Uma vida digna, já agora
(Nuno Ramos de Almeida in Jornal i, 2018/05/28)
É preciso discutir o direito a um fim em condições, que tenha em conta a qualidade de vida, sem cair em simplismos e campanhas imbecis, e não esquecendo que as condições sociais em que se aprovarão um dia estas medidas ditarão se esta decisão será livre
Provavelmente, matar-me-ei. Ou, pelo menos, não descarto a possibilidade de decidir fazê-lo. Esta é uma decisão individual que não depende da crença dos outros. Ela é formada pela vida de cada um. Nunca tinha pensado muito nisso, até porque a morte era uma noite longínqua, até ter tropeçado em linhas, palavras, dias e sentimentos que me acordaram.
Em 2008 matou-se o escritor Hugo Claus e na altura escrevi qualquer coisa como isto: não sabia que Hugo Claus tinha um filho de Sylvia Kristel. Conhecia apenas dois livros dele. São bons. Amargos como a vida mais doce. Quando li a notícia da sua morte no “Libération” - tinha Alzheimer e escolheu morrer num momento em que ainda sabia quem era - lembrei-me de uma passagem de um outro autor (Cioran): “Há noites em que o futuro é abolido, quando de todos os instantes só subsiste aquele que nós escolhemos para não ser mais.” Um homem decidiu não continuar a viver. Doente e diminuído, não queria que o seu corpo sobrevivesse a ele. Não escrevia. As palavras fugiam. Sem elas, o mundo deixava de ter sentido. Era um estranho. Num momento em que conseguia pensar, falou com o filho e com as mulheres que tinha amado sobre a vontade de morrer. Repetiu-a várias vezes, a um médico, para a decisão estar de acordo com a lei belga - há mortalhas e poderes que nos perseguem até ao fim mesmo. Cumpridos os devidos procedimentos legais, acabou. Segundo todas as religiões, morreu em pecado mortal. Deus demora a aceitar um novo artigo para o seu infinito catecismo: “Concedei-nos, Senhor, o favor e a força de acabar e a graça de nos apagarmos a tempo” (Cioran). Ámen.
Apesar dessa convicção pessoal, não deixo de refletir em relação a um mundo e uma sociedade em que se vão inscrevendo supostos direitos individuais enquanto se ignoram direitos coletivos. Numa prática ideológica que consagra a atomização do indivíduo e a sua responsabilização por todas as situações sociais, como se elas não decorressem de uma determinada sociedade. Será despenalizada a morte assistida, mas não são responsabilizados política e socialmente aqueles que destroem o Serviço Nacional de Saúde e antecipam, de facto, a morte de milhões de pessoas por falta de cuidados de saúde. Saúde, educação, habitação, emprego são direitos que deixaram de o ser. São considerados heranças arcaicas de uma sociedade não livre. Livre é o mercado. Liberalizar o mercado de emprego significa despedir livremente. A palavra “liberdade” transformou-se nas regras que garantem o poder dos mais fortes e que liquidam os direitos da maioria da população, que muitas vezes foram falsamente trocados por “direitos” individuais.
Gente cuja única coerência de vida, no meio da sua corrida para o liberalismo, é o seu anticomunismo resolveu caricaturar a posição do PCP sem a ler. No meu caso, podendo não concordar com as conclusões do documento do PCP sobre a morte assistida, não deixo de refletir sobre muitos dos aspetos que lá constam. E eles não deixam de fazer parte das minhas preocupações. Nomeadamente, a parte do documento do PCP que relembra que “num quadro em que o valor da vida humana surge relativizado com frequência em função de critérios de utilidade social, de interesses económicos, de responsabilidades e encargos familiares ou de gastos públicos, a legalização da provocação da morte antecipada acrescentaria uma nova dimensão de problemas. Desde logo, contribuiria para a consolidação das opções políticas e sociais que conduzem a essa desvalorização da vida humana e introduziria um relevante problema social resultante da pressão do encaminhamento para a morte antecipada de todos aqueles a quem a sociedade recusa a resposta e o apoio na sua situação de especial fragilidade ou necessidade. Além disso, a legalização dessa possibilidade limitaria ainda mais as condições para o Estado promover, no domínio da saúde mental, a luta contra o suicídio”, defende a direção do PCP.
Conhecendo os cortes abruptos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), a pressão existente para cortar tratamentos, reduzir estadas nos hospitais das pessoas que têm de recorrer a eles, a falta de investimentos em cuidados paliativos, não é impossível prever que este novo direito venha num embrulho venenoso em que o livre-arbítrio de cada um se transforme numa espécie de pressão para acabar com a vida dos mais frágeis e desprotegidos. Tudo isso disfarçado de uma escolha assética em que os números gerais disfarçam mortos concretos. Há uns anos, em pleno período agudo da troika, um ex-ministro da Economia do PS defendeu, numa conferência sobre dotar o SNS de normas empresariais, que os médicos deviam ter o seu salário indexado aos exames médicos que ajudavam a poupar. Um doente aparecia com uma suspeita de doença grave: em vez de prescrever uma TAC, o médico dava-lhe um placebo qualquer e embolsava uma percentagem do exame poupado. Os hospitais públicos com gestão empresarial foram denunciados por não aceitarem doentes pouco viáveis, como crianças com leucemia, para não aumentarem a taxa de ocupação permanente de camas e degradarem as suas estatísticas de sucesso. Como em tudo na vida do capitalismo, não há aqui uma violência subjetiva em que alguém decide matar alguém, mas há um conjunto de decisões economicistas que têm como consequência esperada diminuir determinados custos que vão resultar no aumento objetivo da morte de pessoas, sem que ninguém tenha carregado em nenhum botão.
Temos uma ideologia que torna as pessoas descartáveis quando adoecem e envelhecem, em que os mecanismos comunitários sociais e de grupo de acompanhar os mais novos e, sobretudo, os mais velhos foram destruídos em prol de uma lógica de asilo, hospício e morte.
O filósofo coreano Byung-Chul Han publicou em 2010 o seu livro “A Sociedade do Cansaço”, onde defende que na nossa sociedade há uma espécie de liquidação da alteridade. O filósofo associa, então, esse diagnóstico clínico do homem contemporâneo não somente a essa lógica da substituição das diferenças por semelhanças, mas também aos vínculos que esse processo tem com as exigências económicas neoliberais. Trata-se de um corolário lógico da coisificação e da alienação, denunciadas por Karl Marx, em que todas as pessoas passam a ser determinadas pelo critério do consumo. E o homem do séc. xxi torna-se cada vez mais explorador de si mesmo e dos outros homens, atendendo às coordenadas da sociedade do desempenho, que se desenvolve em total oposição aos valores humanistas. As depressões cada vez mais frequentes nos nossos ambientes de trabalho são resultado dessas decisões, dos avanços tecnológicos e das redes sociais que transformaram radicalmente nossas relações afetivas. “Vivemos numa sociedade livre determinada pelo lema ‘yes we can’. Mas esse empoderamento só cria um sentimento de liberdade e converte-se imediatamente em ‘ tu deves’. Acreditamos que somos livres, mas verdadeiramente e de uma forma voluntária estamos a ser explorados até ao colapso”, afirma o filósofo num documentário sobre a sua obra.
Qualquer alteração que evite a distanásia (o prolongamento da vida a todo o custo sem ter em conta o sofrimento humano) e que abra portas a uma decisão madura e pensada que preserve a qualidade de vida é positiva.
Mas o que não deixa de impressionar nesta sociedade é que será certamente mais fácil, com os Rui Rios desta vida e quejandos, aprovar uma resolução para uma morte digna que conseguir que este governo e os anteriores se batam por uma vida digna para quem vive em Portugal. Quando lemos as posições da União Europeia para impedirem mais investimentos no SNS, é isso que percebemos. E, sinceramente, não há morte digna para quem não teve direito a uma vida digna.
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