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2020/07/29

Cultura e Luta de Classes

Imperialismo & imperialismos, SA

(Manuel Augusto Araújo, AbrilAbril, 2020/07/27)

Nos tempos actuais há uma evidente preponderância do capitalismo neoliberal cujo foco principal é a financeirização da economia e a adopção de políticas que visam reduzir os custos do factor trabalho, sejam quais forem as consequências sociais e económicas dessas políticas que precarizam o trabalho, atacam os direitos dos trabalhadores, fragmentam e proletarizam a força de trabalho, ainda que muitos não reconheçam a proletarização a que estão sujeitos.

Para impor e consolidar essa nova ordem, que se começa a definir a partir dos finais dos anos 60, é tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como o controle dos meios de comunicação social que preparam e justificam as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais, rádio, televisão, jornais e dos novos proporcionados pelas redes informáticas, e a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas com dois grandes objectivos: um económico, pela captura pelos mercados dos bens culturais e pela concentração das indústrias culturais e criativas; outro político-social impondo a hegemonia da cultura anglo-saxónica pela exportação massiva dos seus produtos de entretenimento, tratando a cultura como uma campanha publicitária. Uma situação em que Adorno surge como um quase profeta quando, em 1944, com Horkheimer(1), define a indústria cultural como um sistema político e económico que tem por finalidade produzir bens de cultura – filmes, livros, música popular, programas de televisão, etc. – como mercadorias, com uma estratégia de controlo social modelando as consciências das massas populares.

Essa tendência torna-se mais evidente quando o Estado-nação vai progressivamente renunciando à sua soberania e se alarga a superfície global onde se dissolve o território, a língua e a identidade cultural, tornados conceitos móveis e transitivos. Acelera-se com o fim da equivalência do dólar-ouro e a primeira grande crise do petróleo em 1973, impõe-se nos anos 80 com as novas tecnologias.

2020/01/08

A Estupidificação Da Nova Ordem Capitalista

As modernidades para lá do espelho
(Manuel Augusto Araújo, AbrilAbril, 2020/01/07)

Ultrapassado o espelho da «modernidade» assumida por algumas esquerdas, por mais que lapidem a realidade o que se encontra, de facto, é a renúncia a uma sociedade que se oponha à desordem do mundo actual.

A batalha ideológica que se trava desde que Marx estabeleceu as traves mestras de interpretação do mundo, em que a ideia central é a relação entre o capital e o trabalho, a luta de classes, as relações entre infra-estrutura e superestrutura, tem sido intensa e, na actualidade, é polarizada pelo imperialismo norte-americano que persegue dois grandes objectivos consonantes: um económico e outro cultural.

2019/12/22

Sobre Bananas a Propósito da Ideologia Dominante

As bananas e suas cascas
(Manuel Augusto Araújo, AbrilAbril, 2019/12/17)

Anda o mundo infestado de performers que fazem parte da epifania colectiva destes tempos de danação em que quase deixa de haver lugar para a criação artística excepto como forma de ganhar dinheiro.

Um artista, Maurizio Castellan, cola numa parede uma banana com fita adesiva prateada, em três versões, duas provas de artista e uma final, depois de um ano a «trabalhar nessa ideia». Um trabalho muitíssimo árduo como se presume, em que acabou por escolher três bananas entre as centenas que andam pelos mercados. Aos compradores, entre eles um museu, a «obra» foi vendida por 120 mil dólares. O curador da galeria explica que é necessário ir substituindo a banana todas as semanas, «como uma flor».

2018/07/17

Só com os valores de Abril Portugal terá futuro

As desigualdades na distribuição do rendimento e as funções constitucionais do Estado
(Miguel Tiago in O Militante, 2018/07)

Estamos perante uma utilização crescente de uma grande parte dos instrumentos formais do Estado – a força, a lei, a fiscalidade, a educação e a cultura – ao serviço da classe dominante e da acumulação e domínio monopolista, com o contributo decisivo dos partidos ao serviço desses interesses. A fiscalidade que constitucionalmente se estabelece como ferramenta para uma das incumbências prioritárias do Estado (Art.º 81.º da CRP) é afinal de contas utilizada como uma ferramenta de concentração de riqueza e de privilégio dos grandes grupos económicos em que se concentram os benefícios fiscais. A política fiscal que devia orientar-se para a distribuição da riqueza, directa e indirectamente, está objectivamente ao serviço das grandes empresas e dos que vivem de rendas, lucros e juros que continuam a ser taxados com uma exigência e uma incidência muito inferior aos rendimentos do trabalho. Ao mesmo tempo, a lei e a força são, não raras vezes, utilizadas para diminuir e conter direitos dos trabalhadores e manter a ordem da grande burguesia, quer no conflito laboral, quer no conflito social. A Educação e a Cultura estão igualmente – e o seu subfinanciamento é um mecanismo para a obtenção desse desígnio – a ser gradual e crescentemente colocadas ao serviço da reprodução da cultura da classe dominante, sendo convertidas em câmaras de ressonância da ideologia burguesa e simultaneamente em mercadorias.

2018/04/16

Para a História da (des)Cultura Portuguesa

«O modelo produziu os resultados conhecidos. Mas o que que apontamos ao modelo não são erros ou incompetência. A extrema burocratização das candidaturas não é uma falha. Os absurdos requisitos e critérios de cálculo não são uma falha. As avaliações e pareceres dos júris não são uma falha. Os atrasos na publicação dos resultados e nos pagamentos não são uma falha. São parte do roteiro: empurrar a actividade cultural para o mercado; desresponsabilizar o Estado do apoio às artes e à cultura em geral; condenar a «subsidio-dependência dos artistas»; fazer falhar os mecanismos do Estado, que deveriam constituir um serviço público de cultura; terminar com a noção democrática de direito à cultura, como coisa de todos os cidadãos, em todo o território nacional – os eixos da política de direita para o sistema público de apoio às artes.»

Ideias para a luta na Cultura (I). História de uma devastação
(Pedro Penilo in AbrilAbril, 2018/04/15)

Uma noite, em 2012, numa reunião pública do Manifesto em defesa da Cultura, um jovem pediu para falar. O debate era sobre as grandes questões da política cultural, nos tempos da intervenção da Troika em Portugal, e da necessidade de lhe fazer frente. O jovem queria tirar uma conclusão útil daquilo que lhe ia na cabeça. E perguntou:

«Tenho estado a ouvir-vos e preciso de saber o que fazer. Sou fotógrafo. Os meus pais emigram amanhã. Queria perguntar-vos: vale a pena ficar aqui?»

2018/04/07

Sobre a Nossa Cultura

Cultura - Encosta Acima, Imitando Sísifo
(Manuel Rocha, Diário As Beiras, 2018/04/07)

Se as decisões da DGArtes fossem leis divinas, Coimbra estaria condenada a quase não dispor de estruturas profissionais de criação artística. E se os membros dos júris nomeados pelo Ministério da Cultura fossem deuses, saberíamos já quais os sons, palavras e cores estariam autorizados, ou não, a habitar o mundo e as vidas dos mortais - criadores e público. Mas não. A criação artística nunca é só assunto dos artistas, do mesmo modo que as governações nunca são só a vontade dos governantes. Por isso vimos assistindo nestes dias ao protesto justo de artistas, agentes culturais, trabalhadores do sector da Cultura e públicos, num brado tal que o governo vem anunciando, a conta-gotas, o aumento de verbas destinadas ao apoio à Cultura. Como se de uma ópera bufa se tratasse, um criativo secretário de Estado vem escrevendo nos anais das políticas governativas um libreto delirante, entrando e saindo de cena de acordo com as exigências do enredo, nomeando júris, somando “roadshows” em que a arrogância governativa se mascara de diálogo.

Argumentação de um Homem em Prol da Cultura

Sem Titulo
(Manuel Rocha in facebook, 2018/04/07)

Cara [..]: Não há nos seres da Natureza um que não cuide da nutrição ou do abrigo. A mais inofensiva das plantas que não reúna estes requisitos de existência não tem como não falecer.

Com os humanos acontece o mesmo, mas, sabe-se lá por que razão, sempre a sua deriva no mundo foi acompanhada da representação do que existe, seja realidade seja sonho. E a isso chamou Cultura, que é o grande chapéu em que se abriga a sua natureza humana e o rasto que dela desprende, e a Arte, que é um seu operacionalizador.

A Cultura não está antes nem depois do pão. E às vezes é, ela mesma, o mais essencial dos pães. Olivier Messiaen era um grande compositor francês que, no decorrer da II Grande Guerra, foi feito prisioneiro pelos nazis e internado no campo de concentração de Görlitz. Saberá que o pão não era, ali, abundante. Mas nem por isso Messiaen renunciou à sua maior prioridade: compor o Quarteto Para o Fim dos Tempos, que nós herdámos como testemunho maior da dignidade em tempos de ignomínia.

Não seguiu Messiaen o seu conselho, [...]. A luta dele pelo pão não era dissociável da necessidade de permanecer humano, muito para além do exemplo da planta que estende raízes à procura de nutrientes. Para ele e para os seus companheiros de cativeiro, a estreia da sua obra no rigor do gelo do inverno polaco terá sido o maior pão, o mais essencial abrigo.

Repare que, para lhe responder, nem lhe vim falar das prioridades governativas que põem os banqueiros em primeiro lugar (muito antes do pão dos concidadãos dos governantes); nem das prioridades da "Europa", que nos suga a existência em equilíbrios que nunca o chegam a ser, porque nos levam o pão, a casa e a Cultura; nem do chumbo das leis laborais, precisadas de ser pão, casa e tempo para a família. E nem sequer lhe vim dizer que os trabalhadores da Cultura, e os seus filhos crianças, também têm direito ao pão e à casa que a Ana Beatriz entende poderem ser-lhes negados. Vim apenas chamar-lhe a atenção para a sua própria natureza e para o insulto que as suas declarações constituem, a si própria e aos seus, calhando ter um filho ou um neto que um dia pegou num lápis e desenhou o seu retrato, com amor e empenho estético.

O que mais me custa é que a marcha do mundo também dependa de quem levou demasiado a sério a macabra História da Cigarra e da Formiga. Cumprimentos.

Só 25 Milhões? Eu Só Quero Investir 1% em Cultura!

Isso mesmo, ao longo dos próximos 3 anos vamos gastar 75 milhões em cultura. Uma média de 25 milhões por ano.

Depois da bronca sair à rua, o governo aumentou o "favorzinho" em 4 milhões e propõe-se, agora, "oferecer" este ano 19 milhões aos "agentes culturais.

Os "agentes culturais" exigem 25, o governo dá 19. A discussão, a polémica, anda em torno de gastar, "em cultura", um bocadinho menos de 20 ou um bocadinho mais de 20. Milhões.

Alguém perguntou a alguém quanto é que "o governo" devia gastar em submarinos? Ninguém discute a utilidade dos 880 milhões enterrados em dois supositórios pretos? 880 milhões só na compra. Manutenção e operação são contas à parte. Um bocadinho menos de mil em supositórios pretos, um bocadinho menos de 20 em cultura. 1000 para supositórios, 20 para cultura. Milhões. See what I mean?

Alguém contestou os 11 000 milhões? É isso mesmo, 11 mil milhões, 11 000 000 000, de exposição dos contribuintes ao NovoBanco? Sim! Só ao NovoBanco! Só ao NovoBanco que agora é do fundo abutre Lone Star. Alguém sabe sequer que entre o que já enterrámos, já emprestámos, podemos ter de vir a enterrar, e podemos vir a ser obrigados a emprestar, ao NovoBanco, que pertence ao fundo privado LoneStar, andam 11 mil milhões de euros? 11 000 para o NovoBanco da LoneStar, 20 para a nossa cultura, para a cultura portuguesa, para a música e os músicos e os maestros e as orquestras e os bombos e os violinos e os pianos, para o teatro, o cinema, os atores, encenadores, realizadores, sonoplastas, figurinistas, escritores e dramaturgos, guionistas, para a pintura e os pintores, para os palhaços que fazem rir crianças e põem sorrisos nas vidas dos adultos, para isto tudo e muito mais, e ainda para estes todos que somos nós quando deles vamos usufruir, 20, para um fundo privado, dedicado a estraçalhar a economia real: 11 000. Milhões.

Mas este escrito nem tem nada a ver com cultura. Os 20 com que o poder quer calar a nossa cultura, foi só a primeira coisa que me veio à cabeça, ao ler o artigo do José Goulão sobre mais um, este sim gigantesco, "investimento", que vamos ser chamados a pagar com o dinheiro que não quisermos investir em cultura, educação, saúde e habitação.

Preparem-se porque não tarda nada vai ser mais um regabofe de autoestradas, rotundas, pontes e viadutos para tornar tudo compatível com a plena liberdade de circulação de ... material militar.

Acaba ele assim: «As despesas ficam a cargo dos cidadãos de cada Estado membro, recorda-se, como se não lhes bastassem a austeridade, os salários congelados, o desemprego, as consequências da obsessão do défice, a precariedade, a anarquia imparável atacando o mercado laboral e outras consequências da moderna vida em paz, liberdade e democracia. Poderão os países, contudo, vir a usufruir de uma eventual «contribuição financeira» da União Europeia. Que além de incerta, pela própria formulação, certamente será canalizada pelas vias opacas por onde costumam sumir-se os subsídios, em direcção às contas on ou offshore dos beneficiários habituais.

Em termos meramente formais, é certo, estas medidas da militarização do nosso quotidiano são ainda projectos em poder dos mecanismos de decisão. Cabe aos cidadãos quebrar as barreiras que vão sendo erguidas para os impedir de conhecer o que se prepara à sua revelia e combater tão monstruosa como desumana engrenagem. Mesmo que seja cada vez mais poderosa esta sensação de inutilidade e vulnerabilidade perante a imensa máquina de guerra em movimento.»

Mas vão lá ler o artigo, vale a pena.

2018/03/23

Superar a Cultura de Catástrofe em Permanência

Monumento Nacional.
Tinta da china e fotografia.
Diário de Lisboa,1969/11/21.
João Abel Manta
Spleen
(Manuel Augusto Araújo in AbrilAbril, 2018/03/19)

Não haverá uma tradução que exprima a amplitude do significado de spleen, o que explica porque Baudelaire o utilizou, sem tentar traduzir, no título de um grupo de poemas Spleen de Paris e no título de vários dos poemas dessa série (*). Spleen é o que Walter Benjamin descreve «como o sentimento que corresponde à catástrofe em permanência». Nos tempos que se estão a viver é determinante para o pensamento único impor um sistema a partir de condições pré-estabelecidas para dissuadir os homens de intervir. Vive-se mergulhado num permanente spleen.

Sistema que faz prova de vida como se fosse um caleidoscópio em que, sempre com os mesmos cristais, quando se roda o tubo se transforma a desordem numa nova ordem e as sucessivas imagens virtuais simulam uma pulsação que não existe nem desinquieta a base com que se formam novas imagens. A realidade permanece quase imutável por debaixo das camadas de maquilhagem que se vão acumulando, deixando intocado o essencial. A perversidade é a crescente importância que as imagens virtuais adquirem para garantir a quase imobilidade do sistema, num cenário em que o simulacro e simulação substituíram a realidade.

2017/09/11

Grande Reportagem de uma Grande Homenagem

Grande texto, grande reportagem de uma grande homenagem.

Tudo em grande como costuma sair da pena do "Manel do Violino".

Obrigado Manel, não pares de escrever violino, perdão, de tocar violino.

A música dos dias em que o futuro nasceu

(Manuel Pires Rocha in Avante!, 2017/09/07

Quando as primeiras notas da Carvalhesa soaram nas colunas de som do Palco 25 de Abril, a orquestra e o coro estavam já instalados e prontos a iniciar o Concerto “100 Anos de Futuro”. A praça foi então tomada pela dança colectiva que sempre acompanha o toque da velha moda transmontana. Por breves instantes a Sinfonietta de Lisboa e o Coro Lisboa Cantat foram o público, e o público o protagonista.

Calado o brado das muitas vozes, acendidas as luzes sobre o palco, instalado o silêncio na praça, por sobre o sussurro da Festa, as madeiras abriram caminho às vozes da primeira das Danças Polovtsianas de Borodine, no primeiro dos maravilhamentos do Concerto. Portuguesas as vozes mas russo o cantar, Alexander Borodine moldando a música do seu povo. Era o surgimento de uma nova Rússia, a vida colectiva construída a partir da imagem sonora popular, um traço mais na criação da consciência revolucionária que viria a dar origem à Revolução de Outubro. Vibrante a orquestra, as Danças foram fixando no relvado, ainda pouco pisado, quem passava pela avenida que circunda a praça.

2017/09/04

MEC foi à Festa do Avante! (IV)

Uma aventura dentro do comunismo real - o MEC foi à Festa do Avante! (IV)
Quinta-feira, 4 de Setembro de 2008
Texto Miguel Esteves Cardoso
(conclusão)

Espero que não se ofendam os sportinguistas e comunistas quando eu disser que estar na Festa do Avante! foi como assistir à festa de rua quando o Sporting ganhou o campeonato. Até aí eu tinha a ideia, como sábio benfiquista, que os sportinguistas eram uma minúscula agremiação de queques em que um dos requisitos fundamentais era não gostar muito de futebol.  Quando vi as multidões de sportinguistas a festejar – de todas as classes, cores e qualidades de camisolas -, fiquei tão espantado que ainda levei uns minutos a ficar profundamente deprimido.

Por outro lado, quando se vê que os comunistas não fazem o favor de corresponder à conveniência instantaneamente arrumável das nossas expectativas - nem o PCP é o IKEA -, a primeira reacção é de canseira. Como quem diz:”Que chatice – não só não são iguais ao que eu pensava como são todos diferentes. Vou ter de avaliá-los um a um. Estou tramado. Nunca mais saio daqui.”  Nem tão pouco há a consolação ilusória do pick and choose. ...É uma sólida tradição dizer que temos de aprender com os comunistas... Infelizmente é impossível. Ser-se comunista é uma coisa inteira e não se pode estar a partir aos bocados. A força dos comunistas não é o sonho nem a saudade: é o dia-a dia; é o trabalho; é o ir fazendo; e resistindo, nas festas como nas lutas. Há uma frase do Jerónimo de Sousa no comício de encerramento que diz tudo. A propósito de Cuba (que não está a atravessar um período particularmente feliz), diz que “resistir já é vencer”.  É verdade – sobretudo se dermos a devida importância ao “já”. Aquele “já” é o contrário da pressa, mas é também “agora”.

Na Festa do Avante! Não se vêem comunistas desiludidos ou frustrados. Nem tão pouco delirantemente esperançosos. A verdade é que se sente a consciência de que as coisas, por muito más que estejam, poderiam estar piores. Se não fossem os comunistas: eles.  Há um contentamento que é próprio dos resistentes. Dos que existem apesar de a maioria os considerar ultrapassados, anacrónicos, extintos. Há um prazer na teimosia; em ser como se é. Para mais, a embirração dos comunistas, comparada com as dos outros partidos, é clássica e imbatível: a pobreza. De Portugal e de metade do mundo, num Portugal e num mundo onde uns poucos têm muito mais do que alguma vez poderiam precisar. 

Na Festa do Avante! Sente-se a satisfação de chatear. O PCP chateia. Os sindicatos chateiam. A dimensão e o êxito da Festa chateiam. Põem em causa as desculpas correntes da apatia. Do ensimesmamento online, do relativismo ou niilismo ideológico. Chatear é uma forma especialmente eficaz de resistir. Pode ser miudinho – mas, sendo constante, faz a diferença.  Resistir é já vencer. A Festa do Avante! é uma vitória anualmente renovada e ampliada dessa resistência. ... Verdade se diga, já não é sem dificuldade que resisto. Quando se despe um preconceito, o que é que se veste em vez dele? Resta-me apenas a independência de espírito para exprimir a única reacção inteligente a mais uma Festa do Avante!: dar os parabéns a quem a fez e mais outros a quem lá esteve. Isto é, no caso pouco provável de não serem as mesmíssimas pessoas.  Parabéns! E, para mais, pouquíssimo contrariado. (E só com um bocadinho de nada com medo)
In revista "Sábado" - Edição de 13 de Setembro de 2007

o MEC foi à Festa do Avante! (III)

Uma aventura dentro do comunismo real - o MEC foi à Festa do Avante! (III)
Quarta-feira, 3 de Setembro de 2008
Texto Miguel Esteves Cardoso
(Continuação)

A Exposição do Mundo português era “para inglês ver”, mas a Festa do Avante! em muitos aspectos importantes, parece mesmo inglesa. Para mais, inglesa no sentido irreal. As bichas, direitinhas e céleres, não podiam ser menos portuguesas. Nem tão-pouco a maneira como cada pessoa limpa a mesa antes de se levantar, deixando-a impecável.  As brigadas de limpeza por sua vez, estão sempre a passar, recolhendo e substituindo os sacos do lixo. Para uma festa daquele tamanho, com tanta gente a divertir-se, a sujidade é quase nenhuma. É maravilhoso ver o resultado de tanto civismo individual e de tanta competência administrativa. Raios os partam. 

Se a Festa do Avante! dá uma pequena ideia de como seria Portugal se mandassem os comunistas, confessemos que não seria nada mau. A coisa está tão bem organizada que não se vê. Passa-se o mesmo com os seguranças - atentos mas invisíveis e deslizantes, sem interromper nem intimidar uma mosca.  O preconceito anticomunista dá-os como disciplinados e regimentados – se calhar, estamos a confundi-los com a Mocidade portuguesa. Não são nada disso. A Festa funciona para que eles não tenham de funcionar. Ao contrário de tantos festivais apolíticos, não há pressa; a ansiedade da diversão; o cumprimento de rotinas obrigatórias; a preocupação com a aparência. Há até, sem se sentir ameaçado por tudo o que se passa à volta, um saudável tédio, de piquenique depois de uma barrigada, à espera da ocupação do sono.

Quando se fala na capacidade de “mobilização” do PCP pretende-se criar a impressão de que os militantes são autómatos que acorrem a cada toque de sineta. Como falsa noção, é até das mais tranquilizadoras. Para os partidos menos mobilizadores, diante do fiasco das suas festas, consola pensar que os comunistas foram submetidos a uma lavagem ao cérebro.  Nem vale a pena indagar acerca da marca do champô. Enquanto os outros partidos puxam dos bolsos para oferecer concertos de borla, a que assistem apenas familiares e transeuntes, a Festa do Avante! enche-se de entusiásticos pagadores de bilhetes.  E porquê? Porque é a festa de todos eles. Eles não só querem lá estar como gostam de lá estar. Não há a distinção entre “nós” dirigentes e “eles” militantes, que impera nos outros partidos. Há um tu-cá-tu-lá quase de festa de finalistas.  É um alívio a falta de entusiasmo fabricado – e, num sentido geral, de esforço. Não há consensos propostos ou unanimidades às quais aderir. Uns queixam-se de que já não é o que era e que dantes era melhor; outros que nunca foi tão bom.

É claro que nada disto será novidade para quem lá vai. Parece óbvio. Mas para quem gosta de dar uma sacudidela aos preconceitos anticomunista é um exercício de higiene mental. Por muito que custe dize-lo, o preconceito - base, dos mais ligeiros snobismos e sectarismos ao mais feroz racismo, anda sempre à volta da noção de que “eles não são como nós”. É muito conveniente esta separação. Mas é tão ténue que basta uma pequena aproximação para perceber, de repente, que “afinal eles são como nós”.  Uma vez passada a tristeza pelo desaparecimento da justificação da nossa superioridade (e a vergonha por ter sido tão simples), sente-se de novo respeito pela cabeça de cada um.

o MEC foi à Festa do Avante! (II)

Uma aventura dentro do comunismo real - o MEC foi à Festa do Avante! (II)
Terça-feira, 2 de Setembro de 2008
Texto Miguel Esteves Cardoso
(continuação)

Toda a gente se trata da mesma maneira, sem falsas distâncias nem proximidades. Ninguém procura controlar, convencer ou impressionar ninguém. As palavras são ditas conforme saem e as discussões são espontâneas e animadas. É muito refrescante esta honestidade. É bom (mas raro) uma pessoa sentir-se à vontade em público. Na Festa do Avante! é automático.

Dava-nos jeito que se vestissem todos da mesma maneira e dissessem e fizessem as mesmas coisas – paciência. Dava-nos jeito que estivessem eufóricos; tragicamente iluminados pela inevitabilidade do comunismo – mas não estão. Estão é fartos do capitalismo – e um bocadinho zangados. Não há psicologias de multidões para ninguém: são mais que muitos, mas cada um está na sua. Isto é muito importante. Ninguém ali está a ser levado ou foi trazido ou está só por estar. Nada é forçado. Não há chamarizes nem compulsões. Vale tudo até o aborrecimento. Ou seja: é o contrário do que se pensa quando se pensa num comício ou numa festa obrigatória. Muito menos comunista.

Sabe bem passear no meio de tanta rebeldia. Sabe bem ficar confuso. Todos os portugueses haviam de ir de cinco em cinco anos a uma Festa do Avante!, só para enxotar estereótipos e baralhar ideias.

Convinha-nos pensar que as comunas eram um rebanho mas a parecença é mais com um jardim zoológico inteiro. Ali uma zebra; em frente um leão e um flamingo; aqui ao lado uma manada de guardas a dormir na relva.

Quando se chega à Festa o que mais impressiona é a falta de paranóia. Ninguém está ansioso, a começar pelos seguranças que nos deixam passar só com um sorriso, sem nos vasculhar as malas ou apalpar as ancas. Em matéria de livre de trânsito, é como voltar aos anos 60. Só essa ausência de suspeita vale o preço do bilhete. Nos tempos que correm, vale ouro. Há milhares de pessoas a entrar e a sair mas não há bichas. A circulação é perfeitamente sanguínea. É muito bom quando não desconfiamos de nós. Mesmo assim tenho de confessar, como reaccionário que sou, que me passou pela cabeça que a razão de tanta preocupação talvez fosse a probabilidade de todos os potenciais bombistas já estarem lá dentro, nos pavilhões internacionais, a beber copos uns com os outros e a divertirem-se.    

A Festa do Avante! é sempre maior do que se pensa. Está muito bem arrumada ao ponto de permitir deambulações e descobertas alegres. Ao admirar a grandiosidade das avenidas e dos quarteirões de restaurantes, representando o país inteiro e os PALOP, é difícil não pensar numa versão democrática da Exposição do Mundo Português, expurgada de pompa e de artifício. E de salazarismo, claro.

Assim se chega a outro preconceito conveniente. Dava-nos jeito que a festa do PCP fosse partidária, sectária e ideologicamente estrangeirada. Na verdade, não podia ser mais portuguesa e saudavelmente nacionalista. O desaparecimento da União Soviética foi, deste ponto de vista, particularmente infeliz por ter eliminado a potência cujas ordens eram cegamente obedecidas pelo PCP. Sem a orientação e o financiamento de Moscovo, o PCP deveria ter também fenecido e finado. Mas não: ei-lo. Grande chatice. Quer se queira quer não (eu não queria), sente-se na Festa do Avante! Que está ali uma reserva ecológica de Portugal. Se por acaso falharem os modelos vigentes, poderemos ir buscar as sementes e os enxertos para começar tudo o que é Portugal outra vez.

A teimosia comunista é culturalmente valiosa porque é a nossa própria cultura que é teimosa. A diferença às modas e às tendências dos comunistas não é uma atitude: é um dos resultados daquela persistência dos nossos hábitos. Não é uma defesa ideológica: é uma prática que reforça e eterniza só por ser praticada. (Fiquemos por aqui que já estou a escrever à comunista).

o MEC foi à Festa do Avante! (I)

Uma aventura dentro do comunismo real - o MEC foi à Festa do Avante! (I)
Segunda-feira, 1 de Setembro de 2008
Texto Miguel Esteves Cardoso

E teve medo, muito medo. Às constantes tentativas de intimidação por parte dos inimigos comunistas, o repórter assumidamente reaccionário respondeu com a sua polaróide e registou todas as adversidades. Entre uma e outra conversas mais azeda, ainda teve tempo para comer bem e beber melhor.

Dizem-se muitas mentiras acerca da Festa do Avante! Estas são as mais populares: que é irrelevante; que é um anacronismo; que é decadente; que é um grande negócio disfarçado de festa; que já perdeu o conteúdo político; que hoje é só comes e bebes.

Já é a segunda vez que lá vou e posso garantir que não é nada dessas coisas e que não só é escusado como perigoso fingir que é. Porque a verdade verdadinha é que a Festa do Avante! faz um bocadinho de medo.

O que se segue não é tanto uma crónica sobre essa festa como a reportagem de um preconceito acerca dela - um preconceito gigantesco que envolve a grande maioria dos portugueses. Ou pelo menos a mim.

Porque é que a Festa do Avante! faz medo?

É muita gente; muita alegria; muita convicção; muito propósito comum. Pode não ser de bom-tom dizê-lo, mas o choque inicial é sempre o mesmo: chiça!, Afinal os comunistas são mais que as mães. E bem dispostos. Porquê tão bem dispostos? O que é que eles sabem que eu ainda não sei?

É sempre desconfortável estar rodeado por pessoas com ideias contrárias às nossas. Mas quando a multidão é gigante e a ideia é contrária e só uma – então, muito francamente, é aterrador. Até por uma questão de respeito, o Partido Comunista Português merece que se tenha medo dele. Tratá-lo como uma relíquia engraçada do século XX é uma desconsideração e um perigo. Mal por mal, mais vale acreditar que comem criancinhas ao pequeno-almoço.

Bem sei que a condescendência é uma arma e que fica bem elogiar os comunistas como fiéis aos princípios e tocantemente inamovíveis, coitadinhos.

É esta a maneira mais fácil de fingir que não existem e de esperar, com toda a estupidez, que, se os ignoramos, acabarão por se ir embora.

As festas do Avante!, por muito que custe aos anticomunistas reconhecê-lo, são magníficas.

É espantoso ver o que se alcança com um bocadinho de colaboração. Não só no sentido verdadeiro, de trabalhar com os outros, como no nobre, que é trabalhar de graça.

A condescendência leva-nos a alvitrar que “assim também eu” e que as festas dos outros partidos também seriam boas caso estivessem um ano inteiro a prepará-las. Está bem, está: nem assim iam lá. Porque não basta trabalhar: também é preciso querer mudar o mundo. E querer só por si, não chega. É preciso ter a certeza que se vai mudá-lo.

Em vez de usar, para explicar tudo, o velho chavão da “ capacidade de organização” do velho PCP, temos é que perguntar porque é que se dão ao trabalho de se organizarem.

Porque os comunistas não se limitam a acreditar que a história lhes dará razão: acreditam que são a razão da própria história. É por isso que não podem parar; que aguentam todas as derrotas e todos os revezes; que são dotados de uma avassaladora e paradoxalmente energética paciência; porque acreditam que são a última barreira entre a civilização e a selvajaria. E talvez sejam. Basta completar a frase "Se não fossem os comunistas, hoje não haveria..." e compreende-se que, para eles, são muitas as conquistas meramente "burguesas " que lhe devemos, como o direito à greve e à liberdade de expressão.

É por isso que não se sentem “derrotados”. O desaparecimento da URSS, por exemplo, pode ter sido chato mas, na amplitude do panorama marxista-leninista, foi apenas um contratempo. Mas não é só por isso que a Festa do Avante! faz medo. Também porque é convincente. Os comunas não só sabem divertir-se como são mestres, como nunca vi, do à-vontade. Todos fazem o que lhes apetece, sem complexos nem receios de qualquer espécie. Até o show off é mínimo e saudável.

2017/09/02

Venham Ver a Festa !

Não é novidade e por isso nem sequer me surpreende, mas cansa.

Começou ontem o maior evento político-cultural nacional.

Durante dois dias e meio vão passar pela Festa do Avante mais de 200 artistas, visitantes do norte ao sul do país e de todos os cinco continentes, representantes de dezenas de partidos comunistas de todo o mundo e de todas as fábricas, escolas, campos, distritos e concelhos do país.

Durante mais dois dias vão ter lugar dezenas de concertos de música popular portuguesa e do mundo, vão realizar-se dezenas de debates, com pessoas que estiveram nos locais, sem comentadeiros de ouvir dizer e que reproduzem as imagens das centrais que vendem desinformação a metro. Vão lá estar sírios que estiveram na guerra, palestinianos que saíram do campo de concentração de Gaza, ex-guerrilheiros das FARC que pela primeira vez viajam com passaporte, venezuelanos que  votaram na constituinte e compram produtos nos armazéns estatais porque os golpistas pinochistas queimam e escondem a comida. Alemães que gritam em letras garrafais serem dos bons, por contraposição aos maus que nos impuseram uma austeridade destruidora. Estão lá representantes de toda a manta de retalhos do comunismo espanhol, os eurocomunistas do PCE, os refundadores, os catalães, os galegos, todos.

Qualquer jornalista passaria ali os três dias em diretas de 24 horas para ouvir, gravar, questionar esta amálgama de informação em primeira mão. Qualquer? Sim, mas teriam de ser jornalistas e não jornaleiros, teriam de trabalhar para meios de informação e não caneiros publicitários de propaganda.

Sabiam?

Não?

Eu sei porque estive lá ontem. Nos pasquins nacionais nem uma referência de capa. Combinaram todos? É cartel? Não, é pior! São os meios de informação todos nas mãos da burguesia a reproduzirem a ideologia dominante. A censurar, a esconder, a silenciar um mundo que está ali ao alcance de todos nós.

Basta ir lá.

Não querem passar por lá?

É ali na Atalaia, Seixal. Aquilo está maior, tem espaço para mais gente.

Apareçam, bebam umas jolas, ou umas vodcas, umas ponchas ou uns mojitos, ou uns Douros, ou uns Dãos que estão a bom preço, comam umas espetadas, ou umas catchupas, ou uma mariscada de Sesimbra, ou um esparguete bolonhesa feito por italianos, ou uma sandes de leitão na Bairrada, ou uma patatas diablo, oiçam umas coisas e conversem com o tipo do lado que não morde ;-)

Apareçam ;-)