Os Ladrões de Bicicletas apontaram para um artigo de Maria Murteira intitulado "As Reformas das Pensões entre Pressões Políticas e Constrangimentos Financeiros"[1] e eu fui ler.
É um artigo todo ele dedicado a desmontar a narrativa neo-liberal, adoptada pela união europeia, de que quem quiser uma reforma que pague por ela ao capital e reze, reze muito, reze com muita força, para não lhe aparecer um Ricardinho do BES a roubar-lhe as poupanças, ou um executivo da Goldman Sachs a apostar contra o fundo em que as enterrou, ou um CEO da General Motors, ou da Enron a escrever-lhe a carta sobre a falência do gigante empresarial que lhe pagava a reforma, até ao dia que faliu. Os estados falem menos do que as empresas. Entre um estado e uma empresa, prefiro ter um estado a gerir as minhas poupanças que um dia me pagarão a minha reforma.
A agulha vai direitinha ao cerne da questão. Verifica a académica que «desde Maastricht, os países da área euro têm estado sujeitos a uma “cultura de disciplina” nas regras que orientam a condução da política macroeconómica. A ideologia dominante impõe limites estreitos à política orçamental e à evolução da despesa pública».
E tira as evidentes conclusões. «É evidente o fracasso das políticas orientadas por esta perspectiva: são manifestos os seus efeitos adversos na estabilização das economias no tocante ao crescimento, ao emprego e ao equilíbrio externo de diversos países; são patentes as suas graves consequências sociais e humanas.».
Quando comecei a escrever este post estava a pensar resumir aqui o artigo, mas ao lê-lo duas e três vezes mais fui ficando com a clara ideia de que é preferível deixar-lhe aqui mais um poiso virtual, na sua totalidade.
As Reformas das Pensões entre Pressões Políticas e Constrangimentos Financeiros Comunicação
(Maria Clara Murteira / Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra)
1- A doutrina neoliberal como moldura
Principalmente a partir de 1992, com o Tratado de Maastricht, e a subsequente orientação política preparatória da adesão à moeda única, a arquitectura das instituições da União Europeia e as políticas seguidas nos domínios do mercado de trabalho e da protecção social foram fundamentadas na doutrina neoliberal.
Com efeito, desde Maastricht, os países da área euro têm estado sujeitos a uma “cultura de disciplina” nas regras que orientam a condução da política macroeconómica. A ideologia dominante impõe limites estreitos à política orçamental e à evolução da despesa pública. Sobre os mercados de trabalho e os sistemas de protecção social irá incidir o ónus do ajustamento. As “reformas estruturais” nestes dois domínios são preconizadas como via indispensável para, por um lado, evitar distorções no funcionamento do mercado de trabalho geradoras de desemprego e, por outro lado, evitar elevados níveis de défices e dívidas públicas.
É evidente o fracasso das políticas orientadas por esta perspectiva: são manifestos os seus efeitos adversos na estabilização das economias no tocante ao crescimento, ao emprego e ao equilíbrio externo de diversos países; são patentes as suas graves consequências sociais e humanas. Apesar disso, temos assistido ao seu aprofundamento progressivo.
De seguida, caracterizam-se brevemente alguns traços essenciais da doutrina neoliberal hoje dominante na União Europeia, tópico fundamental para se poder entender a evolução recente e o rumo que se perspectiva para a segurança social e, em particular, para as pensões.
Em primeiro lugar, a visão hoje dominante na EU reserva à política macroeconómica um papel limitado na estabilização das economias, estando as políticas orçamentais nacionais centradas no objectivo de equilíbrio orçamental sendo fortemente restringidas pelo PEC. A política monetária comum tem por objectivo exclusivo a estabilidade de preços. Segundo esta visão, o peso do Estado no conjunto da actividade económica deve ser reduzido, sendo fundamental impedir o avolumar da despesa pública. Por essa razão, foi definida uma cláusula que impede os Estados de recorrer ao Banco Central Europeu para financiar os seus défices, vendo-se forçados a recorrer aos mercados. Encontrando-se os mercados financeiros globalizados e desregulamentados, os Estados ficam expostos aos seus disfuncionamentos e à especulação.
Em segundo lugar, no que se refere ao funcionamento do mercado de trabalho, de acordo com esta visão, os elevados níveis de desemprego resultariam, das instituições do mercado de trabalho. A flexibilização do funcionamento deste mercado seria um imperativo, pois o excesso de regulação e o elevado custo do trabalho seriam as causas do desemprego de massa. Este poderia assim ser solucionado, dispensando a intervenção da política orçamental. Nesta óptica, o salário (tal como as contribuições sociais) é considerado como uma componente do custo do trabalho (e não como um rendimento). A flexibilidade de salários é defendida em prol do equilíbrio no mercado de trabalho e da competitividade externa das economias.
Em terceiro lugar, os mecanismos de protecção social são encarados como algo que perturba o processo de mercado, constituindo “um obstáculo à eficiência e ao crescimento económico”[2]. Numerosos autores têm salientado os efeitos adversos das despesas em segurança social sobre o desempenho das economias, em particular as pensões de reforma, devido ao aumento dos encargos com o seu financiamento decorrentes do envelhecimento populacional, e as prestações associadas ao desemprego, responsabilizadas pelos desequilíbrios nos mercados de trabalho. Assim, têm defendido reduções nos níveis destas prestações, de modo a evitar que estas distorçam o funcionamento do mercado de trabalho, por um lado, e que se traduzam em elevados níveis de défices e dívidas públicas, por outro.
2- As pressões para a reforma das pensões
Para perceber a evolução recente dos sistemas de pensões precisamos, por um lado, de reconhecer as pressões políticas que se têm feito sentir sobre estes esquemas e, por outro, de adoptar uma visão articulada da política económica e da política social, pois é o próprio modelo de regulação macroeconómica seguido na União Europeia que tem originado a desestabilização financeira dos sistemas de segurança social.
A evolução recente dos sistemas de pensões, nos países da União Europeia e, em particular, em Portugal, enquadra-se num movimento internacional de grande amplitude, impulsionado por diversas organizações internacionais, como o Banco Mundial[3] e a OCDE[4] que,a partir do final dos anos oitenta, vêm propor as suas visões, os seus modelos e as suas recomendações políticas para as reformas das pensões. O argumento de que os sistemas de públicos de repartição se iriam tornar insustentáveis de um ponto de vista financeiro, devido à sua vulnerabilidade ao envelhecimento demográfico, tem sido, desde então, recorrentemente invocado no debate político para justificar a preocupação com a sustentabilidade financeira dos sistemas de pensões. Apela-se assim, à limitação da despesa dos sistemas públicos financiados por repartição, de forma a evitar os previsíveis encargos crescentes com pensões, e ao acréscimo do papel dos esquemas privados de capitalização e dos esquemas voluntários. O modelo do Banco Mundial preconiza um sistema misto de pensões, em que um primeiro pilar público garantiria mecanismos de redistribuição, destinados a evitar a pobreza dos idosos; um segundo pilar, sujeito a lógica estritamente contributiva, deveria funcionar como um mecanismo segurador privado, relacionando-se o valor da pensão essencialmente com o valor das contribuições passadas e em que um terceiro pilar, privado, voluntário, financiado por capitalização, deveria ser alargado.
Nos países da União Europeia, um outro factor impulsionador das reformas foi a preparação para a adesão à moeda única, que impôs o controlo dos défices e das dívidas públicas, reforçado a partir de 1997, com a União Económica e Monetária e a adopção do Pacto de Estabilidade e Crescimento. A partir de 2000, as instituições europeias passam a definir orientações comuns para as pensões, pressionando os governos a empreender reformas destinadas a assegurar a sustentabilidade financeira dos sistemas de repartição, mediante a contenção da despesa, e a encorajar o desenvolvimento dos esquemas de capitalização e da provisão privada voluntária.
Com a adopção do PEC, passa a ocorrer uma pressão directa para a contenção da despesa pública em geral e da despesa em pensões e outras prestações sociais, em particular. Desde então, a despesa em pensões tem estado sob uma atenta supervisão pelas instituições da União Europeia encarregadas dos assuntos económicos e financeiros.
Além disso, o modelo de regulação macroeconómica imposto pelo PEC, que tem sido sucessivamente reforçado, tem-se traduzido em políticas orçamentais restritivas impondo limites ao ritmo de crescimento económico e ao emprego.
É a combinação de políticas orçamentais restritivas e do ritmo lento de crescimento económico que tem minado o equilíbrio financeiro dos sistemas de segurança social. É o disfuncionamento da economia que põe em causa o funcionamento deste sistema. Neste sentido, Fitoussi observou: “Restringir as finanças públicas, por vezes contra toda a lógica, pode de facto servir o propósito de reduzir o papel do Estado na economia. Deprimir o crescimento e o emprego torna o encargo dos sistemas de segurança social mais pesado, e assim faz parecer a reforma ainda mais inevitável e fácil de engolir pelo eleitorado”[5]
O que se passou recentemente em Portugal, no domínio das pensões é ilustrativo. Em grande medida, as dificuldades de financiamento da segurança social em Portugal, que hoje se manifestam, são consequência do disfuncionamento da economia. Este facto foi reconhecido no Relatório Técnico sobre a Sustentabilidade da Segurança Social, de 2006, que fundamentou a reforma de 2007, e que efectua uma análise lúcida das dificuldades de financiamento sentidas.
O relatório reconhece que o “fraco crescimento económico, concomitante crescimento do desemprego, [a] maturação progressiva do sistema, e [a] consolidação dos esquemas de antecipação/flexibilização da idade de acesso à pensão”[6] constituem as principais causas de desequilíbrio financeiro da segurança social.
Por um lado, a redução da população activa empregada suscita a redução das receitas de contribuições sociais e o aumento concomitante das despesas com prestações associadas ao desemprego. Por outro lado, em contexto de desemprego de massa, manifestam-se as consequências desestabilizadoras do fenómeno de antecipação das reformas, com uma expressão muito significativa. Para muitos, a reforma antecipada não é uma opção, mas o menor dos males face ao espectro do desemprego. O envelhecimento populacional, por seu turno, impõe uma necessidade crescente de recursos mas, sublinhe-se, a ritmo lento e progressivo.
Se o citado relatório é lúcido no diagnóstico de situação, ao reconhecer o disfuncionamento da economia como causa de dificuldades financeiras no sistema de segurança social, a sua lucidez cessa quando, na prescrição de políticas, nenhuma referência faz à necessidade de intervir ao nível das causas, isto é, de promover o crescimento económico e o emprego para viabilizar financeiramente o sistema. Em vez disso, utiliza-se o argumento do envelhecimento populacional para justificar a política de controlo orçamental baseada na imposição de limites ao crescimento das pensões.
Ora, o crescimento económico contribui não só para equilibrar financeiramente os sistemas de segurança social no presente, mas é também o melhor instrumento para atenuar os problemas futuros decorrentes do envelhecimento demográfico.
Se pensarmos em termos macroeconómicos e reais, concluiremos que o produto futuro é uma variável essencial, pois é nele que se baseia, inevitavelmente, o consumo dos futuros reformados. Do ponto de vista da sociedade no seu conjunto, o principal problema colocado pelo envelhecimento demográfico é o acréscimo tendencial do consumo dos reformados em relação à produção total de bens e serviços.
Assim, as questões cruciais colocadas pelo envelhecimento demográfico são duas: - Que políticas que podem contribuir para o crescimento da produção futura? - Como estabelecer regras de partilha do produto definindo a parte que cabe aos reformados?
Assim sendo, uma regulação macroeconómica favorável ao crescimento será crucial para responder aos desafios impostos no futuro pela evolução demográfica. Sem crescimento, a partilha do produto será mais difícil envolvendo uma das três soluções do designado “triângulo maldito”[7] : reduzir pensões, aumentar contribuições ou elevar a idade da reforma. Numa perspectiva agregada, o problema das pensões é de natureza essencialmente distributiva. A questão essencial consiste em definir uma regra de partilha que especifique a parte dos reformados no produto total. Logo, a análise da segurança social não deve ser dissociada da discussão sobre o modelo de regulação macroeconómica e sobre o padrão de criação e distribuição de rendimento numa sociedade.
3- As decisões do Conselho Europeu de Março
Relativamente às decisões do Conselho Europeu, efectua-se, de seguida, uma alusão breve às contrapartidas exigidas para o reforço dos fundos do Mecanismo de Estabilidade Europeu que têm reflexos no domínio das pensões. Neste caso, não parece haver grandes alterações em relação às orientações anteriores. Os compromissos políticos assumidos inscrevem-se, de facto, num movimento de grande amplitude que já se manifesta há anos. No entanto, dois tópicos merecem destaque.
Algumas contrapartidas exigidas podem suscitar uma maior desestabilização do equilíbrio financeiro do sistema de segurança social. É o caso, em primeiro lugar, das reformas estruturais no mercado de trabalho, nomeadamente, a proposta de redução da tributação do trabalho, que poderá significar redução das contribuições sociais, o que terá impacto desestabilizador do equilíbrio financeiro do sistema, por via da redução da receita. É também o caso, em segundo lugar, da inscrição na Constituição de uma regra de enquadramento do défice orçamental, que apresenta efeitos adversos no actual contexto recessivo, dado o carácter pro-cíclico dos planos de redução dos défices, desestabilizando ainda mais o equilíbrio financeiro do sistema. Em consequência, as pressões a que anteriormente se fez alusão são agora reforçadas.
No domínio específico das pensões, não há nada de novo: o alinhamento dos sistemas de pensões com a situação demográfica nacional (alinhando a idade da reforma efectiva com a esperança de vida ou aumentando as taxas de participação dos idosos), bem como a limitação das reformas antecipadas e a criação de incentivos para o emprego de idosos. Estes dois aspectos enquadram-se nas tendências recentes de evolução dos sistemas de pensões nos países da União Europeia.
4- A estratégia europeia para as pensões e as reformas recentes dos sistemas
Seguindo as orientações da estratégia europeia para as pensões, definida a partir de 2000, diversos países introduziram reformas nos seus esquemas públicos de pensões. As principais tendências observadas foram descritas num relatório de 2006[8]. Conclui-se que em diversos países se observou uma tendência para a introdução de incentivos ao prolongamento do período de actividade, para o reforço do laço entre contribuições e prestações à escala individual e para a inclusão da esperança de vida na fórmula de cálculo das pensões. Nalguns casos, promoveu-se a provisão privada de pensões, complementando ou substituindo parcialmente a provisão pública. Alguns países reforçaram o papel das garantias mínimas de rendimento.
Considero que há argumentos sólidos que nos permitem concluir que estas reformas têm natureza paradigmática. Vejamos, a título de exemplo, o que se passou em Portugal, com a reforma do sistema de pensões de 2007, que se inscreve nesta lógica.
De facto, a reforma de 2007 envolveu mudanças de vulto nos objectivos das políticas. Isso aconteceu, quer no que se refere à substituição de rendimento que ocorre na transição para a reforma, quer no respeita à indexação subsequente das prestações. Por um lado, com a nova regra de cálculo as pensões passam a depender das remunerações de toda a carreira, e não das remunerações dos últimos anos de actividade. Assume-se implicitamente que aquelas podem divergir dos níveis remuneratórios alcançados no final da vida activa. Deixa de ser garantida a manutenção dos níveis de vida anteriores. Por outro lado, o novo método de indexação das pensões deixa de garantir a manutenção do poder de compra de todas as pensões e nem as de níveis mínimos se mantêm indexadas à remuneração mínima nacional. Em consequência, as trajectórias de rendimento na reforma dos pensionistas irão divergir progressivamente do padrão geral de evolução dos rendimentos na sociedade.
O sistema passa a estar centrado no objectivo de redução de pobreza, negligenciando o objectivo essencial das pensões que deveria ser assegurar a manutenção dos níveis de vida atingidos. A redução das taxas de substituição e a desindexação das pensões da evolução geral de rendimentos e preços, com a consequente redução do nível de vida relativo dos pensionistas, provam que o objectivo de salvaguardar níveis de vida foi abandonado. Em simultâneo explicita-se que a prevenção da pobreza entre os idosos é prioridade política. Ao mesmo tempo, consagra-se a ideia de que os esquemas contributivos se devem configurar por analogia com os mecanismos seguradores privados. Por um lado, afirma-se a tendência para manter um laço estreito entre contribuições e prestações a nível individual, reflectida na definição de uma nova regra de cálculo, que faz depender o valor da pensão das remunerações da totalidade da carreira contributiva. Por outro lado, o valor da pensão relaciona-se agora com a esperança média de vida no momento de cessação de actividade, já que o seu cálculo depende do “factor de sustentabilidade”. Os esquemas de natureza contributiva passam a adquirir um cunho próximo de um mecanismo segurador, alargando-se a esfera da responsabilidade individual neste domínio. Na lógica da reforma, a esfera da responsabilidade social poderá abranger prestações de natureza não contributiva (do regime não contributivo ou prestações sujeitas a condições de recursos).
5- Uma alteração substantiva nos regimes de repartição
Importa salientar, para finalizar, que os regimes de repartição já sofreram uma descaracterização significativa, na sequência das reformas recentes.
A repartição representa um modo de organização das pensões que se inscreve numa lógica de solidariedade de base salarial. Nisto se distingue de outros modos de organização das pensões, como a capitalização, que respeitam uma lógica patrimonial. Efectivamente, a distinção entre repartição e capitalização não se resume meramente ao plano financeiro[9], pois trata-se de duas formas radicalmente diferentes de organizar as pensões.
Os esquemas de repartição podem ser vistos como mecanismos de socialização, ou mutualização, de uma parte da massa salarial. Em cada período, a receita total proveniente das contribuições sociais é redistribuída de imediato para garantir o pagamento de um conjunto de prestações sociais, destinadas a substituir o rendimento de trabalho cessante, aos trabalhadores que enfrentam diversas eventualidades, de carácter acidental ou legal, inerentes ao exercício da actividade profissional (reforma, desemprego, doença, etc.).
Desta forma é originado um salário socializado, que é garantido aos assalariados[10] quando enfrentam as referidas eventualidades, que põem em causa a sua capacidade de trabalho e suscitam a necessidade de um rendimento de substituição. Nesta perspectiva, a pensão de reforma pode ser entendida como uma parte constitutiva do salário, um salário continuado que é garantido até ao fim da vida.
A esta visão, contrapõe-se uma outra, que perspectiva a pensão como a contrapartida das contribuições individuais prévias, ou seja, como um rendimento individual diferido. A pensão é, neste caso, inscrita numa lógica patrimonial.
Estando os esquemas de pensões subordinados a uma lógica patrimonial, importará manter um laço estrito entre contribuições e prestações. A sua organização deveria ser regulada segundo um princípio de contributividade estrita, garante de uma troca de equivalentes à escala individual: o montante de prestações a receber na reforma deveria ser próximo do valor total das contribuições realizadas ao longo da vida activa.
Quando os esquemas de repartição se desenvolveram, no pós-guerra, inscreveram-se numa lógica de solidariedade de base salarial. Recentemente, sofreram uma transformação de fundo ao transitarem de uma lógica de solidariedade de base salarial para uma lógica patrimonial. Esta ruptura processa-se através do desligamento progressivo da pensão em relação ao salário. A perda da referência salarial das pensões manifestou-se de diversas formas em diferentes países[11].
Uma das dimensões mais relevantes deste processo é a redução das taxas de substituição. Taxas de substituição elevadas definem a pensão como salário continuado. A transição para a lógica patrimonial processa-se através do reforço do carácter contributivo das pensões. Estas deixam de reflectir os últimos salários e tornam-se a contrapartida, tendencialmente estrita, das contribuições passadas. A pensão passa a assemelhar-se a um rendimento diferido. Portugal e muitos países da União Europeia aderiram implicitamente à lógica patrimonial quando adoptaram princípios, como a contributividade estrita, a neutralidade actuarial ou a ideia das contas nocionais ou virtuais, introduzidas na Suécia, para estruturarem os seus sistemas de pensões.
O movimento de desligamento das pensões relativamente ao salário conheceu, nalguns países, uma outra faceta: a mudança do método de indexação, quando a evolução das pensões foi, nalguns casos, desligada da evolução remuneratória. Não é o caso de Portugal pois, desde há muito tempo, vigorou a indexação das pensões aos preços, revertida porém com a reforma de 2007. No entanto, é de assinalar que se verificou a perda da referência salarial dos níveis mínimos de pensões do regime contributivo, que estiveram indexados à remuneração mínima nacional até 2007, e depois deixaram de o estar.
Um outro fenómeno vem, também, afectar a representação da pensão como salário: a introdução, em muitos países, de múltiplas «exonerações» e «reduções de taxas» contributivas. Na lógica original da repartição, as contribuições sociais justificam-se para permitir socializar o salário; não representam uma punção do salário, mas sim um elemento que o integra. A sua redução representa a redução da massa salarial redistribuída.
Se, nos países com modelos do tipo bismarckiano, a repartição não foi substituída pela capitalização, no entanto, os esquemas de repartição sofreram uma profunda transmutação: a referência salarial desaparece progressivamente, enquanto se transita da lógica de solidariedade de base salarial para a lógica patrimonial, passando as pensões a ser apreendidas como rendimento diferido. Este processo representa, de facto, uma alteração de natureza paradigmática que, por ser subtil, não é facilmente identificável.
Saliento, para concluir, duas ideias essenciais. Em primeiro lugar, no actual quadro de regulação macroeconómica não há margem para pensar as políticas de pensões, nem as políticas sociais em geral. Em segundo lugar, enquanto a segurança social for vista como algo que perturba o funcionamento do mercado, continuarão as pressões políticas no sentido da redução do seu peso.
Partilho ainda uma reflexão final. Vale a pena recordar que o desenvolvimento dos sistemas de segurança social no pós-guerra, como Tony Judt assinalou, não foi inspirado pela ideia de fazer uma revolução socialista. “Os esforços foram profiláticos; uma tentativa de prevenir o retorno ao passado”[12]. Os seus principais promotores eram “democratas cristãos ou liberais e não socialistas de qualquer tipo. De facto, eram velhos – muito velhos – liberais”[13].
Tony Judt lembra ainda que William Beveridge e Winston Churchill, na Grã-Bretanha, como muitos outros impulsionadores dos Estados-Providência pela Europa fora, já eram adultos quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial e, apesar disso, ainda presenciaram os horrores da Segunda Guerra. Provavelmente o que os motivou a edificar a instituição inovadora que foi a segurança social terá sido a convicção de que o fundamento da paz é a justiça social.
[1] Maria Clara Murteira; As Reformas das Pensões entre Pressões Políticas e Constrangimentos Financeira"; Conferência “Novas Vestes da União Europeia?”, 2º. Painel: A Harmonização Laboral e da Segurança Social, IDEFF, FDL, Lisboa, 4 de Abril de 2011.
[2] Lindbeck, A. et al., Turning Sweden Around, Cambridge, Massachusetts, The MIT Press, 1994, cit. A. B. Atkinson, The Economic Consequences of Rolling Back the Welfare State, Cambridge, Massachusetts, The MIT Press, 1999, p.1
[3] Banco Mundial, Averting the Old Age Crisis: Policies to Protect the Old and Promote Growth, Oxford University Press, New York, 1994.
[4] OCDE, Ageing Populations, Pension Systems and Government Budget, Paris, 1996.
[5] Jean-Paul Fitoussi, “Reform of the Stability and Growth Pact”, European Parliament, Briefing paper for the Committee for Economic and Monetary Affairs, nº 2, Abril, 2004, p.4.
[6] Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, Relatório Técnico sobre a Sustentabilidade da Segurança Social, Lisboa, 2006, p. 14.
[7] Terminologia usada por Denis Kessler, no editorial de um número da revista Economie et Statistique, publicado em 1990, dedicada ao tema das reformas.
[8] Comissão Europeia, Adequate and Sustainable Pensions: Synthesis Report, Luxembourg, Office for Official Publications of the European Communities, 2006.
[9] Nicolas Castel, La Retraite des syndicats. Revenu différé contre salaire continué, Paris, La Dispute/SNÉDIT, 2009; Bernard Friot, L’enjeu des retraites, Paris, La Dispute/SNÉDIT, 2010.
[10] Bernard Friot, Le nouvel horizon du salariat: la sécurité sociale professionnelle à l’échelle européenne, Intervention pour le centenaire de la FGCB, Bruxelles, 25 Outubro 2008, p. 1.
[11] Bernard, Friot, Le nouvel horizon du salariat: la sécurité sociale professionnelle à l’échelle européenne, Intervenção para o centenário da FGCB, Bruxelas, 25 de Outubro de 2008; Bernard Friot, «Grammaire des ressources et statut des salariés: L’exemple des pensions de retraite», in Où va la protection sociale?, dir. de A.-M. Guillemard, Paris, PUF, 2008, pp.183-201.
[12] Tony Judt, “The Future of a Decadent Europe”, U.S.-Europe Analysis Series, 28, The Brookings Institution, Fevereiro, 2006, p.2.
[13] Idem, ibidem, p.2.
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