Sem Titulo
(Manuel Rocha, algures no facebook, 2019/05/03)
Rodrigo, meu querido (de toda a vida): não tens razão. O que está em jogo em tudo isto não é a "democracia". A democracia só interessa a democratas, que são aqueles que defendem para todos os cidadãos o mesmo acesso às ferramentas básicas de construção da individualidade e da sociedade. Mas esses não podem concordar com uma sociedade tão assimétrica que determine, à partida, quem tem e quem não tem acesso à autodeterminação.
Como sabes, a economia mundial está condicionada por um poder económico que não permite, para a quase generalidade dos países do mundo, qualquer esboço de independência. Pelo seu lado, esse mesmo poder económico, regional e multinacional, controla a quase totalidade dos órgão de informação, que emitem 24 horas por dia as tais fake news que orientam o povo para a aceitação de actos de guerra como o do Iraque e da Líbia; que orientam a opinião pública sobre os piratas da Somália, que não são mais do que camponeses a quem as potências ocidentais envenenaram as terras, cortaram as florestas, envenenaram o pescado.
Não tens razão quando dizes que o Brasil tem eleições livres, porque só há eleições livres quando a reflexão dos eleitores toma o lugar da intoxicação (e que leva sempre à desilusão dos eleitores). Não é verdade que não haja na Venezuela contestação ao governo. Podes assistir à contestação todos os dias, sob todas as formas, mas também sob a forma de imprensa escrita e audiovisual não governamental. A maioria dos órgãos de comunicação social da Venezuela são privados. Deixo-te uma lista dos que se publicam em Caracas: Últimas Noticias, El Universal, El Nacional, 2001, Correo del Orinoco, Vea, El Nuevo País, Meridiano, El Mundo. Todos eles têm página web. Vai lá e verás o seu conteúdo noticioso.
O problema é que a Venezuela foi, durante décadas, um grande produtor de petróleo e um dos países mais pobres do mundo. E, por isso, o povo não tem saudades dos oligarcas.
Quando Hugo Chavez começou a ganhar eleições (ganhou 19!) nem por isso deixou de ser apelidado "ditador" pelos EUA e seus eternos aliados. Não tens razão quando defendes a santidade das instituições em países como o Brasil, pois se aquilo a que assistimos em directo pela TV foi a insanidade da destituição de um governo legítimo com base num processo de judicialização da justiça que é, hoje, um mecanismo do poder económico de calar "legalmente" os seus opositores.
Vê o caso de Assange, preso por ter revelado documentos verdadeiros cuja divulgação pôs em causa a "segurança" de países financiadores do terrorismo, do tráfico de pessoas e todos os demais crimes que possas imaginar. Falas das prateleiras vazias dos supermercados mas falas mal: está em curso, há muito tempo, um bloqueio que não permite à Venezuela soberana a utilização de verbas (as depositadas em bancos portugueses, por exemplo), a venda de petróleo, a prestação de serviços. O mesmo se passa com Cuba. saberás, porém, que Cuba tem potencial humano, científico, técnico, artístico, que lhe permitiria dar bem-estar aos seus 10 milhões de habitantes entre os quais não se encontra um único analfabeto. Cuba é um mau exemplo para o mundo "ocidental", pois claro. Venceu em áreas civilizacionais que o vizinho Haiti nunca sequer sonhou. Cuba é o único país do mundo que vive do que tem, e isso é um exemplo que o tal imperialismo, de que falas, não pode permitir.
Porque no fundo, trata-se de boicotar para impedir, à margem de qualquer noção de liberdade, de não ingerência, de respeito pela diferença que possa haver, e que signifique uma ameaça para a exploração do homem pelo homem. Neste nosso tempo de confusões não se permite um presidente eleito (Maduro), mesmo que a sua eleição pudesse ser duvidosa (que não o é), mas reconhece-se um presidente não eleito de modo algum para o exercício do mandato presidencial. Não achas estranho? E não: a Venezuela não é um narco-estado; nem Lula chefiou um sistema de corrupção. A Venezuela chavista deu a milhares de venezuelanos a primeira consulta médica, a primeira refeição ganha com o salário, a primeira casa, a primeira aula numa escola. Em troca da perda de milhões do lucro de meia-dúzia de famílias.
O Brasil de Lula levou a cabo programas sociais que retiraram da miséria mais atroz milhões de desgraçados. Mesmo assim, vês nas ruas das cidades brasileiras os pivetes que não existem em nenhuma cidade cubana; tens no Brasil de dia, o medo de sair à rua que nunca te assalta nas ruas de Havana a qualquer hora da noite. E - helás! - vês nas ruas brasileiras o dispositivo policial que não existe nas ruas de Cuba inteira.
Companheiro: o que se vive no nosso mundo é a luta pelo socialismo e a recusa do sistema capitalista em ceder terreno. E sim, quem gera a miséria, a guerra, a injustiça são os titulares de um mundo no qual em 2017 houve um aumento "histórico" do número de multimilionários; um mundo no qual 80% da riqueza fica nas mãos de 1% da população. Não te preocupa essa realidade? É sobre isso que importa falar, sem sucumbir ao ambiente de “brain wash“ que afasta da própria encenação da democracia (cada vez mais rarefeita de eleitores) os povos do mundo rico, que vivem à custa, por exemplo, dos "168 milhões de crianças trabalham no mundo, das quais mais de metade faz trabalhos perigosos colocando em risco as suas vidas, segundo dados das Nações Unidas e de organizações não-governamentais". E falas-me tu de democracia e liberdade...
Grande abraço com saudades tuas!
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