2017/09/11

Grande Reportagem de uma Grande Homenagem

Grande texto, grande reportagem de uma grande homenagem.

Tudo em grande como costuma sair da pena do "Manel do Violino".

Obrigado Manel, não pares de escrever violino, perdão, de tocar violino.

A música dos dias em que o futuro nasceu

(Manuel Pires Rocha in Avante!, 2017/09/07

Quando as primeiras notas da Carvalhesa soaram nas colunas de som do Palco 25 de Abril, a orquestra e o coro estavam já instalados e prontos a iniciar o Concerto “100 Anos de Futuro”. A praça foi então tomada pela dança colectiva que sempre acompanha o toque da velha moda transmontana. Por breves instantes a Sinfonietta de Lisboa e o Coro Lisboa Cantat foram o público, e o público o protagonista.

Calado o brado das muitas vozes, acendidas as luzes sobre o palco, instalado o silêncio na praça, por sobre o sussurro da Festa, as madeiras abriram caminho às vozes da primeira das Danças Polovtsianas de Borodine, no primeiro dos maravilhamentos do Concerto. Portuguesas as vozes mas russo o cantar, Alexander Borodine moldando a música do seu povo. Era o surgimento de uma nova Rússia, a vida colectiva construída a partir da imagem sonora popular, um traço mais na criação da consciência revolucionária que viria a dar origem à Revolução de Outubro. Vibrante a orquestra, as Danças foram fixando no relvado, ainda pouco pisado, quem passava pela avenida que circunda a praça.



Baba Yaga (a Bruxa Má dos Russos) sobrevoou a Atalaia com a sua vassoura de violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, arrastando na revoada os restantes naipes da orquestra, envolvendo o público numa trepidação ora das cordas ora dos sopros, as percussões rasgando o ar até desaguar, adiante, na solenidade grandiosa de A Grande Porta de Kiev, pintada a metais por Maurice Ravel a partir de Quadros de Uma Exposição, a obra para piano de Modest Mussorgsky.

Há ainda quem se surpreenda com aquela música de muitas cores, normalmente arredada dos percursos do chamado cidadão comum. O Palco 25 de Abril cumpre o seu papel revolucionário de interpelador. A segunda das obras apresentadas, a Dança Infernal do Rei Katchei, do bailado Pássaro de Fogo de Igor Stravinsky, emociona o auditório. Mesmo quem desconhecesse o desafio de Ivan a Katchei, por amor de uma princesa, e a resposta violenta do imortal tirano, há-de ter percebido que aquela dança infernal tinha, naquele lugar, o significado de uma metáfora. Texturas musicais como passos decididos de soldados, marinheiros e operários - os Pássaros de Fogo que venceram a imortalidade da águia dos Romanov e devolveram a festa ao terreiro dos mortais.

Outras luzes se acenderiam, a seguir, nos ecrãs do Palco 25 de Abril. As dos “bonecos de luz”, que Romeu Correia dizia serem as do cinema. Vai ser projectado o filme Outubro — Os 10 Dias que Abalaram o Mundo (1928), de Sergei Eisenstein. Cândido Mota anuncia Mário Laginha, que toma o seu lugar no piano. No piano não – no ar de Petrogrado, porque as imagens vão mostrar as ruas, os edifícios, os próprios protagonistas da Revolução de Outubro, captados pela câmara de Eisenstein. Laginha será brilhante no retrato sonoro daqueles dias, a trama musical fundida na trama cinematográfica.

Dimitri Shostakovitch regressou à Festa, desta vez para assinalar a Revolução que tão bem descreveu. A Abertura Festiva op. 96, abriria de novo caminho às muitas sonoridades da Sinfonietta de Lisboa. Cinzento, o início do Poema Sinfónico op. 131, revelou a cor dos meses que antecederam a Revolução, a de uma Rússia entre o mando de Nicolai e o mando de Kerenski; o público acompanha com atenção o movimento da partitura (da História), entusiasma-se com a luz que agora soa nos violinos, depois nas percussões, mais adiante nos metais. Agora toda a orquestra é vivacidade revolucionária, e há gente a chegar ao recinto a tempo da próxima obra: de Dmitri Shostakovich, dois andamentos da Sinfonia n.º 12, O Ano de 1917 — À Memória de Lenin. Em Aurora ouvem-se os primeiros momentos da Revolução, entre o sussurro da tripulação insurrecta e o troar dos canhões, a bordo do cruzador de onde foi disparado o sinal inicial, texturas e ribombares que são os sons da Revolução a caminho da Praça do Palácio. No último acorde do 4º andamento é já do Alvor da Humanidade que a orquestra fala, do tal futuro que é tema do Concerto e propósito do público que se levanta em aplausos.

Mário Laginha regressaria ainda, para a leitura pianística de O Homem da Câmara de Filmar, de Dziga Vertov. Nem só um filme nem só uma obra pianística, antes um duo de escultores – um da luz, outro dos sons. O último andamento do Concerto seria já o da festa total: Kalinka, Os Barqueiros do Volga, Partizans, Puts e Katiusha, a viagem temporal entre a Rússia feudal e a URSS socialista. Os camponeses pobres, os barqueiros famintos, mas também os sovietes de operários – de Ivanovo a Petrogrado –, os Decretos da Terra e da Paz, a electrificação, a bandeira vermelha no telhado do Reichtag, os anos do poder soviético.

No final, todo o palco está iluminado, as luzes dos projectores varrem o público, os músicos, os coralistas, o céu da Atalaia. O som da Festa funde-se com o dos pavilhões e dos palcos das regiões, num aplauso que o fogo de artifício vai unificar, anunciando que na Festa do Avante! também é Outubro, o mês em que o futuro nasceu.

(O texto completo com o último parágrafo veio daqui)

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