Polónia: vítimas, cúmplices e manipuladores
(Manuel Loff in Público, 2018/02/03)
Há anos visitei o Museu da Insurreição de Varsóvia (de 1944, contra o ocupante nazi). Além do tom de ludicização da história, que transforma os museus em quase-discotecas (música, ruído de bombardeamentos e do matraquear das metralhadoras, actores que “reconstituem” a história…), nele se exalta a Polónia mártir e heróica, atraiçoada por todos (soviéticos, britânicos, americanos). No final, um colega polaco que me acompanhara, percebendo o desconforto meu e o de uma colega grega, explicou-nos que a historiografia polaca desde a queda do regime comunista se dividia entre “nacionalistas” e “patriotas”…
No que chamamos os usos públicos do passado, este é narrado de forma adequada às visões e às propostas políticas para o presente e o futuro, sobretudo às daqueles (o Estado, as classes dominantes) que são mais capazes de as impor. O discurso hegemónico da Polónia pós-comunista, antes ainda deste governo de extrema-direita, é o de um país martirizado pelos vizinhos russo e alemão (e austríaco, em menor grau), que teria sobrevivido graças à religiosidade e ao “espírito nacional”. Do quadro assim desenhado, desaparece toda a história da opressão polaca exercida sobre lituanos, bielorrussos, ucranianos, a agressão à Rússia revolucionária (1918-20) ou a história de séculos de tensão e discriminação da sua minoria judaica, a maior (3,2 milhões de pessoas) do mundo em 1939. Quase toda dizimada nos campos de extermínio nazis em 1941-44. À direita nacional-católica foi sempre difícil ocultar o seu anti-semitismo, quer na Polónia independente de entre guerras (medidas discriminatórias de 1936-38), quer durante e após a II Guerra Mundial (os pogroms anti-semitas e anticomunistas de 1944-46), quer sob o regime comunista, acusado de, ao mesmo tempo que atacava a Igreja Católica, favorecer os poucos judeus sobreviventes, acabando ele próprio por assumir uma guinada anti-semita nos anos de 1967-68. Depois de 1989, a atitude dos nacionais-católicos sobre o Holocausto sintetiza-se na frase da ex-primeira-ministra Beata Szydlo a propósito da lei aprovada há dias que criminaliza o uso de expressões como “campos da morte polacos” ou afirmar que “o Estado polaco ou a nação polaca foram responsáveis ou cúmplices de crimes cometidos pelo III Reich”, por exemplo denunciando massacres perpetrados por polacos contra judeus: “Nós, os polacos, fomos vítimas, assim como foram os judeus. E é um dever de todo o polaco defender o bom-nome da Polónia.” Aprovar uma lei assim seria o mesmo que, em Portugal, em nome das “vítimas da descolonização”, proibir denunciar-se os massacres da guerra colonial.
É claro que milhões de polacos (mas a grande maioria deles judeus) foram assassinados pelos nazis. E que Auschwitz e os campos de extermínio, tendo sido construídos na Polónia, foram da exclusiva responsabilidade dos nazis. Mas a Polónia não foi, na Europa ocupada (e até na neutral), excepção na lógica social e conceptual do genocídio: a sua viabilidade dependeu mais da indiferença e, sobretudo, da cumplicidade, que da ignorância do crime. O gaseamento foi perpetrado pelos nazis, mas houve cúmplices voluntários polacos para massacrar judeus em várias aldeias, como fizeram bálticos e ucranianos a uma escala muito superior, ou aliados dos nazis como os húngaros, croatas, eslovacos, romenos, ou os colaboradores franceses, holandeses, italianos, ou até mesmo (o mais complexo de tudo) dirigentes das comunidades judaicas. Ao mesmo tempo que milhares de polacos arriscaram (e muitos perderam) as suas vidas tentando salvar as de muitos judeus, muitos mais fizeram - como ocorre quase sempre em situações desta natureza - e aproveitaram-se economicamente da guetização e do extermínio; a própria resistência nacionalista polaca (as NSZ e a Armia Krajowa) chegou a assassinar judeus em fuga dos nazis.
O padrão nacional-historicista dos regimes pós-comunistas da Europa Centro-Oriental (Polónia, Hungria, Eslováquia, várias das ex-repúblicas jugoslavas) é, afinal, muito semelhante ao de todos os regimes que procuram construir consenso social a partir da vitimização da nação: representam-na como permanentemente ameaçada pelos vizinhos e/ou por inimigos internos procurando, a partir do estatuto de vítima, que dizem (por lei!) estar confirmado pela História, negar poder sequer ter havido no seu seio também perpetradores. E o paradoxo é que, se virmos bem, esse é também o caso de Israel.
Fonte: jornal “Público”, 3.02.2018
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