2022/09/09

Sobre os Objetivos Russos na Ucrânia

Segundo Dmitry Trenin, aqui chegados e após seis meses de conflito, a Rússia poderá já não se contentar com a Crimeia e o Donbass, como tudo apontava em Fevereiro-Março, mas antes prolongar a guerra até à completa aniquilação do estado ucraniano através de uma divisão com varsóvia, para quem deixaria o noroeste historicamente polaco. Quem o afirma é professor e investigador na Escola Superior de Economia e investigador principal do Instituto de Economia Mundial e Relações Internacionais, além de ser membro do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia.
(A Referência )
 
Seis meses de conflicto: O que é exatamente que a Rússia espera alcançar na Ucrânia
Dmitry Trenin, Russia Today, 2022/09/08

Os últimos comentários de Putin revelam que o pensamento de Moscovo mudou e o compromisso não está mais na agenda

Na semana passada, o presidente russo, Vladimir Putin, referiu-se à Ucrânia como um “enclave anti-russo” que deve ser removido. Também afirmou que os soldados russos que participaram da operação militar estavam a lutar pelo seu “próprio país”. Estas declarações comportam importantes implicações.

Nos últimos seis meses, a mantra do oficialismo russo tem sido que todos os objetivos da ofensiva serão alcançados. De propósito, no entanto, os objetivos específicos, como até que ponto o plano das forças de Moscovo se movem para a Ucrânia, nunca foram explicados. Isso só pode levantar especulações sobre o que o Kremlin realmente espera alcançar.

A única pessoa que pode responder com autoridade a essa pergunta é o presidente, e não faz sentido duvidar dele. No entanto, duas coisas não podem escapar à atenção. Uma é a radicalização da posição de Moscovo sobre a Ucrânia, como resultado tanto das políticas ocidentais quanto das ações de Kiev; a segunda é a distância cada vez maior entre o resultado mínimo da campanha militar com o qual a Rússia pode ficar satisfeita e a quantidade máxima do que os EUA e seus aliados podem aceitar.

Durante cerca de seis anos após a assinatura do segundo Acordo de Minsk, em 2015, o Kremlin esforçou-se por implementar esse acordo. Teria assegurado o estatuto de autonomia do Donbass na Ucrânia e dado a influência da região nas políticas e políticas nacionais, inclusive na questão da orientação geopolítica e geoeconómica do país. Desde o início, no entanto, Kiev não esteve disposta a cooperar na implementação do acordo, vendo-o como uma vitória para Moscovo. Washington, em busca de uma política de contenção da Rússia, incentivou tal postura obstrucionista, enquanto Berlim e Paris, garantes formais do acordo (ao lado da Rússia), não tiveram influência em Kiev e acabaram por abraçr a posição ucraniana.

A eleição de Vladimir Zelensky para a presidência da Ucrânia, em 2019, inicialmente parecia ser uma abertura para a paz, e o presidente Putin fez um esforço sério para tirar o acordo de Minsk do papel. Kiev, no entanto, logo voltou atrás e assumiu uma posição ainda mais dura do que antes. No entanto, até meados de 2021, o Kremlin continuou a ver como seus objetivos na Ucrânia uma resolução da questão do Donbass essencialmente com base nos acordos de Minsk e o eventual reconhecimento de fato do status russo da Crimeia. Em junho do ano passado, Vladimir Putin, no entanto, publicou um longo artigo sobre as relações russo-ucranianas que deixou claro que ele via a situação atual como uma importante questão de segurança, política e identidade para o seu país; reconheceu a sua responsabilidade pessoal; e estava resolvido a fazer algo para o corrigir estrategicamente. O artigo não revelou o plano de jogo de Putin, mas expôs o seu pensamento básico sobre a Ucrânia.

Em dezembro passado, Moscovo passou a Washington um pacote de propostas que equivalia a uma lista de garantias de segurança para a Rússia. O pacote incluía a neutralidade formal da Ucrânia entre a Rússia e a OTAN (“nenhuma Ucrânia na OTAN”); e nenhuma presença de armas e bases militares dos EUA ou de outros membros da OTAN na Ucrânia, bem como a proibição de exercícios militares em território ucraniano (“sem OTAN na Ucrânia”). Embora os EUA tenham concordado em discutir algumas questões técnicas militares abordadas na proposta russa, rejeitou as principais exigências de Moscovo relacionadas com a Ucrânia e com a OTAN. Putin teve que aceitar um não como resposta.

Pouco antes do lançamento da sua operação militar, Moscovo reconheceu as duas repúblicas do Donbass e disse a Kiev para desocupar as partes de Donetsk e Lugansk então sob controle ucraniano – ou enfrentar as consequências. Kiev recusou e as hostilidades começaram. A razão oficial da Rússia para desencadear a força foi defender as duas repúblicas recém-reconhecidas que pediram assistência militar.

Logo após o início das hostilidades, a Rússia e a Ucrânia iniciaram negociações de paz. No final de março de 2022, numa reunião em Istambul, Moscovo exigiu que o governo de Zelensky reconhecesse a soberania das duas repúblicas do Donbass dentro das suas fronteiras constitucionais, bem como a própria soberania da Rússia sobre a Crimeia, que foi formalmente incorporada à Federação Russa em 2014, além de aceitar um estatuto de neutralidade e desmilitarizado para o território controlado por Kiev. Naquela altura, Moscovo ainda reconhecia as atuais autoridades ucranianas e estava preparada para lidar com elas diretamente. Pela sua parte, Kiev, inicialmente parecia pronta para aceitar as exigências de Moscovo (que foram criticadas por muitos na Rússia como excessivamente concessionais à Ucrânia), mas depois rapidamente voltou a uma postura de linha-dura. Moscovo sempre suspeitou que essa reviravolta, como em ocasiões anteriores, foi resultado da influência dos EUA nos bastidores, muitas vezes auxiliada pelos britânicos e outros aliados.

A partir da primavera de 2022, enquanto os combates continuavam, Moscovo expandiu os seus objetivos. Estes passaram a incluir a “desnazificação” da Ucrânia, significando não apenas a remoção de elementos ultranacionalistas e anti-russos do governo ucraniano (cada vez mais caracterizado por funcionários russos agora como o “regime de Kiev”), mas a extirpação da sua ideologia subjacente (baseada em torno do colaborador nazi da Segunda Guerra Mundial Stepan Bandera) e da sua influência na sociedade, inclusive na educação, mídia, cultura e outras esferas.

A par disso, Moscovo acrescentou algo que Putin chamou, no seu jeito cáustico de marca registada, a “descomunização” da Ucrânia, significando livrar aquele país, cuja liderança estava a rejeitar o seu passado soviético, dos territórios de população russa ou de língua russa que tinha sido concedido à república ucraniana soviética da URSS pelos líderes comunistas em Moscovo, Vladimir Lenin, Joseph Stalin e Nikita Khrushchev. Estes incluem, além do Donbass, todo o sudeste da Ucrânia, de Kharkov a Odessa.

Essa mudança de política levou ao abandono dos primeiros sinais de que a Rússia honraria o estado da Ucrânia fora do Donbass e o estabelecimento de órgãos do governo militar russo no território tomado pelas forças russas. Imediatamente depois disso, começou um esforço para integrar de fato esses territórios com Moscovo. No início do outono de 2022, toda a cidade de Kherson, grande parte de Zaporozhye e parte dos oblasts de Kharkov estavam a ser atraídos para o sistema económico russo; começaram a usar o rublo russo; adotaram o sistema educacional russo; e foi oferecido à sua população um caminho rápido para a cidadania russa.

À medida que os combates na Ucrânia rapidamente se tornaram uma guerra por procuração entre a Rússia e o Ocidente liderado pelos EUA, as visões da Rússia sobre o futuro da Ucrânia radicalizaram-se ainda mais. Enquanto uma rápida cessação das hostilidades e um acordo de paz em termos russos na primavera teriam deixado a Ucrânia, menos o Donbass, desmilitarizada e fora da OTAN, mas sob a liderança atual com a sua ideologia virulentamente anti-russa e dependência do Ocidente, o novo pensamento, como sugerem as observações de Putin em Kaliningrado, tende a considerar qualquer Estado ucraniano que não esteja total e seguramente limpo da ideologia ultranacionalista e seus agentes como um perigo claro e presente; na verdade, uma bomba-relógio bem nas fronteiras da Rússia, não muito longe da sua capital.

Nessas circunstâncias, em vista de todas as perdas e dificuldades sofridas, não bastaria que a Rússia ganhasse o controle do que antes era conhecido como Novorossiya, a costa norte do Mar Negro até a Transnístria. Isso significaria que a Ucrânia seria completamente isolada do mar, e a Rússia ganharia – por meio de referendos, supõe-se – uma grande faixa de território e milhões de novos cidadãos. Para atingir esse objetivo, é claro, as forças russas ainda precisam de capturar Nikolaev e Odessa no sul, bem como Kharkov no leste. Um próximo passo lógico seria expandir o controle russo para toda a Ucrânia a leste do rio Dnieper, bem como para a cidade de Kiev, que fica principalmente na margem direita. Se isso acontecesse, o estado ucraniano encolheria para as regiões central e ocidental do país.

Nenhum desses resultados, no entanto, trata do problema fundamental que Putin destacou, ou seja, da Rússia ter que viver lado a lado com um Estado que procurará constantemente a vingança e será usado pelos Estados Unidos, que o armam e o dirigem, no seu esforço para ameaçar e enfraquecer a Rússia. Esta é a principal razão por trás do argumento para tomar todo o território da Ucrânia até à fronteira polaca. No entanto, integrar a Ucrânia central e ocidental na Rússia seria extremamente difícil, enquanto tentar construir um estado-tampão ucraniano controlado pela Rússia seria um grande dreno de recursos, bem como uma dor de cabeça constante. Não é de admirar que alguns em Moscovo não se importassem se a Polónia absorvesse a Ucrânia ocidental dentro de alguma forma de uma entidade política comum que, alega a inteligência estrangeira da Rússia, está sendo criada sub-repticiamente.

O futuro da Ucrânia não será ditado, é claro, pelos desejos de alguém, mas pelos desenvolvimentos reais no campo de batalha. A luta lá continuará por algum tempo, e o resultado final não está à vista. Mesmo quando a fase ativa do conflito chegar ao fim, é improvável que seja seguido por um acordo de paz. Por diferentes razões, cada lado considera o conflito como existencial – e muito mais amplo do que a Ucrânia. Isso significa que o que a Rússia almeja deve ser conquistado e mantido com firmeza.

A Referência acrescenta ainda um excerto de um outro artigo da mesma fonte que pode ajudar a compreender a posição da India neste conflito:

A posição da India no conflito europeu é bem descrita pelas palavras do seu ministro dos negócios estrangeiros. «“We have to be confident about who we are. I think it is better to engage the world on the basis of who we are, rather than try and please the world as a pale imitation of what they are… This idea that others define us, somehow we need to get the approval of other quarters – I think that is an era we need to put behind us,” Indian External Affairs Minister Subrahmanyam Jaishankar said in response to European pressure on the issue of Ukraine at the same venue.»


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