França É a Linha da Frente na Guerra Contra a Segurança Social
(Salim Lamrani*, L’Humanité/O Lado Oculto, 2020/01/18)
Milhões de franceses lutam há semanas contra o assalto do governo de Emmanuel Macron ao sistema de segurança social, desenvolvido a rogo do sistema financeiro privado, ansioso por transformar em lucros os descontos de vidas de trabalho. E, contudo, o sistema francês de pensões – considerado um dos melhores do mundo - é saudável e capaz de absorver naturalmente o défice, de tal maneira que os próprios mentores da “reforma” admitem que não haveria urgência em fazê-la. Como a seguir se demonstra nas respostas do académico Salim Lamrani a 10 perguntas sobre o assunto, bastaria, por exemplo, que as mulheres tivessem salários iguais aos dos homens ou que houvesse um combate sério à evasão fiscal para o actual sistema de pensões estar perfeitamente equilibrado. França é, pois, a linha da frente da luta decisiva contra a ofensiva pela privatização da Segurança Social que mina a União Europeia. O neoliberalismo não dá tréguas.
1. Quando foi criado o sistema de pensões?
O actual sistema de pensões em França é um legado da Libertação, fundado pelo Conselho Nacional de Resistência. Baseia-se no princípio de solidariedade entre gerações. Deste modo, um país destruído e arruinado por seis anos de guerra conseguiu estabelecer um regime destinado a garantir aos mais velhos um nível de pensão digno. Em 1945, a criação da Segurança Social “respondeu à ambição de construir um regime de pensões que cobrisse toda a população”. Aqui estão as razões da deliberação de 1945: “A Segurança Social é a garantia dada a cada um de que em todas as circunstâncias disporá dos recursos necessários para assegurar a sua subsistência e a da sua família em condições decentes. Tem a sua justificação numa preocupação elementar de justiça social e responde à vontade de poupar os nossos concidadãos às incertezas do futuro”.
2. Quais são os princípios básicos?
O actual sistema de pensões baseia-se em quatro princípios. É obrigatório, isto é, todas as pessoas activas contribuem de forma automática. Funciona por repartição, o que faz com que o valor total das quotizações que os assalariados entregam em cada ano serve para pagar as pensões dos actuais reformados. É solidário e tem em conta os períodos de desemprego, doença, invalidez, o número de filhos, as carreiras longas e as situações de deficiência. É contributivo, porque a pensão é calculada em função das quotizações feitas durante a carreira profissional. A pensão de base funciona em anos e os direitos adquiridos contabilizam-se em trimestres.
Trata-se de um dos melhores sistemas do mundo, pois a taxa de pobreza dos mais velhos em França é das mais baixas do planeta.
3. Existe alguma urgência em reformar o sistema actual?
Actualmente, o défice conjuntural situa-se entre sete mil e 17 mil milhões de euros por ano. Segundo o Conselho de Orientação das Pensões, que é uma entidade vinculada ao primeiro-ministro, será absorvido demograficamente e o sistema tornar-se-á excedentário a partir de 2040. Por outro lado, convém recordar que as reservas globais para as pensões do regime geral e do regime privado, cujo papel é compensar um eventual défice, são superiores a 150 mil milhões de euros. Então não existe qualquer urgência. Além disso, a partir de 2025 será absorvido o défice da Segurança Social ao qual a Caixa de Amortização da Dívida Social dedica 17 mil milhões de euros anuais; o Estado disporá então desta verba que poderá dedicar ao sistema de pensões até que se encontre o equilíbrio em 2040.
4. Uma vez que o número de pensionistas aumenta, não será indispensável esta reforma?
Fala-se muito do argumento do número crescente de reformados em relação ao século passado. De facto, em 1970 havia três activos por cada pensionista. Hoje já 1,7 activos por cada reformado. Mas omite-se mencionar que um assalariado de hoje produz tanto como três activos dos anos setenta. Portanto, de um ponto de vista económico o sistema é ainda mais viável do que há 50 anos. Por que razão, então, o sistema é deficitário? Simplesmente porque a repartição das riquezas produzidas entre o trabalho e o capital é desigual. Hoje os accionistas são muito mais remunerados que os assalariados. Nos anos oitenta, a remuneração dos accionistas representava apenas nove dias de produção por ano. Hoje representa 45 dias e faz-se em detrimento dos aumentos de salários. No caso de se remunerarem proporcionalmente tanto os assalariados como os accionistas, o sistema de pensões será amplamente excedentário.
5. Quais são os riscos do sistema por pontos que o governo de Macron pretende impôr?
Com o sistema actual, cada trabalhador activo sabe em que momento poderá fazer valer os seus direitos a uma pensão de reforma e conhecerá a importância que irá auferir. Hoje em dia é preciso descontar 43 anos e atingir a idade de 62 anos para poder reformar-se com uma pensão completa. Com um sistema de pontos ninguém poderá conhecer o valor da sua futura pensão de reforma nem o momento em que poderá deixar de trabalhar, pois o valor do ponto pode ser alterado pela maioria governamental a qualquer momento.
François Fillon, ex-primeiro-ministro do presidente Nicolás Sarkozy, revelou franqueza sobre o tema durante um discurso perante os grandes empresários franceses em Março de 2016: “Há demasiados políticos que brincam com o assunto das pensões e que prometem reformas formidáveis, por exemplo, a pensão por pontos. Não se pode fazer acreditar aos franceses que isso irá resolver o problema das pensões. O sistema por pontos permite na realidade uma coisa que nenhum político se atreve a confessar: permite baixar todos os anos o valor do ponto e, portanto, diminuir o nível das pensões”.
Em todos os países onde se aplicou o sistema por pontos as pensões baixaram e a taxa de pobreza dos mais velhos aumentou. Na Suécia, por exemplo, desde a adopção de um sistema de pensões por pontos a taxa de pobreza dos mais velhos duplicou em nove anos. O sistema actual de pensões é o que produz menos pobreza entre as pessoas com mais de 65 anos. É de 6,5% em França, enquanto na Suécia atinge os 17%.
6. De que maneira se calculam as pensões no projecto de reforma? Qual é a idade de reforma dos trabalhadores?
A reforma prevê calcular o valor da pensão não sobre os melhores 25 anos para o sector privado e os últimos seis meses para o sector público, como é o caso actualmente, mas sim sobre toda a carreira. A consequência matemática é que o valor das pensões será mais baixo porque terá em conta os períodos de desemprego ou de salários baixos, particularmente no início da carreira.
Anuncia-se, por outro lado, que a idade de reforma, idade a partir da qual se podem fazer valer os direitos à pensão, que actualmente é de 62 anos, será elevada para 64 anos. Acontece que cerca de 50% dos trabalhadores activos que chegam à actual idade de reforma estão desempregados. Há 300 mil desempregados que têm mais de 60 anos em França. Qual é a consequência do aumento da idade de reforma? As pessoas sem trabalho não terão descontos suficientes para se candidatarem a uma pensão completa. Convém recordar que o candidato Emmanuel Macron fez uma promessa solene durante a campanha presidencial: “Não tocaremos na idade de reforma nem no nível das pensões”. Pois bem, com o projecto de alteração da idade de reforma e a adopção de um sistema de pontos será impossível cumprir esta promessa.
7. Haverá outras alternativas para absorver o actual défice conjuntural do sistema de pensões?
Há muitas possibilidades de colmatar o défice actual que, tendo em conta as reservas financeiras dos diferentes regimes de pensões – 150 mil milhões de euros – não é preocupante. Admitindo que o cálculo em alta do défice se confirme, isto é, 17 mil milhões de euros por ano – ou seja, o pior cenário – as reservas são suficientes para aguentar 10 anos partindo do princípio de que não se toma qualquer outra medida. Pois bem, existem várias alternativas:
- A primeira possibilidade – e é uma vergonha que não se tenha aplicado na França do século XXI – é que as mulheres sejam remuneradas da mesma maneira que os homens. Recordemos que o coração do nosso lema republicano é a igualdade. Esta medida iria colmatar imediatamente o défice actual graças aos descontos gerados pelo aumento salarial.
- A segunda possibilidade seria um aumento modesto dos salários a um nível de 5% para um salário de 1500 euros. Metade da população activa de França tem um salário mensal inferior a 1500 euros. Isso permitiria conseguir 18 mil milhões por ano de quotizações para as caixas de pensões.
- Uma terceira solução seria seguir o que defende o Conselho de Orientação das Pensões no sentido de aumentar a taxa de desconto de 1%. E poderíamos multiplicar os exemplos.
8. Não será o défice actual o resultado de decisões políticas?
Efectivamente as políticas governamentais são, em parte, responsáveis pelo actual défice. Deste logo, a isenção de impostos sobre as horas extraordinárias priva o Estado de receitas que permitiriam equilibrar o sistema.
Por outro lado, segundo o Conselho de Orientação das Pensões, a supressão de 120 mil trabalhadores da função pública anunciada pelo governo tem um impacto importante no défice do sistema de pensões: “A política do Estado é muito determinante. Se suprimirem um milhão de postos de trabalho públicos em França haverá poupanças orçamentais muito importantes mas levarão os regimes de pensões com os convénios actuais à falência”. Numa palavra, manter o número de funcionários em sectores necessitados como a saúde ou a educação permitiria resolver o problema do défice.
Além disso, o relatório Delevoye, com 132 páginas, que constitui a base do projecto de reforma actual, prevê também isentar os elevados rendimentos superiores a 120 mil euros anuais de descontos para pensões e baixar a taxa de 28% para 2,8%. Segundo o Agirc-Arrco, organismo de pensões complementar para os assalariados do sector privado, esta medida privaria o sistema de pensões de quatro mil a sete mil milhões de euros anuais de quotizações. Não é possível promover o défice e, ao mesmo tempo, pretender lutar contra ele. Além disso, os investimentos feitos num sistema de pensões por capitalização dariam direito a uma isenção fiscal da ordem dos 70%, o que contribuiria para empobrecer ainda mais o Estado privando-o de receitas.
Por último, actualmente a parte do PIB dedicada às pensões é de 13,8%, ou seja, 330 mil milhões de euros. Através da história, a percentagem do PIB dedicada às pensões foi sempre adaptada às flutuações da composição demográfica, para assegurar níveis decentes de pensões. Era de 5% em 1960, 9,4% em 1975, 11,6% em 2000, 13% em 2007 e será de 14% em 2025. O Conselho de Orientação das Pensões sublinha, a propósito deste tema, que “a parte das despesas de pensões no PIB flutuará de maneira significativa quaisquer que sejam os cenários económicos”, isto é, mesmo no caso de um crescimento muito baixo. Pois bem, o governo tomou a decisão de limitar esta parte a 14%, mesmo depois de 2025, enquanto a parte dos pensionistas passa de 22% em 2025 para 27% em 2060. A consequência inevitável será uma diminuição das pensões. Pelo contrário, haveria que ajustar a parte do PIB à evolução demográfica. Deste modo, caso se dedicassem 16% do PIB ao sistema de pensões, o défice desapareceria automaticamente.
Outro exemplo: a evasão fiscal custa anualmente cem mil milhões de euros a França. Se o país tomasse medidas para lutar contra esta praga isso resolveria todos os problemas de défice da nação e permitiria investir massivamente para reabsorver o desemprego e aumentar os salários. O que geraria mecanicamente uma diminuição das despesas do Estado em termos de subsídios de desemprego e um aumento de receitas graças aos impostos conseguidos através dos postos de trabalho criados. Estes novos assalariados, com os seus rendimentos consumiriam mais, o que preencheria os registos de encomendas das empresas, as quais, por sua vez, contratariam novos trabalhadores para corresponder à procura, criando-se assim um ciclo virtuoso que tornaria a sociedade francesa mais igualitária.
9. Não haveria que criar um regime universal e suprimir os regimes especiais?
O argumento do regime universal não é sustentável porque o governo já aceitou o facto de haver várias categorias, como os polícias, os militares, o pessoal dos transportes aéreos, os camionistas e outros que conservarão os seus regimes específicos graças à mobilização destes sectores. Na realidade, os regimes especiais – existem 42 – só dizem respeito a 3% da população activa. Não pode seriamente pretender-se desmantelar um sistema que funciona perfeitamente só porque 3% dos trabalhadores têm um regime especial, o qual muitas vezes se justifica pelas particularidades das suas profissões. Por que razão, se esta reforma é sinónimo de progresso social – segundo afirma o governo – se iriam privar estas categorias destes privilégios? Esta afirmação não resiste ao senso comum.
Alguns regimes especiais são deficitários por razões demográficas, com o aumento do número de pensionistas, mas também por causa de decisões políticas. Vejamos o caso da empresa ferroviária SNCF. Há 30 anos havia 300 mil trabalhadores neste sector. Hoje há apenas 150 mil, porque o Estado decidiu proceder a uma redução drástica do número de assalariados, apesar das necessidades reais. Então é normal que o sector seja deficitário, já que tem menos 50% de contribuintes. Mais uma vez não é possível ser-se responsável pelo défice e ao mesmo tempo apontá-lo a dedo para justificar o desmantelamento do sistema actual.
10. Qual é o verdadeiro objectivo desta reforma?
Na realidade trata-se de uma reforma ideológica cujo objectivo é promover o desenvolvimento de um sistema de pensões complementar por capitalização, ao qual a população activa recorrerá logicamente devido às incertezas geradas por um sistema de pontos. Com efeito, se os assalariados e funcionários não sabem qual será o valor da sua pensão de reforma, os que tiverem essa possibilidade irão subscrever contratos de pensões por capitalização, fundos de pensões nos bancos e organismos de seguros. Trata-se de permitir a estas entidades privadas, que cobiçam há muitos anos as centenas de milhares de milhões de euros que o sector de pensões representa, fazerem avultados lucros.
O próprio relatório Delevoye confessa que não há qualquer urgência económica em reformar o sistema actual. É importante citá-lo, na página 6: “O nosso sistema de pensões permite garantir aos nossos reformados um nível de vida satisfatório, tanto em comparação com o resto da população francesa, como com a situação que existe nos nossos vizinhos europeus. Graças aos esforços feitos nos últimos 25 anos, encontra-se actualmente próximo do equilíbrio financeiro”.
Em conclusão, o projecto actual de reforma do sistema de pensões é uma regressão social sem precedentes. Não se justifica de maneira alguma, uma vez que a França nunca foi tão rica em toda a sua história. Há dois problemas principais em França aos quais o governo deveria dedicar-se: o desemprego e a repartição desigual da riqueza.
*Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-Americanos da Universidade Paris Sorbonne – Paris IV; professor titular da Universidade de Reunião, especialista das relações entre Cuba e os Estados Unidos.
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