2019/03/07

São eles contra o mundo ou o mundo contra eles?

Actualmente, na ONU, estão representados 193 estados soberanos, 193 países, 193 governos. Há poucos dias, num artigo d'O Lado Oculto, ficámos a saber que os EUA têm 800 bases militares espalhadas por cerca de 80 países. Agora, noutro artigo da mesma newsletter, Stephanie Savell, da Universidade de Brown, compilou 80 países onde os EUA estão actualmente a "intervir" a coberto daquilo a que eles próprios chamam "guerra global ao terrorismo". As "intervenções" são dos mais variados tipos, desde invasões como a do Afeganistão, da Síria ou do Iraque, passando por destacamentos militares ou missões conjuntas, como na Líbia ou no Iémen, bombardeamentos ou ataques com drones, como no Paquistão, na Tunísia, na Somália, no Mali ou no Quénia, até ao mais genérico guarda chuva das missões de "treino e assistência" a decorrerem em 65 países e onde os "treinadores" e "assistentes" são bastas vezes condecorados com medalhas por "Extrema Bravura em Combate", normalmente atribuídas a quem arrisca a vida em combates fora das casernas e dos campos de treino.

Pergunto-me. A fazerem a guerra, fora de portas, em 80 países, são eles contra o mundo ou é o mundo que não gosta deles?

Guerra dos EUA "Contra o Terrorismo" Trava-se em 80 Países
(Stephanie Savell, TomDispatch/O Lado Oculto, 2019/03/03)

Em Setembro de 2001, a administração de George W. Bush lançou a “Guerra global contra o terrorismo”. Embora o termo “global” há muito tenha desaparecido da designação, eles não estavam a brincar.



Quando comecei a traçar o mapa todos os lugares do mundo onde os Estados Unidos continuam a sua “guerra contra o terrorismo”, tantos anos depois de iniciada, não pensei que fosse assim tão difícil. Foi antes do incidente em 2017 no Níger, no qual quatro soldados norte-americanos foram mortos numa operação de contra-terrorismo e os cidadãos dos Estados Unidos puderam constatar como esta “guerra” chega tão longe. Imaginei um mapa que iria destacar o Afeganistão, Iraque, Paquistão e Síria – os lugares que muitos norte-americanos automaticamente pensam estar associados com a guerra contra o terrorismo – bem como talvez alguns países menos notáveis, como Filipinas e Somália. Não fazia ideia de que estava a embarcar numa odisseia de investigação que, na segunda actualização anual, iria encontrar missões de contra-terrorismo dos Estados Unidos em 80 países em 2017 e 2018, ou 40% das nações do planeta (um mapa primeiramente publicado na revista Smithsonian).

Como codiretora do Projeto Custos da Guerra no Instituto Watson para Questões Internacionais e Públicas na Universidade de Brown, estou bem ciente dos custos que acompanham tal alastramento da presença no exterior. A nossa investigação demonstra que, desde 2001, a guerra contra o terrorismo dos Estados Unidos resultou na perda — calculada conservadoramente — de mais de um milhão de vidas somente no Iraque, Afeganistão e Paquistão. Para o fim de 2019 calculamos que a guerra global de Washington irá custar aos contribuintes dos Estados Unidos nada menos que 5,9 biliões de dólares (5,9 triliões na versão anglo-saxónica) já gastos, além dos compromissos decorrentes dos cuidados com os veteranos de guerra ao longo das suas vidas.

Os cidadãos na ignorância

Em geral, o público norte-americano ignora largamente estas guerras pós-11 de Setembro e os seus custos. Mas a vastidão das atividades de contra- terrorismo de Washington sugere que, agora mais do que nunca, é tempo de lhes prestar atenção. Recentemente, o governo Trump falou na retirada da Síria e em negociações de paz com os Talibã no Afeganistão. Entretanto, sem o conhecimento de muitos norte-americanos, a guerra contra o terrorismo chega muito além destas terras e sob Trump está, na verdade, a estender-se a mais lugares. O facto de as operações de contra-terrorismo serem tão extensas e os seus custos tão incrivelmente altos deveria induzir os norte-americanos a pedir respostas para algumas questões óbvias e urgentes. Esta guerra global está realmente a deixá-los mais seguros? Está a reduzir a violência contra os cidadãos nos Estados Unidos e outros lugares? Se, como eu acredito, a resposta a ambas perguntas é não, então não existe um meio mais efectivo de alcançar tais objetivos?

A minha equipa de investigação apurou que o principal obstáculo ao criar a nossa base de dados foi que o governo norte-americano é frequentemente muito reservado acerca de sua guerra contra o terrorismo. A Constituição dá ao Congresso o direito e a responsabilidade de declarar guerra, oferecendo aos cidadãos, pelo menos em teoria, alguns meios de participação. E ainda assim, em nome da segurança operacional, os militares classificam como secretas a maior parte das informações sobre suas actividades contra terrorismo no estrangeiro.

Isso é particularmente verdade em missões nas quais há soldados americanos no terreno, envolvidos em acções directas contra militantes — uma realidade, segundo as nossas descobertas, em 14 diferentes países nos últimos dois anos. A lista inclui Afeganistão e Síria, é claro, mas também alguns lugares menos conhecidos ou inesperados como Líbia, Tunísia, Somália, Mali e Quénia. Oficialmente, muitas destas missões estão qualificadas como “treino, consultoria e assistência”, nas quais as forças armadas dos Estados Unidos actuam ostensivamente para apoiar militares locais lutando contra grupos que Washington classifica como organizações terroristas. Em termos não-oficiais, a fronteira entre “assistência” e combate é, na melhor das hipóteses, turva.
Alguns experientes jornalistas de investigação documentaram como esta guerra nas sombras está a desenvolver-se, predominantemente em África. No Níger, em Outubro de 2017, como jornalistas posteriormente revelaram, o que era oficialmente uma missão de treino provou ser uma operação para “capturar ou matar” um determinado suspeito de terrorismo.

Tais missões ocorrem com regularidade. No Quénia, por exemplo, membros dos serviços norte-americanos estão activamente a caçar militantes do al-Shabaab, um grupo designado por Washington como terrorista. Na Tunísia, houve pelo menos uma batalha total entre forças conjuntas dos Estados Unidos e Tunísia e terroristas da al-Qaida. De facto, dois membros das Forças Armadas dos Estados Unidos foram posteriormente premiados com medalhas de valor pelas suas acções nessa operação, uma pista que levou jornalistas a descobrir que houve uma batalha.

Ainda em outros países africanos, forças de Operações Especiais dos Estados Unidos planearam e controlaram missões, operando em “cooperação” – mas na verdade responsáveis — com parceiros do continente. Ao criar a nossa base de dados agimos por defeito, documentando apenas combates em países onde tínhamos pelo menos duas fontes de credibilidade de provas e cruzando-as com especialistas e jornalistas que poderiam fornecer-nos informações adicionais. Por outras palavras, tropas norte-americanas envolveram-se, sem quaisquer dúvidas, em combates ainda em mais lugares do que documentámos.

Chamam-lhe “treino” e “assistência”…

Outra descoberta surpreendente da nossa investigação foi a do número de países – 65 no total – onde os EUA “treinam” e/ou “dão assistência” a forças locais de segurança em contra-terrorismo. Enquanto os militares conduzem muito deste treino, o Departamento de Estado também está surpreendentemente envolvido, financiando e treinando polícias, militares e agentes de patrulhas fronteiriças em muitos países. O mesmo Departamento também oferece equipamentos, incluindo máquinas de detecção de raios X de veículos e kits de inspecção de contrabando. Adicionalmente, desenvolve um programa que rotula como “Combatendo o Extremismo Violento”, que representa uma abordagem de soft-power focada em educação pública e outras ferramentas para “refúgios contra terrorismo e recrutamento”.

Tais operações de treino e assistência ocorrem entre o Médio Oriente e África, bem como em alguns lugares na Ásia e na América Latina. Entidades norte-americanas “para aplicação da lei” treinaram forças de segurança no Brasil para monitorizar ameaças terroristas antes das Olimpíadas de 2016, por exemplo (e continuaram a parceria em 2017). Similarmente, agentes norte-americanos de patrulhas fronteiriças trabalharam com parceiros na Argentina para investigar suspeitas de lavagem de dinheiro por grupos terroristas em mercados ilícitos da região da tripla fronteira entre a Argentina, Brasil e Paraguai.

Para muitos norte-americanos, tudo isto pode parecer relativamente inofensivo – algo mais do tipo generosidade, de ajuda aos vizinhos com policiamento ou um sensível conjunto de políticas de interesse próprio de lutar-contra-eles-lá-antes-que-eles-cá-cheguem. Mas não deveríamos conhecer mais do que isso, depois de todos estes anos ouvindo tais alegações, sobre locais como o Iraque e o Afeganistão, onde os resultados foram qualquer coisa excepto inofensivos ou efectivos?

Da tortura ao assassínio

Esse treino tem sido frequentemente utilizado ou usado para os mais cruéis propósitos dos muitos países envolvidos. Na Nigéria, por exemplo, os militares norte-americanos continuam a trabalhar estreitamente com as forças de segurança locais, que usaram a tortura e cometeram assassínios extrajudiciais, além de se terem envolvido em exploração sexual e abusos. Nas Filipinas, conduziram exercícios militares conjuntos em cooperação com as forças militares do presidente Rodrigo Duterte, ainda que a polícia sob o seu comando continue a infligir uma horrenda violência contra os cidadãos do país.

O governo de Djibouti, que há anos alberga a maior base militar dos Estados Unidos em África, o Campo Lemmonier, também usa as suas leis antiterrorismo para instaurar processos contra dissidentes internos. O Departamento de Estado não tentou esconder como os seus próprios programas de treino alimentaram um tipo maior de repressão naquele país (e outros). De acordo com o seu Relatório do País em Terrorismo, de 2017, um documento que anualmente fornece ao Congresso uma visão geral do terrorismo e cooperação antiterrorismo com os Estados Unidos num conjunto determinado de países, em Djibouti “o governo continuou a utilizar a legislação contra-terrorismo para suprimir críticas ao deter e processar quadros da oposição e outros activistas.”

Neste país e em muitas outras nações aliadas, os programas de treino em terrorismo de Washington alimentaram ou reforçaram abusos contra os direitos humanos por forças locais, enquanto governos autoritários adoptam o “antiterrorismo” como pretexto para práticas repressivas de todos os tipos.

Amplas pegadas militares

À medida que tentávamos documentar os 65 territórios com treino-e-assistência das forças militares norte-americanas, os relatórios do Departamento de Estado provaram ser uma importante fonte de informações, mesmo que fossem frequentemente ambíguos sobre o que estava realmente a acontecer. Usam regularmente termos genéricos como “forças de segurança” e evitam abordar directamente o papel exercido pelos militares dos Estados Unidos em cada um destes países.

Às vezes, enquanto os lia e tentava compreender o que estava a acontecer em terras distantes, tive uma sensação incómoda em relação ao que os militares norte-americanos estavam a fazer. Em vez de me focar, estava constantemente a retroceder. Não obstante, conseguimos identificar, com toda a certeza, os 14 países em que agentes militares dos Estados Unidos foram vistos em combates na guerra contra o terrorismo em 2017 e 2018. Também achámos relativamente fácil documentar os sete países em que, nos últimos dois anos, os Estados Unidos lançaram drones ou outros ataques aéreos contra o que o governo rotula como alvos terroristas (mas os quais regularmente também matam civis): Afeganistão, Iraque, Líbia, Paquistão, Somália, Síria e Iémen. Estes foram os elementos mais intensos da guerra global dos Estados Unidos. Entretanto, tratava-se de uma parcela relativamente pequena dos 80 países que acabámos por incluir no nosso mapa.

Em parte, porque percebi que os militares dos Estados Unidos tendem a publicitar – ou pelo menos a não esconder – muitos dos exercícios militares que dirigem ou em que tomam parte no estrangeiro. Afinal de contas, o seu objetivo é demonstrar o poderio militar global do país, deter inimigos (neste caso, terroristas) e reforçar alianças com parceiros estrategicamente escolhidos. Tais exercícios, que documentámos como sendo explicitamente focados em contra-terrorismo em 26 países, juntamente com territórios que albergam bases militares norte-americanas ou postos militares menores, mas avançados, também envolvidos em atividades antiterrorismo, fornecem uma noção das pegadas gigantescas das forças armadas norte-americanas na guerra contra o terrorismo.
Apesar de existirem mais de 800 bases militares dos Estados Unidos ao redor do mundo, incluímos nos nossos mapas apenas os 40 países nos quais tais bases estão directamente envolvidas na guerra contra o terrorismo, integrando a Alemanha e outras nações europeias que são áreas de preparação importantes para as operações norte-americanas no Médio Oriente e em África.

Resumindo: o nosso mapa completo indica que, em 2017 e 2018, sete países foram alvos de ataques aéreos dos Estados Unidos; o dobro desse número eram locais onde os militares norte-americanos se envolviam directamente em combates; 26 países eram localizações de exercícios militares conjuntos; 40 albergavam bases envolvidas na guerra contra o terrorismo; e em 65 países, militares locais e forças de segurança receberam “treino e assistência” orientados para o contra-terrorismo.

Abordagem ampla, precisa-se

Quantas vezes, nos últimos 17 anos, o Congresso ou o público norte-americano debateram a expansão da guerra contra o terrorismo para um número tão grande de países? A resposta é: muito raramente.

Depois de tantos anos de silêncio e inactividade nos Estados Unidos, a recente atenção dos media e do Congresso às guerras norte-americanas no Afeganistão, na Síria e no Iémen representa uma nova tendência. Os membros do Congresso finalmente começaram a pedir a discussão dos aspectos da guerra contra o terrorismo. No início de Fevereiro, por exemplo, a Câmara dos Representantes votou o fim do apoio dos Estados Unidos à guerra liderada pelos sauditas no Iémen, e o Senado aprovou legislação exigindo que o Congresso vote sobre o mesmo assunto nos próximos meses.

No dia 6 de Fevereiro, a Comissão de Forças Armadas da Câmara finalmente realizou uma audiência sobre a “abordagem contra-terrorista” do Pentágono – um assunto que o Congresso, como um todo, não debateu desde que, vários dias após os ataques de 11 de Setembro, aprovou a Autorização para o Uso de Força Militar que os presidentes George W. Bush, Barack Obama e agora Donald Trump usaram para travar a guerra global em curso. O Congresso não debateu nem votou sobre a crescente expansão deste esforço em qualquer ano desde então. E, a julgar pelas reacções confusas de vários membros do Congresso à morte dos quatro soldados no Níger, em 2017, a maioria deles (e provavelmente ainda são muitos) ignoram em grande parte até que ponto a guerra global, que raramente se preocuparam em discutir, chega neste momento.

Com as potenciais mudanças em curso na política do governo Trump na Síria e no Afeganistão não será chegada a hora de avaliar finalmente, da maneira mais ampla possível, a necessidade e a eficácia de estender a guerra contra o terrorismo para tantos lugares diferentes? A experiência revela que usar a guerra para lidar com táticas terroristas é uma abordagem infrutífera. Muito pelo contrário: ao invés de alcançar as metas, da Líbia à Síria, do Níger ao Afeganistão, a presença militar dos Estados Unidos no exterior muitas vezes só alimentou o ressentimento intenso contra Washington. Ajudou tanto a espalhar movimentos terroristas como a fornecer mais recrutas para grupos extremistas islâmicos, que se multiplicaram substancialmente desde o 11 de Setembro.

Em nome da guerra contra o terrorismo em países como a Somália, actividades diplomáticas, ajuda humanitária e apoio aos direitos humanos diminuíram, em favor de uma posição norte-americana ainda mais militarizada. No entanto, sondagens mostram que, a longo prazo, é muito mais eficaz e sustentável lidar com as queixas subjacentes que alimentam a violência terrorista do que responder-lhes no campo de batalha.
Deveria ficar claro que outro tipo de grande abordagem é necessário para lidar com a ameaça do terrorismo, tanto globalmente como para os norte-americanos – uma abordagem que dependa de pegadas militares norte-americanas muito menores e que custe muito menos sangue e recursos. Também é hora de colocar essa ameaça dentro de um contexto e reconhecer que outros desenvolvimentos, como as alterações climáticas, podem representar um perigo muito maior para o país.

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