso inaugural de Trump para lançamento do seu segundo mandato deixou poucas dúvidas: apelou à expansão territorial, ao crescimento industrial e a um militarismo ressurgente. A América, declarou, é “a maior civilização da história da humanidade”. Falou com aprovação do presidente William McKinley e de Theodore Roosevelt, ambos arquitetos do imperialismo americano.

A visão é inconfundível: o excepcionalismo americano, imposto pelo poderio militar e impulsionado pela lógica da conquista. É a linguagem do império.

Os conservadores nacionalistas

Depois, há os populistas de direita – figuras como o vice-presidente J.D. Vance, o estratega Steve Bannon e o jornalista Tucker Carlson. O seu grito de guerra é “América em primeiro lugar”. Defendem os valores tradicionais, afirmam falar pela classe trabalhadora e desprezam a elite liberal concentrada nas cidades costeiras.

Opõem-se ao globalismo, apoiam o protecionismo comercial e promovem o isolacionismo na política externa. Esta fação não é particularmente nova na política norte-americana, mas a sua influência aprofundou-se, especialmente sob o patrocínio de Trump.

Vice President JD Vance em visita a Los Angeles depois do distúrbios provocados pelas rusgas do ICE © Getty Images

Os multi-milionários tecno-libertários

Um elemento mais novo — e talvez mais perturbador — da ideologia emergente dos Estados Unidos é representado pelos multimilionários de Silicon Valley. Elon Musk é a figura mais visível, tendo chefiado brevemente o Departamento de Eficiência Governamental de Trump no início de 2025. Mas o ator mais influente pode ser Marc Andreessen, o capitalista de risco e pioneiro da internet que se tornou conselheiro informal de Trump.

A mudança política de Andreessen ocorreu após a sua frustração com as regulamentações da era Biden sobre criptomoedas e inteligência artificial. Em 2023, publicou um manifesto chamado ‘O Tecno-Otimista’, um documento que prega a aceleração tecnológica desenfreada. Na sua opinião, a inovação científica e o mercado livre podem resolver todos os problemas da humanidade, desde que o governo não interfira.

Andreessen cita Nietzsche e invoca a imagem do “predador de topo” – uma nova geração de super-homens tecnológicos que está no topo da cadeia alimentar. Escreve: “Não somos vítimas, somos conquistadores… o predador mais forte no topo da cadeia alimentar.”

Esta linguagem pode parecer metafórica, mas é reveladora. A lista de inspirações intelectuais de Andreessen inclui Filippo Marinetti, o futurista que ajudou a lançar as bases estéticas do fascismo italiano e morreu a combater o Exército Vermelho em Estalinegrado.

Marc Andreessen

O filósofo-fazedor de reis

O pensador mais intelectualmente desenvolvido do campo tecno-libertário é Peter Thiel, cofundador da PayPal e da empresa de vigilância de dados Palantir Technologies. Thiel já não é uma figura marginal – é agora, sem dúvida, o segundo ideólogo mais importante da Nova América, depois do próprio Trump.

Thiel é também um mestre estratega. Orientou e financiou pessoalmente Vance, agora vice-presidente e possivelmente herdeiro aparente de Trump. Ao mesmo tempo, apoiou Blake Masters no Arizona, embora esta aposta não tenha resultado. Thiel lê a Bíblia, cita Carl Schmitt e Leo Strauss e fala abertamente sobre os limites da democracia. “A liberdade já não é compatível com a democracia”, disse.

Comparou a América moderna à Alemanha de Weimar, defendendo que o liberalismo está esgotado e deve surgir um novo sistema. Apesar das suas inclinações libertárias, as empresas de Thiel desenvolvem ferramentas de IA para o Pentágono e financiam sistemas de armas de última geração através de empresas como a Anduril.

Thiel acredita que os Estados Unidos entraram num longo declínio – e que são necessários avanços tecnológicos radicais para o inverter. Um dos seus projetos favoritos é o “Enhanced Games”, uma competição onde o doping e o biohacking são permitidos. Coorganizado com Donald Trump Jr., o evento reflete a obsessão de Thiel com o transumanismo e o aperfeiçoamento humano.

Na política externa, Thiel vê a China como o principal inimigo dos Estados Unidos. Chamou-lhe "gerontocracia semifascista e semicomunista" e pressionou pela completa dissociação económica. Curiosamente, Thiel é muito menos hostil à Rússia, que vê como culturalmente mais próxima do Ocidente. Na sua opinião, empurrar Moscovo para os braços de Pequim é um erro estratégico.
Peter Thiel

O Iluminismo Sombrio

O último grupo por trás da Nova América é o dos teóricos do “Iluminismo Sombrio”, ou movimento neo-reacionário. Estes provocadores intelectuais rejeitam os valores do Iluminismo que outrora definiram o Ocidente.

Nick Land, um filósofo britânico que vive em Xangai, está entre os pensadores fundadores desta escola. Prevê o fim da humanidade tal como a conhecemos e a ascensão de sistemas pós-humanos e tecno-autoritários governados pelo capital e pelas máquinas. Para Land, a moralidade é irrelevante; o que interessa é a eficiência, a evolução e a potência bruta.

Curtis Yarvin (também conhecido por Mencius Moldbug), um programador norte-americano, é outra figura central. Amigo de Thiel e membro do círculo intelectual de Trump, Yarvin defende a substituição da democracia por uma monarquia de estilo corporativo. Imagina um futuro de cidades-estado soberanas geridas como empresas, onde a experimentação de leis e tecnologias é irrestrita.

Yarvin é claro na sua rejeição da liderança global americana. Acredita que os EUA se devem retirar da Europa e deixar que as potências regionais resolvam as suas próprias disputas. Fala calorosamente da China, e as suas opiniões sobre a Segunda Guerra Mundial são pouco ortodoxas, para dizer o mínimo — sugerindo que Hitler foi motivado por cálculos estratégicos e não por ambições genocidas.
Curtis Yarvin

O que aí vem?

Muitas destas ideias podem parecer marginais. Mas as ideias marginais têm poder — sobretudo quando ecoam pelos corredores da influência política e tecnológica. As teorias jurídicas de Carl Schmitt permitiram a Hitler tomar poderes ditatoriais em 1933. Hoje, os aliados intelectuais de Trump e Thiel estão a elaborar as suas próprias narrativas de "emergência", "decadência" e "despertar".

O que está a surgir na América não é um recuo da hegemonia, mas uma reformulação da mesma. A ordem internacional liberal já não é vista como sagrada — nem mesmo pelo país que a construiu. A nova elite americana pode estar a retirar tropas da Europa, do Médio Oriente e da Coreia, mas as suas ambições não diminuíram. Em vez disso, estão a recorrer a métodos mais subtis de controlo: IA, domínio cibernético, guerra ideológica e superioridade tecnológica.

O seu objetivo não é um mundo multipolar, mas um mundo unipolar redesenhado — governado não por diplomatas e tratados, mas por algoritmos, monopólios e máquinas.

A ameaça ao mundo já não é apenas política. É civilizacional. Os super-humanos estão em marcha.

(*) Professor associado de relações internacionais na Universidade Federal do Extremo Oriente em Vladivostok, Rússia

Este artigo foi publicado pela primeira vez pela Rússia na Global Affairs, traduzido e editado pela equipa da RT.

2025/05/11

Comunicação de Putin sobre as negociações com a Ucrânia e as violações da trégua: Principais conclusões

Como tudo quanto é media já está a interpretar e a comentar o que Putin terá dito na sua noturna comunicação à imprensa é sempre boa ideia ler também o que Os Russos dizem que o seu presidente disse. Direitinhos da RT e ainda quentinhos aqui ficam os pontos chave da comunicação à imprensa de ontem á noite.

Comunicação de Putin sobre as negociações com a Ucrânia e as violações da trégua: Principais conclusões

Moscovo oferece a Kiev negociações diretas em Istambul a 15 de maio, sem quaisquer condições prévias

FOTO DE ARQUIVO: Presidente da Rússia, Vladimir Putin. © Sputnik / Ramil Sitdikov

O Presidente russo, Vladimir Putin, ofereceu ao Governo ucraniano uma hipótese de retomar as negociações diretas "sem quaisquer pré-condições", apesar das repetidas violações de Kiev das iniciativas de paz anteriores.

Eis as principais conclusões do discurso do Presidente Putin na manhã de domingo, após um dia de reuniões com chefes de Estado estrangeiros que visitaram Moscovo para as comemorações do Dia da Vitória, que assinalam o 80.º aniversário da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazi.

1 Repetidas violações do cessar-fogo

Putin observou que a Rússia fez vários esforços para acalmar o conflito, que foram consistentemente minados pela Ucrânia. Em plena nova pressão ocidental por um cessar-fogo "incondicional" de 30 dias, recorda como a Ucrânia violou uma moratória de 30 dias sobre os ataques contra infraestruturas energéticas — acordada com o presidente norte-americano, Donald Trump — "pelo menos 130 vezes".

"A trégua da Páscoa iniciada pela Rússia também não foi observada. As formações ucranianas violaram o cessar-fogo quase 5.000 vezes", acrescentou. No entanto, “para a celebração do Dia da Vitória – que consideramos sagrado – declarámos uma trégua unilateral pela terceira vez”.
Kiev ignorou a iniciativa, mesmo quando Moscovo comunicou aos parceiros ocidentais que estava aberta ao seu prolongamento para além de 10 de Maio. Pelo contrário, sublinhou Putin, a Ucrânia lançou mais de 500 drones em ataques de grande escala e realizou cinco tentativas de violação da fronteira russa nas regiões de Kursk e Belgorod durante a trégua.

2 Negociações em Istambul sem quaisquer condições prévias

“Apesar de tudo, propomos que as autoridades de Kiev retomem as negociações interrompidas no final de 2022”, disse Putin. “Retomar as negociações diretas, e sublinho, sem quaisquer pré-condições.”

“Propomos começar sem demora na próxima quinta-feira, 15 de maio, em Istambul – onde foram realizadas e interrompidas anteriormente.”

“Estamos empenhados em negociações sérias com a Ucrânia... para eliminar as causas profundas do conflito e uma paz sustentável a longo prazo”, acrescentou.

3 Passo em direção a um cessar-fogo que Kiev respeite

Putin disse que as negociações propostas poderiam levar a uma nova e significativa trégua – ao contrário de acordos anteriores que a Ucrânia não honrou.

“Não descartamos que, no decurso destas negociações, seja possível concordar com alguns novos cessar-fogo – tréguas reais – que seriam observados não só pela Rússia, mas também pela Ucrânia”, disse.

Tal acordo, discutiu, poderia ser “o primeiro passo para uma paz sustentável e a longo prazo, e não um prólogo para a continuação do conflito armado após o rearmamento e a reorganização das Forças Armadas Ucranianas”.

4 A decisão cabe agora a Kiev e aos seus apoiantes

“A nossa proposta está em cima da mesa”, disse Putin. “A decisão cabe agora às autoridades ucranianas e aos seus curadores.”

Segundo o líder russo, os governos ocidentais – guiados por “ambições políticas pessoais” em lugar dos interesses dos seus povos – continuam a prolongar a guerra “pelas mãos dos nacionalistas ucranianos”.

5 Kiev tentou intimidar os líderes estrangeiros em Moscovo

Putin acusou ainda Kiev de tentar “intimidar” os líderes mundiais visitantes com ataques durante o cessar-fogo do Dia da Vitória.

“Não só rejeitaram a nossa proposta de cessar-fogo, como também tentaram intimidar os líderes reunidos em Moscovo”, disse.

“Estes líderes não são definidos pelos seus títulos, mas pelo seu carácter e vontade de defender as suas convicções”, acrescentou Putin. "E quem tentou intimidá-los? Aqueles que saúdam e aplaudem os antigos soldados das SS e elevam os colaboradores nazis à categoria de heróis nacionais?"

6 Gratidão àqueles que verdadeiramente querem a paz

“Aqueles que realmente querem a paz não podem deixar de apoiar” a sua proposta de negociações em Istambul, disse Putin. O presidente russo anunciou planos para conversar com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, sobre o acolhimento das negociações propostas. Putin reiterou ainda o seu apreço pelos esforços de mediação da China, do Brasil, das nações africanas e do Médio Oriente e do novo governo dos EUA.

2025/05/08

O Ocidente está a desmantelar os fundamentos de 1945

O Ocidente está a desmantelar os fundamentos de 1945
(Fiódor Lukyanov(*), RT, 2025/05/08)

Porque é que as fissuras no acordo da Segunda Guerra Mundial ameaçam a estabilidade global.

Um tanque T-14 Armata durante um desfile militar do Dia da Vitória na Praça Vermelha em Moscovo, Rússia. © Ramil Sitdikov / Agência de Fotografia Anfitrião via Getty Images


Oitenta anos é muito tempo. Durante este período, o mundo muda até quase se tornar irreconhecível, e acontecimentos que antes pareciam próximos transformam-se em lendas. Mas, embora a história possa tornar-se distante, a sua marca permanece. A Segunda Guerra Mundial criou uma ordem política que moldou os assuntos globais durante décadas – uma ordem que muitos presumiam que seria permanente. Mas hoje, o mundo está a mudar de forma rápida e irreversível. Os acontecimentos da primeira metade do século XX não são menos significativos, mas o seu papel na política contemporânea já não é o mesmo.

O resultado da guerra, que culminou na derrota do nazismo, definiu a moderna ordem mundial. De muitas formas, foi vista como uma luta quase perfeita: uma batalha contra um regime inquestionavelmente agressivo e criminoso que obrigou nações com profundas diferenças ideológicas a pôr de lado as suas disputas. As potências aliadas – divididas por sistemas políticos e desconfianças de longa data – viram-se unidas pela necessidade. Nenhum deles entrou nesta aliança por pura boa vontade; a diplomacia pré-guerra centrava-se na autopreservação e nas manobras para desviar as piores consequências para outros lugares. No entanto, quando a ameaça existencial se tornou clara, estas divergências ideológicas foram temporariamente ultrapassadas. Foi precisamente por isso que a ordem do pós-guerra se revelou tão resiliente.

Esta estrutura resistiu às tempestades da Guerra Fria e perdurou até ao início do século XXI, apesar das grandes alterações no equilíbrio global de poder. O que ajudou a mantê-la unida foi uma narrativa moral e ideológica partilhada: a guerra foi vista como uma luta contra o mal absoluto, um raro momento em que as divisões entre os Aliados pareciam secundárias à sua causa comum. Este consenso – centrado na derrota do nazismo e simbolizado por marcos como os Julgamentos de Nuremberga – deu legitimidade moral à ordem do pós-guerra.

Mas no século XXI, esta narrativa partilhada começou a desgastar-se. À medida que enfraquece, enfraquece também a estabilidade da ordem mundial que ajudou a criar.

Uma das principais razões reside nas próprias transformações internas da Europa. Na era pós-Guerra Fria, os países da Europa de Leste – que há muito alegavam um duplo sofrimento sob os regimes nazi e soviético – promoveram uma interpretação revisionista da guerra. Estas nações definem-se cada vez mais como vítimas de “dois totalitarismos”, procurando colocar a União Soviética ao lado da Alemanha nazi como perpetradora de crimes de guerra. Este enquadramento enfraquece o consenso estabelecido, que colocou o Holocausto no centro moral do conflito e reconheceu a cumplicidade das próprias nações europeias em permitir que tal acontecesse.

A crescente influência das perspectivas da Europa de Leste teve um efeito de cascata. Permitiu à Europa Ocidental diluir discretamente a sua própria culpa pela guerra, redistribuindo a culpa e remodelando a memória colectiva. O resultado? Uma erosão dos fundamentos políticos e morais estabelecidos em 1945. Ironicamente, este revisionismo — embora frequentemente enquadrado como uma pressão para um maior "equilíbrio" histórico — enfraquece a própria ordem mundial liberal que as potências ocidentais afirmam defender. Afinal, instituições como as Nações Unidas, um pilar desta ordem, foram construídas sobre a estrutura moral e jurídica forjada pela vitória dos Aliados. O enorme contributo da União Soviética durante a guerra e o seu peso político foram essenciais para esta arquitectura. À medida que o consenso em torno destas verdades se vai desintegrando, o mesmo acontece com as normas e as estruturas que delas surgiram.

Um segundo fator, mais subtil, contribuiu também para o desenrolar dos acontecimentos. Ao longo de oito décadas, o mapa político global foi redesenhado. O fim do colonialismo deu origem a dezenas de novos Estados, e as Nações Unidas de hoje têm quase o dobro dos membros que tinham quando foram fundadas. Embora a Segunda Guerra Mundial tenha inegavelmente afectado quase todos os cantos da humanidade, muitos soldados do chamado Sul Global lutaram sob a bandeira dos seus governantes coloniais. Para eles, o significado da guerra era muitas vezes menos sobre derrotar o fascismo e mais sobre as contradições de lutar pela liberdade no estrangeiro enquanto esta lhes era negada em casa.

Esta perspectiva remodela a memória histórica. Por exemplo, os movimentos que procuravam a independência da Grã-Bretanha ou da França viam, por vezes, as potências do Eixo não como aliadas, mas como pontos de alavancagem — símbolos das fissuras no sistema colonial. Assim, embora a guerra continue a ser significativa a nível global, a sua interpretação varia. Na Ásia, África e em partes da América Latina, os marcos do século XX parecem diferentes dos comummente aceites no Hemisfério Norte. Ao contrário da Europa, estas regiões não estão a promover um revisionismo histórico directo, mas as suas prioridades e narrativas divergem da visão euro-atlântica.

Nada disto apaga a importância da guerra. A Segunda Guerra Mundial continua a ser um acontecimento fundamental na política internacional. As décadas de relativa paz que se seguiram foram construídas com base num entendimento claro: tal devastação nunca se deveria repetir. Uma combinação de normas jurídicas, estruturas diplomáticas e dissuasão nuclear funcionou para defender este princípio. A Guerra Fria, embora perigosa, definiu-se por evitar conflitos diretos entre superpotências. O seu sucesso em evitar a Terceira Guerra Mundial não foi um feito de somenos.

Mas hoje, este conjunto de ferramentas do pós-guerra está em crise. As instituições e os acordos que antes garantiam a estabilidade estão a desgastar-se. Para evitar um colapso total, devemos olhar para o consenso ideológico e moral que outrora uniu as maiores potências do mundo. Não se trata de nostalgia, mas sim de recordar o que estava em jogo e porque é que essa memória era importante. Sem um compromisso renovado com estes princípios, nenhuma quantidade de equipamento militar ou de medidas técnicas garantirá uma estabilidade global duradoura.

O Dia da Vitória recorda-nos o imenso custo da paz – e os perigos de esquecer os seus fundamentos. À medida que o cenário geopolítico muda, esta continua a ser a mais vital das lições.

(*) Fyodor Lukyanov, editor-chefe do Russia in Global Affairs, presidente do Presidium do Conselho de Política Externa e de Defesa e diretor de investigação do Valdai International Discussion Club.

2025/03/27

Grande Paulo Raimundo


GRANDE Paulo Raimundo!

Encostou o terrorista nazi às cordas!
A não perder!
Só isto?
É tudo?
Ó orelhas, perdeste o fôlego?

Com a saúde no estado em que está, a inflação, a educação, a habitação, o país, as vigarices do rural, os andrébistas e os trumpistas, o órelhas esteve 10 minutos a tentar pôr na boca do entrevistado as suas palavras. Não conseguiu.

Somos pela Paz, sempre fomos e continuamos a ser. Não trocamos saúde, habitação, salários e pensões por armas e guerras. Nunca trocámos e nunca trocaremos. O PS, o PSD, O Livre, o BE que aplaudiram na AR os deputados da Rada não o poderiam fazer na Rada porque os seus partidos estão proibidos. Nós não somos hipócritas. Quem os aplaudiu sancionou o banimento dos seus congéneres.

GRANDE Paulo Raimundo!
Obrigado 😉

2025/03/22

EUA: Entre a Manipulação e a Imparcialidade Homérica

EUA: Entre a Manipulação e a Imparcialidade Homérica
(Viriato Soromenho-Marques, Carlos Fino Facebroncas, 2025/03/20)

Uma das mais dolorosas aprendizagens durante estes mais de três anos de guerra na Ucrânia tem sido a de me confrontar com o trágico declínio da honorabilidade académica e do brio intelectual, tanto nas instituições universitárias como nos meios de comunicação social.

É com tristeza que tenho acompanhado o modo como professores, investigadores e jornalistas têm violado o imperativo de “imparcialidade homérica”, expressão cunhada por Hannah Arendt para definir uma virtude específica da tradição espiritual do Ocidente: a capacidade de analisar com objetividade a realidade, a natureza das situações, e os motivos dos agentes coletivos e individuais, mesmo no quadro de conflitos violentos.



O exemplo indicado por Arendt foi o do modo como Homero, na Ilíada, tratou as principais personalidades envolvidas nesse grande drama épico, escrito na aurora da literatura europeia: o príncipe troiano, Heitor, e o herói grego, Aquiles. O imortal autor grego não menorizou nem diabolizou Heitor, nem idolatrou Aquiles. Pelo contrário, procurou reconhecer neles as qualidades humanas e os motivos que dirigiam a sua conduta. Isso significa estar atento aos dados reais, aos factos elementares, abstraindo-nos dos preconceitos.

Na guerra da Ucrânia nada disso aconteceu. A invasão militar russa, libertou no Ocidente um tsunami propagandístico que há muito esperava que ela acontecesse. Slogans correram a imprensa de todo o mundo, nomeadamente, a frase “invasão não provocada”. Riscar a história, significa colocar a invasão num plano estritamente jurídico e moral.

Se uma agressão não tem causas, isso significa que se tratou do ato de um agente malévolo. Ao aceitarem a tese de uma invasão fora da esfera objetiva e material da causalidade, muitos cientistas sociais juntaram-se ao registo ululante e propagandista de uma nova vaga de russofobia, que há muito estava a ser preparada. Já em 2014, Kissinger acusava a crescente diabolização de Putin nos meios de comunicação social americanos como sendo o pior exemplo da ausência de uma política realista dos EUA perante a Rússia. Na verdade, a russofobia, velha presença na cultura ocidental, foi intensificada nos últimos quinze anos. Disso são prova os filmes e séries, onde os russos são sempre tratados como criminosos.


Henry Kissinger, Conferência de Segurança de Munique, 2014

Perante a guerra, esta ou qualquer outra, o que se espera de um intelectual é o exercício da sua capacidade analítica, antecipada pela procura dos dados empíricos que são as fontes primárias que alimentam o pensamento crítico.

Nada disso sucedeu. Como nos sistemas totalitários, formou-se no Ocidente uma cultura de massa vigilante para com a dissidência. Na imprensa ocidental, vozes desafinadas, jornalistas e colaboradores, mesmo académicos prestigiados, foram afastados. Nas universidades, fez-se caça às bruxas. Carreiras profissionais foram interrompidas. O objetivo de quem domina e manipula consiste em manter o controlo da narrativa binária: “ou és amigo, ou és inimigo”. Para isso, seria preciso esconder os factos, se não fosse possível destruí-los.

Agora, quando a guerra se encontra num momento tão sangrento como decisivo, a necessidade de mergulhar nas fontes, de conhecer os acontecimentos, de ler os documentos, é mais necessária do que nunca. Nesse sentido, os norte-americanos sempre se portaram melhor do que os europeus. Enfrentaram com mais coragem os obstáculos, também imbuídos pelo imperativo ético de denunciarem os abusos praticados pelo seu país para ocultar as suas próprias responsabilidades. São três documentos de autores norte-americanos, aquilo que gostaria de propor ao leitor. Estes três contributos são de uma riqueza extraordinária, e são acessíveis a todos os que a eles queiram aceder. Indispensáveis para a formulação de um juízo esclarecido e livre.

Primeiro. Conferência de Jeffrey Sachs no Parlamento Europeu. No dia 21 de fevereiro, por convite do deputado alemão, conde Michael von der Schulenburg (da Aliança Sahra Wagenknecht), um dos mais famosos e influentes economistas mundiais veio falar ao Parlamento Europeu, até hoje uma das mais belicistas instituições da UE. Durante mais de hora e meia, Jeffrey Sachs falou com conhecimento de causa, profunda sabedoria e notável eloquência sobre a sua experiência vivida junto de responsáveis políticos dos EUA e da Rússia, além de outros países do leste europeu, durante os mais de 30 anos que precederam a guerra. Testemunhou com veemência o efeito devastador de uma política externa dos EUA, onde o excesso de vontade de poder contrastava com a falta de competente prudência (1).

Segundo. Uma Cronologia da Guerra da Ucrânia. Dois escritores e jornalistas independentes americanos – Matt Taibbi e Greg Collard – produziram um documento que é um tesouro documental para historiadores profissionais e amadores. Inseridas nessa cronologia, encontram-se 114 documentos – ofícios desclassificados, filmes, gravações áudio, cópias de declarações oficiais, etc. -, desde a célebre reunião de 9 de fevereiro de 1990 (quando os EUA prometeram à URSS de Gorbachev que a NATO não se estenderia para Leste…) até à atualidade. Descarregando estes materiais, o leitor poderá construir o seu próprio arquivo sobre o sombrio rasto deixado pelas reais causas deste conflito (2).

Terceiro. As responsabilidades do Ocidente. O terceiro e último documento é um ensaio breve, mas muito esclarecedor, de um investigador independente, Benjamin Abelow. Escrito no início do conflito, este ensaio recolhe uma pertinente informação sobre os numerosos esforços de diplomatas, políticos e académicos norte-americanos que tentaram evitar o alargamento da NATO e a degradação crescente das relações russo-americanas que tal implicaria. Muito bem assente nos dados empíricos, o ensaio partilha com os leitores o pensamento de autores de grande relevância, entre os quais sobressaem os seguintes: John Mearsheimer, Stephen F. Cohen, Richard Sakwa, Gilbert Doctorow, George F. Kennan, Chas Freeman, Douglas Macgregor, e Brennan Deveraux (3). Trata-se de uma oportunidade única de alargar horizontes. Sobretudo, o leitor pode encontrar aqui instrumentos que o imunizam contra a poderosa máquina de desinformação e manipulação, que considera a liberdade do espírito crítico como o seu principal inimigo. 

Referências 

2025/03/18

Sebastião, O Mouro de Bruxelas

Sebastião, O Mouro de Bruxelas
(Tiago Franco, Facebroncas,2025/03/17)



Sou um grande admirador da coragem de Sebastião Bugalho. Assim de repente pensarão que estou a brincar mas não, até porque raramente brinco com assuntos de estado. O Sebastião faz-me lembrar aquele cantor que anima as manhãs do Goucha ou do Baião. Da convicção que mete no que faz, na verdadeira festa que tenta trazer enquanto está em cima de um atrelado, a bater palmas ao playback e a animar umas velhinhas ali, no jardim municipal do Crato, e em casa, já acamadas e sem braços fortes que as façam chegar ao comando da televisão.

Não é bem o disparate sem sentido mas sim a forma decidida com que ele é dito ou feito que, verdadeiramente, me apaixona. Em tempos tive um colega assim. Falava alto, não sorria, dizia tudo com uma certeza que convencia logo pela entoação. Maior parte das vezes atirava ao lado mas a pose de estado não deixava espaço para questões.

O Sebastião é dessa cepa. Daquela gente que acredita muito naquilo que diz e raramente tem dúvidas. Afirmar, aos 29 anos e num país de trabalhadores tendencialmente pobres, que se fartou de trabalhar, é um acto arriscado. Para não dizer estúpido.

Em tempos que já lá vão, o amigo Bugalho tinha um CV todo porreiro no linkedin. Entretanto, provando que é de facto um rapaz esperto, apagou-o (pelo menos eu já não o consigo ver) para precaver males maiores.

O Sebastão comecou a escrever artigos de opinião no "I" enquanto fazia uma licenciatura na Católica. Foi esta a sua entrada no mercado de trabalho aos 19 anos. Diz, Vitor Raínho, o director do "I" nessa altura:
"O então diretor do jornal, Vítor Rainho, confirma ao Observador que Bugalho começou por escrever artigos de opinião que começou a enviar-lhe e, mais tarde, acabou por estagiar no jornal: “Na altura em que ele mandava textos de opinião não sabia que era filho da Patrícia [Reis, que tinha trabalhado com Vítor Rainho no passado]. Um dia ela ligou-me a pedir para ele estagiar no jornal para ver se se desencantava com o jornalismo".

Maior parte das pessoas que concorrem a empregos mandam CVs, preenchem formulários, esperam por respostas que, não raras vezes, não aparecem. O Sebastião, que se fartou de trabalhar, entrou nos jornais com um telefonema da mãe.

Não vou fazer o papel hipócrita de desprezar as cunhas e muito menos as ajudas que um pai ou uma mãe possam dar a um filho. Tenho sobre isso uma opinião baseada naquilo que a vida me ensinou. Nunca tive uma cunha para absolutamente nada e, por variadíssimas vezes, escolhi o caminho mais demorado e tortuoso para as evitar. Isso teve um preço que hoje não sei se valeu a pena pagar. Portanto, se a mãe o ajudou e a rede de contactos dos pais o empurraram precocemente, entre o CDS e os jornais, pois tudo bem. O rapaz aproveitou as oportunidades, vestiu um fato, aprumou o discurso de velho do restelo e fez-se à vida.

A culpa de estar em Bruxelas não é dele, é vossa que votam em gente desta.

Agora...há que assumir. É apenas isso. Nada de conversas de proletariado e tal. É que isso enerva, Sebastião. Gente com muito mais talento do que os Bugalhos desta vida nunca chegam sequer a ter uma oportunidade que não seja em forma de um recibo verde. É por respeito a essa gente que o Bugalho, agora eurodeputado com um salário que 97% dos portugueses nunca viram, deve dizer menos disparates e viver o privilégio que lhe foi concedido com alguma discrição. Não é preciso ter vergonha do berço, basta que não se tente passar por aquilo que nunca foi.

Quando o Sebastião mostra a sede de poder e a miragem de um dia chegar a primeiro-ministro (algo em que acredito, sinceramente), fá-lo com um anúncio solene cheio de nada. "Entrevistei 5 primeiros-ministros e por isso sei o que devem ter e o que não devem ter os responsáveis do cargo". É uma frase ao nível de "já vi 300 desempates por penaltis, sei que uma baliza tem 7 metros e nenhum homem chega a 3 metros, logo, matematicamente, sei bem como bater um penalti à malha lateral e nunca falhar".

Quando nos diz que sabe perfeitamente quem apoiar para esse cargo (Montenegro) está, no fundo, a explicar que tal como no seu exemplo, o "fartar de trabalhar" nos corredores dos favores e na dependência dos partidos, é o "que devem ter" os homens e mulheres que, neste país, querem chegar a um cargo relevante de decisão política.

Nunca me incomodou que o Sebastião fosse um deputado em tenra idade. Aliás, acho isso uma enorme vantagem para a vida no parlamento europeu. O que sempre me preocupou foi ver aquele rapaz, num corpo novo com o discurso bafiento de outros tempos. E perceber que alguém que, durante meses e anos, fez fretes ao PSD no comentariado, acabou por ser recompensado. Alegadamente, claro. Pode ter sido apenas coincidência. Notem ainda na rapidez com que ele percebeu que nem CDS, e muito menos Chega, o colocariam onde ele queria estar.

Sebastião é mais um, entre uma enorme linhagem de privilegiados, que entram nos corredores da política pela porta grande. Que conseguem empregos com telefonemas, que nasceram perto de gente que conhece gente, que aliam um discurso fluente a uma gritante falta de princípios. Que mudam as convicções consoante o programa que, entendam, são essencialmente eles próprios e as suas ambições. Não há nada que Sebastião possa ou queira fazer por quem nele votou. Daqui a 20 anos terá um CV cheio de nomeações e saltos entre cargos do partido.

Percebo a narrativa, percebo que queira dar a imagem de um homem que subiu a pulso, percebo que se queira mostrar como um de nós. Mas como nada disso é verdade e como, ele próprio perceberá, a realidade política portuguesa já está sobrecarregada de mentiras e disparates, porque não se remete apenas ao silêncio enquanto vai tecendo as linhas do próximo salto?
Trabalha menos Sebastião. 

A sério, tira umas férias. E vê se te calas.