2025/09/05

O Elevador da Glória e as 16 Vitimas da Ganância Neoliberal

Vamos ver se arranjamos aqui espaço para alguns dos textos que merecem ser preservados para futura Refer&ncia

(Raquel Varela, FaceBook 04/09/2025)
Aprendi com os meus colegas nos estudos sobre as condições de trabalho muito, hoje destaco três coisas: não existem "erros humanos"; e "acidentes" são raros. E vivemos uma gigante mentira liberal, a da "qualidade total" e a "certificação" - é tudo uma despudorada mentira, feita com base em estatísticas e inquéritos sem validade científica, os mesmo que a IA e o algoritmo usam...Por isso as lágrimas de Moedas creio-as desprezíveis. Lamento cada uma das vítimas e suas famílias.

Há 20 anos que trabalho com uma equipa multidisciplinar no OObservatório para as Condições de Vida - OCV onde realizámos estudos envolvendo situações de risco, em que no conjunto responderam mais de 40 mil trabalhadores a mais de 160 questões, com grupos focais (dos portos, CP, TAP, Metro, professores, enfermeiros, jornalistas e muitos outros). Somos quase 20, de áreas muito distintas (da sociologia à psicologia, da Engenharia à medicina, da segurança no trabalho ao direito, da história à teoria literária, e outros).

O erro é a forma natural do trabalho porque aquilo que nos faz trabalhar bem (fazer sem pensar, porque o nosso corpo sabe o que faz, treinou, registou) é o mesmo que nos faz errar. Ninguém pode dar uma aula ou apertar um parafuso se pensar a cada segundo o que faz, e é por isso que erra. Ninguém conduz a pensar a cada segundo. Interioriza os procedimentos. Por isso existem mecanismos de redundância, organização cooperativa, descanso, sono tranquilo, apoio dos mais velhos que sabem mais, felicidade, tudo isso não evita o erro, mas está lá, a ampará-lo quando ele se dá.

A segunda coisa que aprendi no meu querido OObservatório para as Condições de Vida - OCV com os meus colegas da literatura (talvez o único lugar em Portugal em que estão junto de engenheiros) é que as palavras têm vida. Não há "acidente" algum neste caso. Há, confirmando-se o que se avançou sobre a manutenção, incúria, crime, descaso, e sem que se comece, como em França, a condenar com prisão efectiva os dirigentes políticos e gestores que tomam estas decisões, nada mudará.

A subcontratação precária, insegurança no emprego, salários baixos, horários de trabalho doentios (que o Governo quer aumentar com novos esquemas), e aumentar, carregar, pressionar, é isso que fazem as direcções. Ameaçam. E despacham os mais velhos, que mais sabem, com rescisões amigáveis à força, quebram as equipas, pressionam ainda mais quem está com o trabalho real nas mãos e diz (ou sequer diz com medo), "as peças estão estragadas", "os alunos não estão a aprender", "os doentes não estão a ser tratados". Se tudo se confirmar não há acidente, há homicídio por negligência ou outra moldura penal qualquer. Como houve nas passagens de nível onde morrem e ficam feridas dezenas de pessoas, como em Tunes (5 jovens holandeses, entre muitos outros), depois do Sindicato avisar vezes sem conta dos lugares de morte na linha férrea. Como há nas estradas, entre motoristas ou passageiros, uma guerra civil, de centenas todos os anos, já normalizada como "mais um acidente"; como há nas fábricas e logística, mais de 100 mortos todos os anos, dados como apenas mais um "acidente" de trabalho. Como há quando no Metro do Porto na manutenção avisam que trabalham sem os mínimos. E no de Lisboa lutam para não haver manobras que levem a abrir portas do Metro do lado errado da linha. Tudo isto publicámos em estudos. É conhecido. São este sectores, os serviços públicos e de transportes, os últimos que não têm medo de fazer greve (porque nas pequenas empresas privadas todos têm medo), que o Governo quer atacar colocando em causa do direito de greve por melhores condições de trabalho.

Lisboa não está de luto, Lisboa não é uma marca, quem está de luto é a família do guarda-freio, são as famílias dos que morreram. Foi a água contaminada, o apagão, os fogos e a destruição de casas e vidas, os ataques cardíacos sem assistência, as grávidas e bebés mortos, com urgências fechadas, nada disto são acidentes, isto é o colapso do país das "contas certas". Isto é a política da UE que diz que contratar funcionários públicos é um gasto, mas pagar a banqueiros é uma obrigação. Isto é a política obscena militar que diz que a guerra "é um investimento que cria emprego". Isto é um Estado que em vez de nos proteger - para quem alguma vez acreditou em tal - passou a ser uma ameaça às nossas vidas. Este Estado não é num acidente, é uma tragédia. Em que os responsáveis não estão na fila do hospital, nunca ligaram para um serviço que não atende, têm o telemóvel do seu médico amigo, não fazem ideia do que é apanhar um comboio, andam de jacto privado, têm os filhos em colégios de 20 mil euros ano. Nós ficamos com as tragédias, eles com o lucro. É o mesmo Estado que diz aos sindicatos "não façam política". Quando a única coisa que há a fazer para nos salvarmos é Política. É todos nos organizarmos e agirmos e defender a causa pública, com greves, manifestações, acções concretas. E os sindicatos fazerem Política, sem medo da palavra, não a deixando aos políticos profissionais, mostrando a realidade, lutando por outro país. Ou isso ou ficar a ouvir discursos de políticos que nos dizem "não se metam que isso é político".

(Tiago Franco, FaceBook, 2025/09/04)
SEM GLÓRIA - parte 2
Escrevo poucas horas depois do trágico acidente no elevador da Glória. Já absolutamente entupido com as horas de diretos televisivos, destinados a transformar a dor em audiência, e com jornalistas, em esforço, a fazer o possível para encher reportagens sem informação. Aqui, como em qualquer tragédia em Portugal, uma palavra de destaque para a RTP, que é o único meio de comunicação social que, aparentemente, se preocupa em transmitir algo útil para informar quem os ouve, em vez de se multiplicarem em diretos sensationalistas sem qualquer interesse informativo.

A pergunta mais repetida é "o que falhou" e até Marcelo, o presidente omnipresente nas tragédias, já a fez. Pediu um rápido esclarecimento por parte das autoridades, e algo me diz que essa celeridade terá que esperar um pouco. Mais não fosse pelo fim das autárquicas.

Sendo a Carris a empresa responsável pelo elevador e, por sua vez, a Câmara de Lisboa a entidade controladora, não há grande volta a dar na procura do responsável político. Carlos Moedas estará debaixo de fogo, mas, como já se percebeu nas primeiras declarações, alguém pagará por ele. Era o que faltava: o edil de Lisboa, responsável pela prestação do serviço de transporte, arcar com as consequências políticas do pior acidente de que há memória no último século, na autarquia que preside. Era, de facto, o que faltava!

Amontoam-se as teorias sobre cabos e manutenções, muito ruído e especulação que, para já, disfarça o silêncio e a tentativa de fuga dos verdadeiros responsáveis. Os habituais abutres da direita começaram por atacar a Carris e a sua gestão pública, até perceberem que, só para chatear, a manutenção estava entregue a uma empresa privada, sob o protesto veemente dos trabalhadores da Carris. Trabalhadores esses que, já agora, alertavam há muito tempo para as falhas de manutenção e de conhecimento da empresa prestadora de serviços, defendendo que essa tarefa deveria voltar para os quadros da Carris.

Em 2024, o deputado municipal (BE), Ricardo Moreira, alertava para um corte de 4 milhões de euros na Carris, destinados ao Web Summit, esse evento tão crucial para a população de Lisboa. O jornal Página UM denuncia hoje que a CML tinha deixado caducar os contratos de manutenção por não ter recebido propostas dentro dos valores considerados razoáveis pela autarquia. Ou seja, Moedas cortou financiamento à Carris para entregá-lo a Paddy Cosgrave, retirou a manutenção de quem a sabia fazer para entregá-la a empresas privadas e, no final, nem com elas ficou porque não gostou do preço. Meus amigos... isto são escolhas políticas. E, como neste caso foram comprovadamente más, não é necessário pensar muito ou dar muitas voltas para encontrar o principal culpado.

Lisboa é notícia na imprensa mundial pelas piores razões. Uma vergonha que caiu sobre a cidade durante a pior e mais incompetente liderança que a capital portuguesa já conheceu. Uma cidade transformada num parque de diversões, onde os locais, empurrados para a periferia, já não conseguem viver e suportar o custo de vida. Uma cidade absolutamente voltada para os habitantes temporários, o turismo, os visitantes de uma realidade que já não é local. E uma cidade que, mesmo assim, nem consegue garantir que quem nos visita desça uma pequena colina sem morrer. Há acidentes que a natureza nos oferece e sobre os quais não temos qualquer poder. Não é o caso deste. Os trabalhadores públicos, tantas vezes desprezados, deram o alerta. Os sindicatos, tantas vezes ignorados, avisaram dos perigos. A oposição política de esquerda tentou, sem sucesso, convencer o "rei sol". Mas Moedas, no seu gabinete, preocupado com paquistaneses e comemorações do 25 de Novembro, não os ouviu.

Fosse Carlos Moedas digno do cargo que ocupa e estaria, neste momento, a ler a sua carta de despedimento. Mas, como não é, e esse, tal como a responsabilidade desta tragédia, é um facto que não deixa margem para dúvidas, veremos o anasalado edil de Lisboa a prosseguir na fuga para a frente. Pessoalmente, e tendo em conta o panorama político atual, ainda espero ver Ventura, no TikTok, vestido de Homem-Aranha, a segurar o elétrico com uma teia, e Mariana Leitão, de megafone nos Restauradores, a exigir a privatização da Carris. O meu lamento, envergonhado, é para quem escolheu visitar Lisboa e já não regressou a casa.
Ps - texto escrito, inicialmente, para um jornal online

2025/09/04

Sobre o Genocídio do Povo Palestiniano Pelas Mãos do Fundamentalismo Sionista

Uma flotilha maciça como sintoma: o que está a acontecer no Ocidente? 
(Carmen Parejo Rendón, RT 04/09/2025)


Estamos a viver quase dois anos de genocídio televisionado em Gaza. O Ministério da Saúde palestiniano reporta 63.700 mortes, incluindo profissionais de saúde e jornalistas, enquanto outros estudos independentes estimam o número entre 70.000 e mais de 80.000, quando se consideram mortes indirectas por fome ou pelo colapso do sistema de saúde.

Em plena luz do dia, hospitais e escolas são bombardeados, civis são executados e o acesso à ajuda humanitária é bloqueado. A fome é utilizada como ferramenta de guerra: as rotas de abastecimento são destruídas, aqueles que tentam distribuir ou recolher alimentos são mortos e as fronteiras são bloqueadas. O direito internacional classifica estes actos como crimes de guerra e genocídio, mas Israel fez destes critérios o seu guião. Isto não é novidade: já lá vão 70 anos de limpeza étnica na Palestina. Mas hoje, tudo acontece em direto, com câmaras e ecrãs a mostrar mutilações, crianças mortas, hospitais pulverizados. A característica definidora deste momento histórico não é a violência — que sempre existiu —, mas antes a descarada impunidade demonstrada.

Para compreender esta impunidade, é essencial recordar que Israel é, acima de tudo, uma base de operações ocidental no Médio Oriente, construída sobre um projecto colonial. O sionismo, enquanto ideologia política, nunca alcançou a maioria entre os judeus; aliás, durante décadas foi fortemente questionado pelas próprias comunidades judaicas, tanto religiosas como assimiladas, nos seus países de origem.

Só no meio da dor extrema, após a catástrofe do Holocausto, é que as potências coloniais viram uma oportunidade, usando este sofrimento como álibi, para estabelecer um enclave que servisse os seus interesses. A versão mais cínica de um anti-semitismo histórico: expulsar os judeus europeus para os utilizar para os seus próprios fins estratégicos. Em primeiro lugar, foi o Império Britânico, que em 1917 assinou a Declaração de Balfour, prometendo aos sionistas um "lar nacional" na Palestina, ignorando deliberadamente os seus habitantes nativos.

Posteriormente, foram os EUA que assumiram o controle, garantindo o financiamento, as armas, a impunidade diplomática e a cobertura mediática. Neste sentido, devemos deixar claro que Israel não é um actor autónomo, mas um projecto supervisionado e armado pelas potências que necessitam de controlar a região: a sua localização estratégica, a sua indústria militar e o seu papel na vigilância regional explicam porque é que lhe é permitido fazer o que outros enfrentariam com sanções e bombardeamentos. Israel é o cão de ataque do imperialismo numa área-chave para os recursos, a logística e a resiliência global.

Israel não é um actor autónomo, mas um projecto supervisionado e armado pelas potências que necessitam de controlar a região: a sua localização estratégica, a sua indústria militar e o seu papel na vigilância regional explicam porque lhe é permitido fazer o que outros enfrentariam com sanções e bombardeamentos.

Neste contexto, a Flotilha Global Sumud, actualmente a navegar em direcção a Gaza, não é um gesto isolado nem uma improvisação recente. É a continuação de uma iniciativa iniciada em 2008, apenas dois anos depois de Israel ter imposto o seu sufocante bloqueio à Faixa de Gaza como punição colectiva contra o povo que votou no Hamas nas eleições de 2006.

Desde então, várias flotilhas partiram desafiando o cerco marítimo, incluindo uma que incluía o navio turco Mavi Marmara, que, em 2010, foi atacado por comandos israelitas que mataram dez ativistas em águas internacionais. Hoje, em 2025, está a ser organizada a maior missão deste tipo, com embarcações de vários portos do Mediterrâneo e até a participação de figuras conhecidas. Em resposta, o Ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben Gvir, propôs classificar os tripulantes destas embarcações como "terroristas", pois a crescente solidariedade com o povo palestiniano demonstra que as suas estratégias de propaganda e chantagem diplomática já não estão a ter o mesmo efeito e exploram agora directamente o medo.

Esta rutura com a narrativa ocidental reflete-se também nas ruas, universidades e recintos desportivos. Vimos isso ainda ontem, quando a Vuelta a Espanha teve de ser interrompida três quilómetros antes da meta em Bilbau devido aos protestos dos cidadãos contra o genocídio e à participação de uma equipa israelita.

A crescente solidariedade com o povo palestiniano demonstra que a propaganda e as estratégias de chantagem diplomática de Israel já não estão a ter o mesmo efeito e recorrem agora directamente ao medo.

"A Palestina ganhou esta etapa", manchetes de alguns órgãos de comunicação espanhóis, antes de retificar — provavelmente sob pressão — o que era politicamente óbvio. Porque, no meio da falta de subtileza que estamos a viver, cada vez mais pessoas estão também a aperceber-se da insustentabilidade do duplo critério ocidental: a Rússia foi excluída das competições internacionais não por estar em guerra — porque, se esse fosse o critério, os EUA e grande parte da Europa estariam fora durante décadas —, mas por razões estritamente geopolíticas. Os mesmos que hoje permitem a Israel, enquanto perpetra genocídio diante das câmaras, ganhar prémios na Eurovisão, no desporto global e em todas as montras institucionais. Não se trata de legalidade, muito menos de valores ou princípios, mas de propaganda ao serviço do poder, e o povo começa a compreender. Está a começar a ver quem é quem no tabuleiro.

Perante este despertar, a repressão aumenta. O argumentista Paul Laverty foi detido no Reino Unido por usar uma t-shirt antigenocídio e aguarda julgamento por "terrorismo". Nos EUA, estudantes e professores são perseguidos, despedidos e criminalizados por demonstrarem solidariedade para com a Palestina. Assim, o mapa do horror fica completo: a barbárie em Gaza e a ordem de silêncio no Ocidente, duas faces da mesma moeda. Aquilo a que estamos a assistir é muito mais do que uma sucessão de protestos: é o despertar de uma consciência internacional que já não aceita ser cúmplice e que, aos poucos, parece começar a reconhecer o inimigo.

A flotilha por si só não impedirá o genocídio. Não abalará Israel. Mas desafia a retórica que o sustenta e expõe a cisão entre governos cúmplices e pessoas que já não querem participar no crime.

A flotilha é apenas mais uma expressão — visível e mediática — de um profundo descontentamento que se espalha pelo planeta. Em Génova, os estivadores alertaram: se perdermos o contacto com os navios da flotilha, bloquearemos a Europa. Um alerta que ressoa como um eco das lutas operárias do século XX, mas adaptado à urgência de hoje. Já não falamos apenas de direitos laborais, mas de ligar tudo: um sistema que assassina em Gaza com as mesmas mãos que empobrecem e exploram todo o planeta.

A solidariedade com a Palestina já não é um exclusivo dos activistas ou dos militantes: é também a forma como as pessoas expressam, consciente ou inconscientemente, a sua rejeição de uma ordem internacional que viola sistematicamente os direitos e a vida e cuja narrativa, repleta de incoerências, começa a desfazer-se.

A flotilha por si só não irá travar o genocídio. Nem fará tremer Israel. Mas desafia a retórica que a sustenta e expõe a fractura entre governos cúmplices e pessoas que já não querem participar no crime. Revela um fosso cada vez maior entre a impunidade institucionalizada e a dignidade organizada de baixo para cima. Enquanto as elites ocidentais se agarram à sua criação colonial no Médio Oriente, o povo nega que não participará no extermínio.

Esta é a verdadeira ameaça representada pela flotilha: não os navios, mas o crescente questionamento que bate às portas dos lares e se reflete neles. Hoje, a linha vermelha está a ser traçada pelo povo porque as elites ocidentais chegaram a tais extremos que o que está em causa agora é a autodefinição perante a evidência total da barbárie.