2017/01/21

Fascismo foi isto

Um manifesto do escritor Mário de Carvalho contra o esquecimento e o revisionismo histórico e contra o desejo que alguma direita tem de apagar a ditadura fascista de Salazar das páginas da História de Portugal:

- Eu nunca fui obrigado a fazer a saudação fascista aos «meus superiores.
- Eu nunca andei fardado com um uniforme verde e amarelo de S de Salazar à cintura.
- Eu nunca marchei, em ordem unida, aos sábados, com outros miúdos, no meio de cânticos e brados militares.
- Eu nunca vi os colegas mais velhos serem levados para a «milícia», para fazerem manejo de arma com a Mauser.
- Eu nunca fui arregimentado, dias e dias, para gigantescos festivais de ginástica no Estádio do Jamor.
- Eu nunca assisti ao histerismo generalizado em torno do «Senhor Presidente do Conselho», nem ao servilismo sabujo para com o «venerando Chefe do Estado». 
- Eu nunca fui sujeito ao culto do «Chefe», «chefe de turma», «chefe de quina», «chefe dos contínuos», «chefe da esquadra», «chefe do Estado».
- Eu nunca fui obrigado a ouvir discursos sobre «Deus, Pátria e Família».
- Eu nunca ouvi gritar: «quem manda? Salazar, Salazar, Salazar».
- Eu nunca tive manuais escolares que ironizassem com «os pretos» e com «as raças inferiores».
- Eu nunca me apercebi do «dia da Raça».
- Eu nunca ouvi louvar a acção dos «Viriatos» na Guerra de Espanha.
- Eu nunca fui obrigado a ler textos escolares que convidassem à resignação, à pobreza e ao conformismo.
- Eu nunca fui pressionado para me converter ao catolicismo e me «baptizar».
- Eu nunca fui em grupos levar géneros a pobres, politicamente seleccionados, porque era mesmo assim.
- Eu nunca assisti á miséria fétida dos hospitais dos indigentes.
- Eu nunca vi os meus pais inquietados e em susto.
- Eu nunca tive que esconder livros e papéis em casa de vizinhos ou amigos.
- Eu nunca assisti à apreensão dos livros do meu pai.
- Eu nunca soube de uma cadeia escura chamada o Aljube em que os presos eram sepultados vivos em «curros».
- Eu nunca convivi com alguém que tivesse penado no Tarrafal.
- Eu nunca soube de gente pobre espancada, vilipendiada e perseguida e nunca vi gente simples do campo a ser humilhada e insultada.
- Eu nunca vi o meu pai preso e nunca fui impedido de o visitar durante dias a fio enquanto ele estava «no sono».
- Eu nunca fui interpelado e ameaçado por guardas quando olhava, de fora, para as grades da cadeia.
- Eu nunca fui capturado no castelo de S. Jorge por um legionário, por estar a falar inglês sem ser «intérprete oficial».
- Eu nunca fui conduzido à força a uma cave, no mesmo castelo, em que havia fardas verdes e cães pastores alemães.
- Eu nunca vi homens e mulheres a sofrer na cadeia da vila por não quererem trabalhar de sol a sol.
- Eu nunca soube de alentejanos presos, às ranchadas, por se encontrarem a cantar na rua.
- Eu nunca assisti a umas eleições falsificadas, nunca vi uma manifestação espontânea ser reprimida por cavalaria à sabrada; eu nunca senti os tiros a chicotearem pelas paredes de Lisboa, em Alfama, durante o Primeiro de Maio.
- Eu nunca assisti a um comício interrompido, um colóquio desconvocado, uma sessão de cinema proibida.
- Eu nunca presenciei a invasão dum cineclube de jovens com roubo de ficheiros, gente ameaçada, cartazes arrancados.
- Eu nunca soube do assalto à Sociedade Portuguesa de Escritores, da prisão dos seus dirigentes.
- Eu nunca soube da lei do silêncio e da damnatio memoriae que impendia sobre os mais prestigiados intelectuais do meu país.
- Eu nunca fui confrontado quotidianamente com propaganda do estado corporativo e nunca tive de sofrer as campanhas de mentalização de locutores, escribas e comentadores da Rádio e da Televisão.
- Eu nunca me dei conta de que houvesse censura à imprensa e livros proibidos.
- Eu nunca ouvi dizer que tinha havido gente assassinada nas ruas, nos caminhos e nas cadeias.
- Eu nunca baixei a voz num café, para falar com o companheiro do lado.
- Eu nunca tive de me preocupar com aquele homem encostado ali à esquina.
- Eu nunca sofri nenhuma carga policial por reclamar «autonomia» universitária.
- Eu nunca vi amigos e colegas de cabeça aberta pelas coronhas policiais.
- Eu nunca fui levado pela polícia, num autocarro, para o Governo Civil de Lisboa por indicação de um reitor celerado.
- Eu nunca vi o meu pai ser julgado por um tribunal de três juízes carrascos por fazer parte do «organismo das cooperativas», do PCP, com alguns comerciantes da Baixa, contabilistas, vendedores e outros tenebrosos subversivos.
- Eu nunca fui sistematicamente seguido por brigadas que utilizavam um certo Volkswagen verde.
- Eu nunca tive o meu telefone vigiado.
-  Eu nunca fui impedido de ler o que me apetecia, falar quando me ocorria, ver os filmes e as peças de teatro que queria.
-  Eu nunca fui proibido de viajar para o estrangeiro.
- Eu nunca fui expressamente bloqueado em concursos de acesso à função pública.
- Eu nunca vi a minha vida devassada, nem a minha correspondência apreendida.
- Eu nunca fui precedido pela informação de que não «oferecia garantias de colaborar na realização dos fins superiores do Estado».
- Eu nunca fui objecto de comunicações «a bem da nação».
- Eu nunca fui preso. Eu nunca tive o serviço militar ilegalmente interrompido por uma polícia civil.
- Eu nunca fui julgado e condenado a dois anos de cadeia por actividades que seriam perfeitamente quotidianas e normais noutro país qualquer.
- Eu nunca estive onze dias e onze noites, alternados, impedidos de dormir, e a ser quotidianamente insultado e ameaçado.
- Eu nunca tive alucinações, nunca tombei de cansaço.
- Eu nunca conheci as prisões de Caxias e de Peniche.
- Eu nunca me dei conta, aí, de alguém que tivesse sido perseguido, espancado e privado do sono.
- Eu nunca estive destinado à Companhia Disciplinar de Penamacor.
- Eu nunca tive de fugir clandestinamente do país.
- Eu nunca vivi num regime de partido único.
-Eu nunca tive a infelicidade de conhecer o fascismo."
Mário de Carvalho
Aparentemente terá sido publicado no fb em Setembro de 2012

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