ONU Esconde Relatório de Enviado da ONU Sobre a Venezuela
(Carlos Drummond, Desacato/O Lado Oculto, 2019/03/08)
A Organização das Nações Unidas ignora até hoje o relatório sobre a situação na Venezuela apresentado em Setembro por um especialista independente enviado pela própria ONU ao país sob bloqueio económico dos Estados Unidos desde 2013. Primeiro emissário da ONU no país latino-americano em 21 anos, Alfred de Zayas acredita que as suas conclusões num relatório sobre a Promoção da Ordem Internacional Democrática e Equitativa não foram analisadas porque vão contra a narrativa dominante de que a Venezuela precisa de uma mudança de regime. O próprio Conselho dos Direitos Humanos não fez mais que breves considerações sobre o trabalho.
“Quando afirmo que a emigração é em parte atribuível à guerra económica travada contra a Venezuela e às sanções económicas, as pessoas não gostam de ouvir isso. Só querem a narrativa simples de que o socialismo falhou e falhou com o povo venezuelano”, disse Alfred de Zayas ao jornal britânico The Independent. “As restrições, que são ilegais pois não foram endossadas pelo Conselho de Segurança da ONU, recaem mais pesadamente sobre as pessoas mais pobres da sociedade, causando a morte através da escassez de alimentos e medicamentos, levando a violações dos direitos humanos e visando provocar a mudança económica para uma ‘democracia irmã’ “, diz De Zayas, que foi Alto Comissário do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas entre 1981 e 2003 e é especialista em legislação internacional.
Para De Zayas, há grandes dificuldades na Venezuela, mas não existe uma crise humanitária. “Há escassez, há falta de abastecimento, há recessão. Mas quem viveu e trabalhou para as Nações Unidas durante décadas e conhece a situação em países da Ásia, de África e da América Latina sabe que esta situação na Venezuela não chega a ser uma crise humanitária. No entanto, repetem tanto essa versão que muitos pensam que efectivamente o país está à beira de um desastre”, afirmou.
Contra a Carta das Nações Unidas
Embora os embargos de venda de armas possam ser justificáveis contra alguns países, especialmente para facilitar o diálogo e a promoção da paz, escreveu o especialista no seu relatório, as sanções económicas que prejudicam as populações inocentes são contrárias ao espírito e à letra da Carta das Nações Unidas. Ao longo de décadas, organismos das Nações Unidas condenaram medidas coercivas unilaterais, principalmente no estudo de referência de 2000 da Subcomissão para a Promoção e Protecção dos Direitos Humanos, que documentou o impacto adverso dessas medidas nos direitos humanos. As sanções multilaterais, mesmo as que são impostas pelo Conselho de Segurança, também podem causar sofrimento e morte. “Na década de 1990, dois Secretários-Gerais Adjuntos das Nações Unidas, Denis Halliday e Hans-Christof von Sponeck, deixaram as suas funções de Coordenador Humanitário no Iraque para protestar contra as sanções internacionais, que causaram mais de um milhão de mortes entre iraquianos, particularmente crianças, e que qualificaram como uma forma de genocídio”, destacou De Zayas.
Em 23 de março de 2018, o Conselho dos Direitos Humanos condenou medidas coercivas unilaterais por 28 votos a favor, 15 contra e 3 abstenções porque as sanções económicas podem causar morte, agravar crises económicas, interromper a produção e distribuição de alimentos e medicamentos. Constituem um factor de pressão que gera a emigração e conduz a violações dos direitos humanos. O especialista menciona um exemplo: “A recusa da Colômbia em entregar medicamentos contra a malária, que foram solicitados para combater um surto em novembro de 2017 na Venezuela, bem como a ausência de condenação da comunidade internacional, implica responsabilidade conjunta pelo agravamento da crise. Neste caso, o medicamento anti-malária teve de ser importado da Índia.”
“Como os cercos medievais”
Os efeitos das sanções impostas pelos presidentes Obama e Trump, prossegue o relatório de Alfred de Zayas, e as medidas unilaterais do Canadá e da União Europeia agravaram directa e indirectamente a escassez de medicamentos como a insulina e os anti-retrovirais. Na medida em que as sanções económicas causaram atrasos na distribuição e, portanto, contribuíram para muitas mortes, infringem as obrigações para com os direitos humanos dos países que as impõem.
“As sanções económicas e os bloqueios modernos são comparáveis aos cercos medievais de cidades com a intenção de forçar rendições”, sublinha De Zayas. As sanções do século XXI, diz, tentam obrigar não apenas uma cidade, mas países soberanos a ficar de joelhos. “Uma diferença, talvez, é que as sanções do século XXI são acompanhadas pela manipulação da opinião pública através de ‘notícias falsas’, relações públicas agressivas e uma retórica de direitos pseudo-humanos para dar a impressão de que um ‘fim’ associado aos direitos humanos justifica a utilização de meios criminosos.”
Segundo relatos, acrescenta o especialista, os Estados Unidos estão actualmente a treinar advogados estrangeiros em como redigir legislação para impor novas sanções à Venezuela, num um esforço para asfixiar instituições do Estado venezuelano. Segundo o Banco Central da Venezuela, informou a De Zayas, as sanções, além de dificultarem o acesso a financiamentos externos e pagamentos internacionais, afectaram o desempenho normal do aparelho produtivo nacional, resultando na redução da oferta de bens e serviços locais.
Sabotagem da finança internacional
No ano e meio anterior à visita do especialista enviado pela ONU, o Banco Central vinha enfrentando dificuldades com bancos de alto nível, como mostra este trecho do seu relatório: “De um total de 33 contas de correspondentes, 14 operavam sob um sistema de compliance discricionária, com muitas limitações que resultaram em certas restrições operacionais, principalmente focadas no pagamento da dívida pública. Os problemas pioraram com relação à operação de bancos correspondentes, principalmente o Citibank, o Commerzbank e o Deutsche Bank, que naquele momento lidavam apenas com o pagamento da dívida pública. A situação criava obstáculos à realização de pagamentos do sector público (ou seja, alimentos e medicamentos). Comprovadamente, medidas coercivas unilaterais e bloqueios financeiros agravaram a crise económica e causaram desemprego e emigração para a Colômbia, Brasil e Equador, entre outros países.”
As políticas de asfixia económica da Venezuela são comparáveis às já praticadas no Chile, na República Democrática Popular da Coreia, na Nicarágua e na República Árabe da Síria, analisa De Zayas. A “crise” no país latino-americano é económica e não pode ser comparada com as crises humanitárias em Gaza, no Iémen, na Líbia, na República Árabe Síria, no Iraque, no Haiti, no Mali, na República Centro-Africana, no Sul do Sudão, na Somália ou Mianmar, entre outros. “É significativo que, em 2017, quando a Venezuela solicitou ajuda médica do Fundo Global de Combate à SIDA, Tuberculose e Malária, o pedido tenha sido rejeitado com a alegação de que ‘ainda é um país de alto rendimento… e como tal não é elegível’”. Durante a sua missão, o especialista independente discutiu a questão da escassez de alimentos e medicamentos com técnicos da FAO, organização que, em relatório de Dezembro de 2017, revela a existência de crises alimentares em 37 países e a Venezuela não está entre eles.
Curta memória histórica
De Zayas sublinha no seu relatório: “É pertinente recordar a situação existente nos anos anteriores à eleição de Hugo Chávez, quando o Fundo Monetário Internacional (FMI) impôs à Venezuela o ‘Consenso de Washington’ de programas de reestruturação, austeridade e privatização que levaram a manifestações públicas em massa e a uma repressão militar, o Caracazo de 1989, que deixou cerca de três mil mortos. A corrupção era omnipresente e, em 1993, o presidente Carlos Pérez foi afastado por peculato. A eleição de Chávez, em 1998, reflectiu o desespero com a corrupção e as políticas neoliberais dos anos 1980 e 1990 e a rejeição do abismo entre os super-ricos e os pobres, considerados abjectos.”
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