A Leonor não cabe na campanha
(Daniel Oliveira, in Espesso, 2020/01/08)
A morte de Leonor vai ficar nos registos do Hospital Garcia de Orta. O hospital público onde teve o tratamento que merecia. Infelizmente, tarde demais. Leonor, com 12 anos, tinha dores fortes e febre. Foi atendida pela primeira vez a 17 de dezembro, fez análises para saber se tinha uma infeção urinária e depois foi medicada para um problema muscular. A 20 de dezembro piorou e no dia seguinte voltou ao hospital. Nem a camisola a mandaram tirar, diz a mãe. Com enormes dores, gritou. A pediatra disse que ela não podia sentir tantas dores depois do medicamento que lhe tinha sido ministrado. Aconselhou uma consultada com um pedopsiquiatra. Estaria a pedir atenção.
A 22 de dezembro, Leonor entrou em hipotermia e tinha manchas roxas no corpo. O INEM levou-a até ao Hospital Garcia de Orta. Aí, fizeram-se todos os exames que não tinham sido feitos. Análises ao sangue, TAC ao tórax, raio-x, tudo o que na CUF não fizeram, conta a mãe de Leonor. O TAC ao tórax revelou o músculo cheio de sangue. Quando os médicos lhe iam fazer uma TAC ao cérebro, Leonor entrou em paragem cardíaca. Foi reanimada uma vez, mas não resistiu à segunda. Tinha uma ruptura no baço. Apesar da tragédia, a mãe diz que foram incansáveis no Garcia de Orta. E deixou um aviso aos amigos: “os hospitais privados não são melhores que os públicos”.
Deixei aqui os factos. Depois disto poderia passar para conclusões sobre o que a médica da CUF poderia ter feito e não fez. Não faço isso. Porque não sei porque não o fez. Porque a acusação de negligência médica é gravíssima e estou farto de esquadrões de justiceiros que crucificam profissionais. Porque ser médico é estar quotidianamente exposto ao erro. Por isso espero pelas conclusões do inquérito depois da sua suspensão.
Poderia fazer um julgamento sobre o Hospital da CUF de Almada. Mas para isso precisaria de saber que indicações têm os médicos em relação às análises que devem e não devem mandar fazer. Saber se há falta de meios para que se faça o diagnóstico. Saber se, havendo meios, se tenta poupar. Não sabendo nada disto, não tenho qualquer razão para não acreditar que houve um fatal e lamentável erro. Que até pode vir a ser justificado, porque negligência não é o mesmo que falhar. Falhar é da natureza da atividade médica.
Poderia, por fim, fazer o paralelo entre o tratamento que Leonor teve no público e no privado. Ele é factual: foi no hospital com instalações menos confortáveis e médicos que recebem bem menos do que os do privado, e que não será compensado com lucro pela seguradora, a ADSE ou o cliente, que Leonor fez o exames que tinha de fazer. Não precisaria de mais nada se não citar o aviso que a mãe fez aos seus amigos. Só que a enunciação destes factos não chega para fazer lei. A única coisa que tenho como certo, porque isso corresponde a uma experiência quotidiana de todos, é que se a coisa aperta, quando chega ao fim da linha, é no Serviço Nacional de Saúde que quase tudo desagua. Para o quotidiano sem risco quase todos preferem o privado, com menos esperas e mais conforto. Quando chega a escolha entre a vida e a morte é no público que quase todos acreditam. Porque sabem que os critérios de um e de outro são necessariamente diferentes.
Dizer isto não é fazer deste caso um exemplo de ume regra. Porque nada sei que o permita fazer. Mas há um coisa que sei. Que não ouvi uma palavra do bastonário da Ordem dos Médicos sobre as condições nos hospitais privados. Que não ouvi uma voz da oposição a atribuir esta morte à falta de investimento, ou à ganância ou à incúria dos grupos privados.
Quando esta morte estúpida aconteceu na CUF passou a ser apenas uma morte estúpida. Não teve direito à conclusão política ou generalização leviana que se faz com os hospitais públicos. Porque a campanha a que assistimos há meses não é por melhor serviços de saúde, sejam no público ou no privado – as vidas valem o mesmo e, como vemos, é no público que a tragédia chega quando já pouco há a fazer. É uma campanha contra o Serviço Nacional de Saúde. Que quer convencer os portugueses de uma mentira: que o SNS está esgotado e é preciso entrega-lo aos grupos privados.
Leonor não cabe nesta narrativa. Por isso, ela não existe para o discurso político, seja de deputados, do bastonário ou dos muitos profetas do apocalipse. O caso de Leonor é um caso. Os casos só não são um caso, mas lei geral do colapso, quando servem a narrativa para preparar os excelentes negócios que se hão-de fazer.
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