2020/02/15

Cuidado com a Huawei

CRYPTO CIA, A ESPIONAGEM COMO GUERRA GLOBAL
(Lourdes Hubermann, Berna; Exclusivo O Lado Oculto, 2020/02/14)

O escândalo explodiu na “neutral” Suíça. Uma empresa com sede no país, denominada Crypto, dedicou-se a produzir e exportar, desde os anos setenta do século passado, aparelhagens manipuladas para descodificar comunicações secretas em mais de cem países. Embora actuasse como uma outra qualquer sociedade, neste caso registada no Liechtenstein, Crypto era propriedade da norte-americana CIA e dos serviços secretos da Alemanha Federal (BND). “É o golpe de espionagem do século”, considera o Washington Post.



A imprensa suíça tem dedicado as últimas horas ao enorme escândalo que rebentou a propósito das actividades da empresa Crypto, uma fachada de uma sociedade privada que encobriu, pelo menos até 2018, a devassa das comunicações secretas nacionais e internacionais em dezenas de países.

Com sede em Steinhausen, no cantão de Zug, a empresa dedicava-se a produzir e exportar aparelhagens para decifrar comunicações secretas em mais de cem países do mundo. Segundo uma investigação de 280 páginas citada em primeiro lugar pela televisão estatal suíça (SRF), os serviços de espionagem dos Estados Unidos e da Alemanha Federal compraram em conjunto a Crypto, em 1971, sob a fachada de uma fundação registada no Liechtenstein designada Crypto AG.

A partir de então e praticamente até 2018, ano em que foi vendida, os serviços de espionagem dos dois países puderam escutar, ler, decifrar, interpretar e incorporar nas suas acções político-militares centenas de milhares de mensagens trocadas entre governos, embaixadas e comandos militares de todo o mundo. Segundo as investigações, a Crypto vendia dois tipos de produtos: um completamente seguro; e outro manipulado, com segurança limitada e de fácil descodificação, precisamente o que foi mais promovido e comercializado.

Guerra fria e fascismo

A Crypto comercializou milhares de máquinas encriptadas a uma centena de países, entre os quais os principais latino-americanos, a Espanha, a Grécia, Egipto, Arábia Saudita, Irão, Iraque, Índia, Paquistão, Vaticano…

O diário Der Bund, um dos jornais de maior circulação na Suíça, deu grande relevo ao escândalo, que está a ter enormes repercussões no país. Não é viável que uma actividade deste tipo, executada pelas citadas instituições, fosse ignorada pelo governo suíço. Tal facto viola frontalmente a tão propagandeada “neutralidade” do país.

Uma das fotografias que acompanha a publicação do relatório pelo Der Bund é a do afundamento do cruzador militar argentino General Belgrano durante a Guerra das Malvinas, arquipélago ocupado pelo Reino Unido. O artigo e a ilustração sugerem que informações sensíveis como a que levou à destruição do vaso de guerra argentino pela marinha britânica poderiam ter sido decifradas pela empresa de fachada suíça.

A mesma publicação, que na sua versão online divulga fotografias do golpe de Estado fascista na Argentina em 1976, dá conta de alguns dos momentos mais dramáticos da história recente em que as violações de comunicações realizadas pela Crypto podem ter tido um peso determinante. Ou então aborda situações relevantes que, à luz do escândalo em curso, podem ser esclarecidas com informações adicionais até agora secretas. É o caso do golpe fascista no Chile em 1973, da guerra entre o Irão e o Iraque (1980-1988), da guerra das Malvinas (1982), da invasão norte-americana do Panamá em 1989, da crise do Koweit seguida da primeira invasão norte-americana do Iraque, em 1990, e da crise dos reféns no Irão.

Os atentados de 11 de Setembro de 2001 e as várias frentes da chamada “guerra global contra o terrorismo” poderiam ser escrutinados segundo outros ângulos com dados até agora desconhecidos contidos no espólio resultante da actividade da Crypto; isso se houvesse a intenção de levar as investigações até às últimas consequências.

Outros meios de comunicação dão relevo ao facto de operações como o Plano Condor – o projecto através do qual os Estados Unidos montaram e geriram as ditaduras fascistas sul-americanas dos anos setenta e oitenta – terem sido postas em prática graças a informações processadas com os instrumentos de decifração e escuta da Crypto.

Por detrás destas revelações está, segundo informações divulgadas por órgãos suíços, uma investigação a alto nível conduzida conjuntamente pelo Washington Post, pela TV alemã ZDF e pela SRF helvética. O jornal norte-americano qualificou esta operação como “o golpe de espionagem do século” e “um dos segredos mais bem guardados da guerra fria”.

Um abalo na “neutralidade”

No mesmo dia em que rebentou o escândalo, as autoridades suíças confirmaram a abertura de uma investigação de alto nível sobre a actuação, durante décadas, de uma empresa “de bandeira suíça”. Dirige as investigações um antigo juiz federal.

A pergunta-chave que percorre a Suíça está relacionada com a eventual cumplicidade dos governos helvéticos na forma como a empresa foi montada e actuou durante décadas a fio. Alguns comentadores afirmam que é inimaginável a possibilidade de uma operação com esta envergadura ser realizada sem que os próprios serviços de segurança suíços estivessem informados. “Desconhecer uma tal actividade não é credível”, afirmou Erich Schmidt-Eenboom, especialista alemão em actividades de serviços de espionagem. “Fecharam os dois olhos”, acrescentou.

Por isso, dirigentes dos principais partidos políticos suíços pronunciaram-se durante as últimas horas sobre a necessidade de clarificar factos e responsabilidades. O Partido dos Verdes lançou, entretanto, a proposta de pôr em andamento uma comissão parlamentar para investigação do caso.

Organizações da sociedade civil começam a levantar as suas vozes perante a envergadura do escândalo, que põe seriamente em causa a tão proclamada “neutralidade helvética”. Algumas dessas entidades levantam a questão de saber se, por exemplo, dados sobre violações de direitos humanos apurados através das intrusões das aparelhagens da Crypto chegaram ao conhecimento dos serviços secretos ou do governo suíço e que tipo de posições assumiram estas instituições.

Os pés pelas mãos

Organismos governamentais de alguns países começam a dar mostras de embaraço com a divulgação de factos relacionados com o escândalo. A porta-voz do Ministério suíço da Defesa, Carolina Bohrem, declarou que o departamento teve conhecimento dos resultados em 5 de Novembro, razão pela qual, em 15 de Janeiro, decidiu criar a comissão dirigida pelo antigo juiz federal. A formação dessa comissão, porém, só foi tornada pública exactamente no dia em que rebentou o escândalo. Ainda segundo a porta-voz ministerial, “os acontecimentos em discussão datam de 1945 e, por isso, é difícil reconstruí-los no contexto dos tempos actuais”. Um jornalista suíço que participou nas investigações considera este argumento “sem sentido” porque o que está essencialmente em causa é o acto de comercializar, em ambiente supostamente de boa-fé, aparelhagens viciadas para decifrar comunicações secretas dos clientes – neste caso nações independentes. “Devassa ilegal e secreta da actividade de instituições públicas e privadas é crime hoje tal como era em 1945, 1970 ou nos anos oitenta”, afirma o jornalista.

Erich Schmidt-Eenboom, o especialista alemão, considera que o envolvimento de serviços secretos ocidentais nas actividades da empresa Crypto era conhecido há bastante tempo. Explicou que em 1992 um representante da empresa foi preso no Irão, passou meses na prisão e só terá sido libertado porque os serviços alemães de espionagem pagaram um milhão de dólares. Segundo Schmidt-Eenboom, o incidente levou a que o BND abandonasse o projecto no ano seguinte.

Os serviços alemães, segundo Erich Schmidt-Eenboom, aplicavam os fundos obtidos com a venda de aparelhagem viciada em financiamento de actividades de campo. Já a CIA, acrescentou, usou esse dinheiro para comprar empresas rivais da Crypto e estabelecer praticamente o monopólio desta no sector da criptografia. A CIA continuou a usar a Crypto como parte dos seus serviços pelo menos até 2018, ano em que a empresa terá sido vendida. Mais de uma dezena de países têm ainda ao seu serviço aparelhagens compradas à sociedade suíça. As duas empresas que compraram a Crypto em 2018 afirmam que a actividade não tem agora qualquer ligação com serviços de espionagem.

No entanto, várias operações norte-americanas do mesmo tipo, envolvendo a manipulação de equipamentos de comunicações, já tinham sido reveladas em 2013 por Edward Snowden, o perito norte-americano da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) que tornou públicos uma grande e comprometedora quantidade de documentos sobre actividades de espionagem e devassa de comunicações.

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