2020/02/05

Joker podemos ser todos!
(Santana Castilho, Púbico, 2020/02/05)

Que sociedade estamos a criar? A democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir.

1. Um vídeo mostrando um rosto limpo, antes da imobilização feita com brutalidade inaceitável por um polícia, um rosto deformado por hematomas, feridas com sangue pisado, olhos e lábios inchados, depois, a mulher acusando o polícia e o polícia acusando a mulher no fim, foi tema de muitas análises. Não vi nenhuma sobre o que terá ficado gravado na psique da criança de oito anos, que assistiu à brutalidade exercida sobre a mãe. Mas desejo que um dia, já adulta, esteja livre de qualquer trauma, provocado pela sociedade em que começou a viver. Como o palhaço triste de Gotham, metaforicamente afundada no lixo moral que o transformou no vilão do Joker.

2. O fenómeno da penetração da extrema-direita nas nossas forças de segurança (foi o Conselho da Europa que o disse) deve ser encarado com urgência, porque as repetidas suspeitas sobre a actuação de alguns dos seus membros degradam o Estado de direito.



O que é socialmente mais preocupante? Transportar sem passe uma criança, que legalmente está isenta de pagamento, ou ver escrito, em relatório europeu, que a corrupção impune em Portugal vale 18 mil milhões de euros por ano? Por que razão nunca vi um polícia à bastonada com trânsfugas fiscais ou banqueiros que nos roubaram no BES, Banif ou BPN? Como interpretar que o CDS-PP se tenha apressado a manifestar total confiança no vice-presidente do partido, logo que se tornaram públicas declarações suas de elogio a Salazar e à PIDE e referindo Aristides de Sousa Mendes como um “agiota de judeus"?

3. Parece que a maioria parlamentar pensante achou que era melhor fazer de conta que um deputado não tinha recomendado a deportação de uma deputada, com o argumento de que censurá-lo no hemiciclo seria dar-lhe importância e mais palco.

Não gosto de políticos que reagem a quente, primeiro, para se esconderem a frio, depois. À indignidade de um deputado, a decência dos pares responde sempre. A minha República tem de ser clara e não se esconde com medo de dar palco às graçolas racistas de um deputado.

4. Durante a recente celebração dos 75 anos da libertação dos sobreviventes de Auschwitz, o Presidente alemão referiu-se assim ao seu país: “Quem me dera poder dizer que os alemães aprenderam com a história. Mas não posso dizer isso quando o ódio se está a espalhar. E não posso dizer isso quando crianças judias são cuspidas nas escolas.”

Que a clarividência de Frank-Walter Steinmeier nos mobilize para rejeitar a normalização dos comportamentos racistas, homofóbicos e xenófobos, venham eles donde vierem. Particularmente porque aqueles a quem se referiu, os que cospem em crianças, são certamente outras crianças, que já crescem ensinadas a odiar. Simplesmente aterrador. Se nas escolas formos escusos como fomos na AR, então ficará livre o caminho para os que promovem o retrocesso civilizacional e cultural, manipulando as múltiplas frustrações sociais. Numa palavra: a democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir.

5. Que sociedade estamos a criar? As redes sociais são hoje uma montra da degradação da convivência entre humanos. A violência verbal e os discursos de ódio são o novo normal para políticos emergentes agradarem aos prosélitos. Fomos ouvindo, mais longe, Le Pen, Trump, Bolsonaro, Salvini e Orbán, agora temos aqui perto Santiago Abascal e cá dentro Ventura. É altura de pararmos para pensar. Porque existem, todos eles?

Porque existe a insegurança no emprego e o medo do desemprego. Porque, em nome da produtividade, o tempo de trabalho tornou-se brutal. Porque as pessoas sentem a vida ameaçada e o futuro dos filhos sem horizontes. Porque a injecção continuada do dinheiro público no sistema financeiro manteve a ganância do capitalismo global. Porque ao neoliberalismo de direita sucedeu o neoliberalismo de uma falsa esquerda, que apenas aligeirou a austeridade e não entendeu que as desigualdades sociais se combatem com emprego com direitos, que não com assistencialismos castradores.

Marques Mendes falou, no domingo passado, de um mundo de pernas para o ar porque um fura-greves foi punido quando, no entender dele, deveria ter sido louvado. Eu vejo-o de pernas para o ar pelo que aqui escrevi e porque não estamos a construir uma sociedade diferente a partir da Escola.

Professor do ensino superior

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Comentário de João Maria de Freitas-Branco

Partilho este excelente artigo de Santana Castilho que expressa uma opinião, entre várias outras, que converge com o que também eu tenho publicamente afirmado: a Escola não está a conseguir cumprir a missão essencial de contribuir para a construção de uma sociedade diferente, expurgada, digo eu, de racismo, de homofobia, de xenofobia, de totalitarismos, de apego ao sobrenatural, de irracionalidade à solta. A Escola curvou-se perante a voga da apologia do "crescimento económico", essa prioridade das prioridades imposta pela cada vez mais dominante ideologia neoliberal. Isso tem vindo a colocar a Escola mais ao serviço da criação do homem comercial do que da criação do homem integral, como diria o lúcido Rabindranath Tagore.

Há, no entanto, no certeiro texto de Santana Castilho uma frase que considero muito perigosa e que infelizmente até mereceu destaque jornalístico. É a seguinte: «A democracia não pode ser tolerante com aqueles que a querem destruir». Compreendo bem o sentimento do articulista, mas a frase entra em contradição com a própria noção de democracia, com os seus princípios diferenciadores. Tolerância não significa desistência; não é rendição perante os inimigos. Muito pelo contrário: a tolerância democrática implica o exercício da liberdade de contradizer de forma fundamentada, convoca a contra-argumentação racional.

A recente atitude (justamente criticada) da "maioria parlamentar pensante" trai a democracia que diz defender, porque a tolerância democrática não é isso, não é remeter-se ao silêncio perante as investidas do inimigo da democracia; é, bem ao invés, assumir posição, combater com toda a energia, sem tréguas, mas sem que esse combate mate a Liberdade. É combater o opositor sem lhe retirar a liberdade de expressão. É assim que esgrime o autêntico arauto da Liberdade, o sujeito que ama a Liberdade. E aqui reside a grande superioridade de um regime instituidor da Liberdade e da Igualdade. Seja-me permitida, a finalizar este breve comentário, uma autocitação, extraída da última página do meu último livro e que remete para o problema da Escola. Escrevi aí o seguinte: "A Educação tem que recuperar uma nobreza que foi perdendo com a submissão à doutrina do supremo valor do imediatamente útil, com as várias cedências aos poderes empresariais e estatais".

É necessário sabermos viver na Verdade e a Escola tem que ser um instrumento da aprendizagem do viver na Verdade. Convido-os agora a ler com atenção o texto de Santana Castilho hoje publicado e agora aqui por mim partilhado com muito agrado. Boa leitura!

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