2018/05/25

Eutanásia? Sim! Porque:

Eu quero poder usufruir da benemérita ajuda de terceiros para por termo à minha vida, no caso de eu próprio, estando incapaz de o fazer autónomamente, entender ter chegado o momento de lhe por termo, sem para tal forçar esses terceiros a porem em risco a sua vida ou liberdade por, benemeritamente, me ajudarem a levar a cabo algo que, porque só em mim tem impacto, só a mim diz respeito e sobre o que não aceito quaisquer juízos de valor.

Se o puder fazer autonomamente fá-lo-ei sem envolver terceiros, obviamente.

Dito isto, e porque são o destino da minha vida e o meu direito de sobre ele decidir que estão em causa, vou começar por olhar para os dois valores essenciais em causa: vida e liberdade. Por esta ordem.

«Matar um ser humano é destruir um universo» e «é proibido proibir» são valores para mim fundamentais. E digo fundamentais e não absolutos porque, adepto que sou da dialética, me estão vedados, sim, proibidos, quaisquer absolutos. Quero com esta escolha do fundamental sobre o absoluto, relevar o papel essencial do contexto, da realidade em que estou imerso, do mundo em que vivo, da sociedade em que atuo, para a tomada de qualquer decisão, seja ela do foro intimo e pessoal, como a que está em causa, ou tenha ela impactos sensíveis em terceiros, caso em que me verei obrigado, eticamente obrigado, a considerar e sopesar os limites fundamentais da minha liberdade individual.

Se uma, minha, potencial, acção, poder dar corpo a uma contradição entre eles ver-me-ei eticamente obrigado a pensar cuidadosamente e a sopesar todas as consequências de tal acção.

Um exemplo? Uma escolha simples: sim, concordo que é proibido matar! E sim, acabo de optar pelo valor da vida sobre o valor da liberdade. De forma absoluta? Não! Caso a caso, terei de sopesar e avaliar a justeza de mortes ocorridas em legitima defesa, incluindo aqui a legitima defesa de valores coletivos e individuais.

Sim, as escolhas nunca são simples quando estão em causa contradições, mas, se abrirmos espaço para a dialética, da contradição entre as duas teses acima enunciadas, acabará por emergir uma síntese, uma terceira tese que porá fim a essas contradições.

Um exemplo? Durante séculos as mulheres lutaram pela seu direito de decidir sobre o seu corpo e durante séculos, mercê de um contexto cultural imposto por uma crença, tal direito foi-lhes negado em nome de uma pretensa divinização da vida". Passaram-se séculos de abortos reais, fogueiras de fogo e excumunhão, evolução do conhecimento sobre a vida, incluindo a vida humana, e só no século passado, meio século depois de as mulheres terem direito de voto, se conseguiu racionalmente sintetizar um caminho que respeita o direito da mulher de decidir sobre o seu corpo e a sua vida.

Como? Legislando sobre a interrupção voluntária da gravidez.

A resolução da contradição pôs fim ao estigma que remetia para as catacumbas do oprobio um ato levado a cabo por um imenso número de mulheres, mas mais do que no foro intimo pessoal da mulher, o ato de legislar sobre a ivg retirou da esfera criminal todos os que, benemeritamente, a queriam ajudar a executar a sua decisão mas não o podiam fazer sem por em risco a sua liberdade e bem estar.

É exatamente isso que está em causa quando falamos da morte medicamente assistida.

Eu quero por fim à minha vida. Em que medida é que essa minha vontade tem impacto nas vidas de terceiros? N E N H U M A !

Logo ninguém tem nada a ver com isso. Se o puder fazer autonomamente fa-lo-ei, se não o puder fazer autonomamente T E N H O de ter o direito de pedir ajuda a quem me possa ajudar sem com isso por em risco a sua saúde, liberdade e bem estar.

Qual é a solução? Legislar sobre a morte medicamente assistida.


P.S. - Dia 23 de julho, quase uma semana depois da morte do Fernando Semedo, dei de caras com este texto da Isabel Moreira. Como além de homenagear um homem, honra uma das suas últimas causas, tenho de o manter aqui há mão. Mais cedo do que tarde vou precisar deles, três, dela, dele e do texto dela sobre ele ;-)

Não me lembro do dia em que te conheci, João Semedo
(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 22/07/2018)

Estive a fazer um esforço de memória, mas não me lembro do dia em que te conheci, João. Não deveria ser difícil, porque a nossa amizade não tem décadas, tem antes os anos da minha vida parlamentar.

Não me lembro do dia em que te conheci.

Não me lembro desse dia porque – agora percebo – é comum a adesão a alguém, quando imediata e intensa, jogar com a temporalidade e, subitamente, parece que aquela pessoa sempre ali este. Tu, no caso, meu querido João.

Aderi a ti por causa da tua autenticidade e da firmeza do teu carácter. Antes mesmo de ser tua amiga, essas qualidades choviam do teu olhar direto, forte, irónico, atento, sorridente, cúmplice, terno, e, de repente, nosso.

Aderi a ti por causa das tuas causas.

A igualdade era para ti condição de liberdade e, por isso, estiveste sempre ao lado de quem menos pode, porque menos tem.

Aderi a ti porque um dia deste por mim. E ajudaste-me numa fase lixada da minha vida. Olhaste fundo, pegaste-me no braço e fomos dar uma volta. Com o teu saber médico e com a tua generosidade, deste cabo do que estava a dar cabo de mim. Fiquei boa. E menos sozinha. E fizemos piadas para sempre sobre o meu caso clínico.

Percebi que eras assim. Um coração aberto, empático, um diálogo para quem o quisesse.

Mas atenção, gente que esteja a ler isto: o João tomava partido. O João tomou partido toda a sua vida, escolheu os seus combates, nunca temeu adversários e, nos últimos tempos da sua vida, entregou-se até ao fim às causas do SNS e da morte assistida.

Foi na luta pela despenalização da morte assistida que ficamos mais amigos. O João lutou pela aprovação da dignidade de todos na liberdade de cada um. E acreditou que após um debate tão alargado e sério na sociedade, a seriedade se mantivesse até ao fim e que a tolerância vencesse.

Enganou-se.

Por isso mesmo, quando foi lançado o livro por si organizado com o título “Morrer com Dignidade”, o João, não podendo estar presente por causa da doença, enviou um texto magnífico, no qual diz isto: “Nos últimos dois anos, não me recordo de qualquer outro tema tão discutido como a morte assistida. Foi um debate intenso, muito participado e que mobilizou e envolveu a opinião pública portuguesa. Infelizmente, nem tudo correu bem. O radicalismo extremista em que apostaram alguns adversários da despenalização poluiu o debate com uma série de mentiras, insinuações e falsificações sobre o que se verifica nos países em que a morte assistida é permitida e sobre o que propõem os projetos de lei que vão a votos, no próximo dia 29, no nosso Parlamento. O Movimento considerou, e bem, ser indispensável responder a essa campanha e repor a verdade com isenção, rigor e objetividade informativa. Não sendo obra perfeita, julgo que esse propósito foi plenamente conseguido com esta edição, constituindo um importantíssimo contributo para a aprovação, entre nós, da despenalização da morte assistida. Ajudar a morrer serena e tranquilamente, acabando com o sofrimento inútil, é uma atitude muito nobre, de elevado valor moral e de grande humanismo, que não podemos deixar que seja desvalorizada, caricaturada ou comparada com um homicídio. Consagrar na lei a despenalização da morte assistida é consagrar o direito de todos a verem respeitada a sua vontade, sem obrigar, mas também sem impedir seja quem for de encurtar a sua vida, para por termo a um sofrimento que considere inútil e desumano. Despenalizar é colocar a tolerância onde até hoje tem estado a prepotência de alguns impondo-se a todos os outros. No dia 29, é isso que está em causa”.

Não me lembro do dia em que te conheci, João.

Mas conheci-te e reconheci-te. Seremos muitas e muitos a continuar as tuas lutas, tomando partido, dialogando, exigindo seriedade, inscrevendo o teu nome nas vitórias.

Talvez seja isso a ressurreição, como tão bem me disse aquele teu amigo.

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