Uma idade média peninsular narrada pelas vozes das gentes
(in wook, 2017/11/23)
Este segundo volume da História de Portugal do Professor Catedrático jubilado António Borges Coelho abarca toda o período de implantação da nova monarquia nesta nossa peninsula, desde as desavenças entre Afonsos, Raimundos e Teresas, passando pelas guerras religiosas, de saque, razia e conquista, até aos reinos do Algarve e de além mar. De salientar a escolha da batalha de S. Mamede em 1128 como momento fundador, por contraponto ao legalista ano da compra com oiro do reconhecimento papal ou, ao menos, mas ainda legalista momento do reconhecimento interesseiro imposto ao imperador Afonso VI e recusando muito cedo as tentativas de ligar a fundação de uma nação à gestação de uma linhagem de ungidos por deus para reinar: uma nação ganha existência quando as gentes a reclamam e não quando os ungidos a reconhecem.
Magnifica a capacidade de por a falar os documentos como as vozes lhes dão vida, as vozes das gentes que os exigiram, os negociaram, os ditaram, os escreveram, as vozes da gente pequena esfomeada, dos ricos homens injustiçados, dos reis, príncipes e senhores plenos de poder para mandar e ditar, dos monges, párocos e prelados, únicos alfabetos num mundo de escrever latino e de falar galaico.
Literariamente assinalável é a navegação por séculos de história sem nunca destrinçarmos o real falar do documento da construtora narrativa do historiador. É sempre um prazer ler com prazer uma história de uma nação cada vez mais dispensável.
«Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação. Só há liberdade a sério quando pertencer ao povo o que o povo produzir.»(Sérgio Godinho)
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2017/11/23
História de Portugal I - Donde Viemos
Um português para apreciadores a suportar uma narrativa cheia de frescura.
(in wook, 2017/11/23)
Os até agora publicados seis volumes já provam ser esta a História de Portugal que ainda não tinha sido escrita. Aconselhável para quem não conheça outras, obrigatória para quem já leu as muitas dadas à estampa até hoje.
Numa História de Portugal onde as gentes pequenas são visíveis e os processos históricos inteligíveis, este volume dedica-se ao que fomos antes de sermos Portugal, aos 4 300 milhões de anos de hominização, história e pré-história que fizeram o Homem e moldaram as gentes da Peninsula. Já se nota a relevância que têm para o autor as massas protagonistas dos processos, em detrimento do estafado realce habitualmente oferecido aos caudilhos, e a necessidade de abordar os climas, geografias, economias e culturas onde os homens mergulham fundo .
(in wook, 2017/11/23)
Os até agora publicados seis volumes já provam ser esta a História de Portugal que ainda não tinha sido escrita. Aconselhável para quem não conheça outras, obrigatória para quem já leu as muitas dadas à estampa até hoje.
Numa História de Portugal onde as gentes pequenas são visíveis e os processos históricos inteligíveis, este volume dedica-se ao que fomos antes de sermos Portugal, aos 4 300 milhões de anos de hominização, história e pré-história que fizeram o Homem e moldaram as gentes da Peninsula. Já se nota a relevância que têm para o autor as massas protagonistas dos processos, em detrimento do estafado realce habitualmente oferecido aos caudilhos, e a necessidade de abordar os climas, geografias, economias e culturas onde os homens mergulham fundo .
2017/11/21
A História de Portugal Que Ainda Não Tinha Sido Escrita
Toda a narrativa histórica é ideológica, prenhe de ideologia, refém da ideologia da classe que a encomendou, pagou, planeou, escreveu, publicou e vendeu.
Até hoje, em Portugal, todas as histórias de Portugal eram narrativas históricas da classe dominante, encomendadas, pagas, planeadas, escritas, publicadas e vendidas pelo "bem pensar" das famílias possidentes, até finais do século XIX, e pelo capital burguês, neste último século e meio.
À afirmação de que as crónicas de Fernão Lopes, no século XV, ou a história de Herculano, há cento e cinquenta anos, seriam disso excepções, respondo reconhecendo a rotura com a hagiografia medieval de uma e o estabelecimento de uma critica mais conforme ao método cientifico, adaptado às ciências sociais, da segunda, mas fazendo notar, sempre, que tal não basta para delas limpar a ideologia das classes à época reinantes.
Interessam-nos as produzidas desde meados do século passado. Mais maçónicas ou mais católicas, mais ou menos conservadoras ou reaccionárias, oriundas da ideológica nova história ou partidárias da igualmente ideológica escola anglo-saxónica, todas elas partilham uma mesma ideologia, uma mesma matriz da ideologia dominante, da ideologia da classe dominante, da ideologia burguesa, dos detentores do capital para quem a propriedade é sacrossanta, o protagonismo sempre individual, sempre do empreendedor, seja ele "nobre" ou burguês e o processo histórico – qual processo?
Foi necessária a publicação de uma outra História de Portugal, escrita por um intelectual marxista, para se revelar ainda mais cristalinamente o caráter classista das histórias até hoje publicadas.
Saiu recentemente o sexto volume da História de Portugal do Professor Doutor António Borges Coelho. São seis volumes onde finalmente nos é dado ouvir o fluir dos rios de gentes que fazem história, sentir as convulsões que opõem os de cima aos de baixo, os poucos grandes ao mar dos muito pequenos, navegar nesse oceano a fervilhar de revolta, ciclicamente apaziguada com umas pazadas de direitos, nunca de regalias, sempre reconhecidos, nunca oferecidos, sempre depois de, por cima do sangue dos cadáveres, os muitos pequenos os terem imposto como prática incontornável.
É uma História de Portugal eivada de ideologia? Claro que é! Tal como todas as outras histórias que a precederam. A grande diferença reside em ser esta uma História de Portugal escrita à revelia da e contra a ideologia dominante, contra o senso comum da ideologia burguesa que, publicitando-se como a-ideológica, todos os dias nos mergulha os neurónios no ideológico "bem pensar" da tina*.
A frescura dos rios de gentes começa ainda antes de sermos Portugal, mas é no segundo volume, a propósito das guerras entre locais e recém chegados, que começamos a ouvir o falar do povo pequeno do Portugal Medievo, o dizer dos sapateiros, ferreiros, pedreiros, carpinteiros que se reuniam em conselho para verem reconhecidos pelo príncipe, em carta de foral, o direito de casar, de ter, de não ver roubado o excedente, e, por vezes, até de eleger pároco ou saião.
Espantoso conseguir imaginar todos estes analfabetos, de olhos muito abertos, fixos no antepor do selo com que el-rei reconhecia finalmente direitos tão arduamente conquistados, ou melhor, de olhos baixos a pensar no sair dali antes que o senhor mude de ideias e os pendure.
Já conseguimos notar a ausência nesses conselhos da massa lupanária dos deserdados, dos migrantes, dos foragidos em permanente transumância, abrigados, sempre provisoriamente, em castros e florestas. Desconfiados do estranho, do estrangeiro menos mal vestido, com cavalo, sem a fome espelhada no semblante ou sem o medo esculpido nos olhos. Desconfiados que esse estranho os queira amarrar à terra e fazer deles animália sem direitos, ou mesmo, quem sabe, arrebanhar para vender escravos ao mouro, se cristãos, ou a estes, ou a todos porque vivem como pagãos, longe da santa missa, do corão e da torah.
Deste povo de baixo já os documentos não dão noticia. A estes de baixo só os vislumbramos nas descrições das revoltas, dos roubos, das razias aos conventos. Mais do que vê-los, vislumbramo-los nos forais com que o emergente poder monárquico os quer fixar à terra para fazer fronteira. Adivinhamo-los nos abstratos destinatários das juras d'el rei, também publicamente seladas, nas juras de deixar esses ninguéns lavrarem a terra d'el rei, a troco de tanto de pão, e de moeda, e de se deixarem amarrar a essas terras d'el-rei e de defendê-las do mouro, ou do galego que por elas entre a conquistar ou raziar. É esse tanto fixado no papel, mais a obrigação de lutar pela terra do seu senhor, que furta ao livre arbítrio de um outro qualquer, menos grande, senhor, local ou estrangeiro, o poder de por e dispor como lhe aprouver das culturas, apanhas, alfaias, prédios e gentes.
Nesta História de Portugal diz-se quem é o cavaleiro que faz a guerra em nome do senhor das terras. Diz-se porque é que o burguês, com fazenda para manter cavalo e espada e lança, segue o jovem caudilho em vez de alinhar no exército do Rei Afonso. Nesta narrativa ideologicamente comprometida, como todas as outras o foram antes desta, ouvimos finalmente o varejar das lanças a matar mais alto do que o tinir das espadas nas couraças, e compreendemos finalmente quem são esses peões de lança que faziam a guerra em nome dos ricos homens dos conselhos ou dos locais senhores da terra. Ao tornar visível a revolta que em permanência ardia por baixo das boas gentes, a fome, a insegurança, a falta de justiça, compreendemos a facilidade com que o jovem principe, que busca glória na guerra e terras na conquista, arrebanha as pobres gentes, e a dificuldade do Rei Afonso ou da Rainha Urraca em ganhar batalhas, com gentes dessas, pequenas, arrebanhadas em Leão ou na Galiza, lá longe e sem direito a saque.
É espantoso como muitas perguntas, nunca respondidas pelas histórias vergadas às ideologias dominantes, encontram explicações óbvias quando deixamos de esconder as contradições entre quem tem e quem não tem, e, sem nunca o mencionar, devolvemos à luta de classes o seu papel central como motor da história e à economia o seu papel infraestrutural relativamente a toda uma superestrutura social, politica, cultural-religiosa, repressiva.
Vale a pena comprar. Aconselho vivamente a leitura. É diferente, mais fresca, mais real, mais terra-a-terra, mais verdadeira. E, cereja no topo do bolo, o português, a escrita, é para apreciadores.
* there-is-no-alternative.
Até hoje, em Portugal, todas as histórias de Portugal eram narrativas históricas da classe dominante, encomendadas, pagas, planeadas, escritas, publicadas e vendidas pelo "bem pensar" das famílias possidentes, até finais do século XIX, e pelo capital burguês, neste último século e meio.
À afirmação de que as crónicas de Fernão Lopes, no século XV, ou a história de Herculano, há cento e cinquenta anos, seriam disso excepções, respondo reconhecendo a rotura com a hagiografia medieval de uma e o estabelecimento de uma critica mais conforme ao método cientifico, adaptado às ciências sociais, da segunda, mas fazendo notar, sempre, que tal não basta para delas limpar a ideologia das classes à época reinantes.
Interessam-nos as produzidas desde meados do século passado. Mais maçónicas ou mais católicas, mais ou menos conservadoras ou reaccionárias, oriundas da ideológica nova história ou partidárias da igualmente ideológica escola anglo-saxónica, todas elas partilham uma mesma ideologia, uma mesma matriz da ideologia dominante, da ideologia da classe dominante, da ideologia burguesa, dos detentores do capital para quem a propriedade é sacrossanta, o protagonismo sempre individual, sempre do empreendedor, seja ele "nobre" ou burguês e o processo histórico – qual processo?
Foi necessária a publicação de uma outra História de Portugal, escrita por um intelectual marxista, para se revelar ainda mais cristalinamente o caráter classista das histórias até hoje publicadas.
Saiu recentemente o sexto volume da História de Portugal do Professor Doutor António Borges Coelho. São seis volumes onde finalmente nos é dado ouvir o fluir dos rios de gentes que fazem história, sentir as convulsões que opõem os de cima aos de baixo, os poucos grandes ao mar dos muito pequenos, navegar nesse oceano a fervilhar de revolta, ciclicamente apaziguada com umas pazadas de direitos, nunca de regalias, sempre reconhecidos, nunca oferecidos, sempre depois de, por cima do sangue dos cadáveres, os muitos pequenos os terem imposto como prática incontornável.
É uma História de Portugal eivada de ideologia? Claro que é! Tal como todas as outras histórias que a precederam. A grande diferença reside em ser esta uma História de Portugal escrita à revelia da e contra a ideologia dominante, contra o senso comum da ideologia burguesa que, publicitando-se como a-ideológica, todos os dias nos mergulha os neurónios no ideológico "bem pensar" da tina*.
A frescura dos rios de gentes começa ainda antes de sermos Portugal, mas é no segundo volume, a propósito das guerras entre locais e recém chegados, que começamos a ouvir o falar do povo pequeno do Portugal Medievo, o dizer dos sapateiros, ferreiros, pedreiros, carpinteiros que se reuniam em conselho para verem reconhecidos pelo príncipe, em carta de foral, o direito de casar, de ter, de não ver roubado o excedente, e, por vezes, até de eleger pároco ou saião.
Espantoso conseguir imaginar todos estes analfabetos, de olhos muito abertos, fixos no antepor do selo com que el-rei reconhecia finalmente direitos tão arduamente conquistados, ou melhor, de olhos baixos a pensar no sair dali antes que o senhor mude de ideias e os pendure.
Já conseguimos notar a ausência nesses conselhos da massa lupanária dos deserdados, dos migrantes, dos foragidos em permanente transumância, abrigados, sempre provisoriamente, em castros e florestas. Desconfiados do estranho, do estrangeiro menos mal vestido, com cavalo, sem a fome espelhada no semblante ou sem o medo esculpido nos olhos. Desconfiados que esse estranho os queira amarrar à terra e fazer deles animália sem direitos, ou mesmo, quem sabe, arrebanhar para vender escravos ao mouro, se cristãos, ou a estes, ou a todos porque vivem como pagãos, longe da santa missa, do corão e da torah.
Deste povo de baixo já os documentos não dão noticia. A estes de baixo só os vislumbramos nas descrições das revoltas, dos roubos, das razias aos conventos. Mais do que vê-los, vislumbramo-los nos forais com que o emergente poder monárquico os quer fixar à terra para fazer fronteira. Adivinhamo-los nos abstratos destinatários das juras d'el rei, também publicamente seladas, nas juras de deixar esses ninguéns lavrarem a terra d'el rei, a troco de tanto de pão, e de moeda, e de se deixarem amarrar a essas terras d'el-rei e de defendê-las do mouro, ou do galego que por elas entre a conquistar ou raziar. É esse tanto fixado no papel, mais a obrigação de lutar pela terra do seu senhor, que furta ao livre arbítrio de um outro qualquer, menos grande, senhor, local ou estrangeiro, o poder de por e dispor como lhe aprouver das culturas, apanhas, alfaias, prédios e gentes.
Nesta História de Portugal diz-se quem é o cavaleiro que faz a guerra em nome do senhor das terras. Diz-se porque é que o burguês, com fazenda para manter cavalo e espada e lança, segue o jovem caudilho em vez de alinhar no exército do Rei Afonso. Nesta narrativa ideologicamente comprometida, como todas as outras o foram antes desta, ouvimos finalmente o varejar das lanças a matar mais alto do que o tinir das espadas nas couraças, e compreendemos finalmente quem são esses peões de lança que faziam a guerra em nome dos ricos homens dos conselhos ou dos locais senhores da terra. Ao tornar visível a revolta que em permanência ardia por baixo das boas gentes, a fome, a insegurança, a falta de justiça, compreendemos a facilidade com que o jovem principe, que busca glória na guerra e terras na conquista, arrebanha as pobres gentes, e a dificuldade do Rei Afonso ou da Rainha Urraca em ganhar batalhas, com gentes dessas, pequenas, arrebanhadas em Leão ou na Galiza, lá longe e sem direito a saque.
É espantoso como muitas perguntas, nunca respondidas pelas histórias vergadas às ideologias dominantes, encontram explicações óbvias quando deixamos de esconder as contradições entre quem tem e quem não tem, e, sem nunca o mencionar, devolvemos à luta de classes o seu papel central como motor da história e à economia o seu papel infraestrutural relativamente a toda uma superestrutura social, politica, cultural-religiosa, repressiva.
Vale a pena comprar. Aconselho vivamente a leitura. É diferente, mais fresca, mais real, mais terra-a-terra, mais verdadeira. E, cereja no topo do bolo, o português, a escrita, é para apreciadores.
* there-is-no-alternative.
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