As desigualdades na distribuição do rendimento e as funções constitucionais do Estado
(Miguel Tiago in O Militante, 2018/07)
Estamos perante uma utilização crescente de uma grande parte dos instrumentos formais do Estado – a força, a lei, a fiscalidade, a educação e a cultura – ao serviço da classe dominante e da acumulação e domínio monopolista, com o contributo decisivo dos partidos ao serviço desses interesses. A fiscalidade que constitucionalmente se estabelece como ferramenta para uma das incumbências prioritárias do Estado (Art.º 81.º da CRP) é afinal de contas utilizada como uma ferramenta de concentração de riqueza e de privilégio dos grandes grupos económicos em que se concentram os benefícios fiscais. A política fiscal que devia orientar-se para a distribuição da riqueza, directa e indirectamente, está objectivamente ao serviço das grandes empresas e dos que vivem de rendas, lucros e juros que continuam a ser taxados com uma exigência e uma incidência muito inferior aos rendimentos do trabalho. Ao mesmo tempo, a lei e a força são, não raras vezes, utilizadas para diminuir e conter direitos dos trabalhadores e manter a ordem da grande burguesia, quer no conflito laboral, quer no conflito social. A Educação e a Cultura estão igualmente – e o seu subfinanciamento é um mecanismo para a obtenção desse desígnio – a ser gradual e crescentemente colocadas ao serviço da reprodução da cultura da classe dominante, sendo convertidas em câmaras de ressonância da ideologia burguesa e simultaneamente em mercadorias.
Durante o mês de Abril de 2018, milhares de trabalhadores do mundo das artes e da cultura, centenas de estruturas de criação artística, convocados para a luta pela sua estrutura sindical e pelo Manifesto em Defesa da Cultura, saíram às ruas de cidades de norte a sul do país para demonstrar a insuficiência de recursos para garantir a liberdade de criação artística, nos termos da CRP. Além da reivindicação mais programática do movimento dos trabalhadores da cultura e das artes, em defesa da atribuição de 1% do OE para a Cultura, estava no topo das reivindica ções o aumento da verba disponível para os apoios às artes, atribuídos por meio de concurso através da DGArtes.
A questão estava na urgência de obtenção de um aumento de fundos, dos 18 milhões previstos para uns reclamados 25 milhões. O Governo minoritário do PS acaba por libertar apenas mais 2,2 milhões, assim permitindo que pelo menos fosse alargado o número de estruturas de criação artística apoiado, mas ficando muito aquém do necessário e do defendido pelo Partido como limiar mínimo do apoio às artes.
Enquanto os trabalhadores das artes, do espectáculo e da cultura ensejavam esta grande luta, o Governo anuncia que injectará quase 800 milhões de euros no Novo Banco, banco resultante da resolução do BES e entretanto já privatizado e entregue a um fundo de investimento que dá pelo nome Lone Star.
A assimetria é gritante. Enquanto o Governo minoritário do PS resistia ao cumprimento das suas obrigações constitucionais perante os agentes culturais e apertava os cordões à bolsa para vir a libertar apenas sob imensa pressão os miseráveis 2 milhões de euros, entregava de mão beijada um valor quatrocentas vezes superior a um banco privado, sem resistência e sem obrigação constitucional.
O exemplo da cultura é ilustrativo pela quase insignificância do valor do apoio às artes em Portugal, que anda perto dos 20 milhões de euros e porque a sua comparação com qualquer outra despesa é demasiado expressiva. Mas a discrepância entre o financiamento das funções sociais do Estado e os negócios e agiotagem é a demonstração cabal da natureza de classe dos sucessivos governos – PS, PSD, CDS – e também da gradual reconfiguração do Estado que vem decorrendo praticamente desde 1976, com o primeiro governo do PS Mário Soares, pouco tempo depois da entrada em vigor da CRP e que ganha especial intensidade no período da maioria do PS com José Sócrates e depois durante o período de ocupação pela troika estrangeira e de submissão pela troika nacional.
Essa reconfiguração traduz-se num cada vez maior alinhamento entre o poder político e o poder económico, com a subordinação do primeiro ao segundo e a instrumentalização de todo o poder, da lei, do Estado ao serviço dos grandes grupos económicos, principalmente transnacionais. Não se trata apenas de uma promiscuidade entre o governo A ou B e a empresa B ou C, mas sim de uma subordinação concreta do Estado e da Lei ao mercado dominado pelas grandes empresas e corporações em abstracto. Essa reconfiguração é palpável nas políticas decididas pelos sucessivos governos em cada momento ao longo das últimas décadas e é muito sensível na distribuição de recursos. Ao mesmo tempo que são retirados direitos aos trabalhadores em geral, são produzidas leis de encomenda para o grande patronato e para a maximização dos lucros dos grandes grupos económicos que dominam os diversos mercados em Portugal.
Essa reconfiguração do Estado ocorre de forma dialéctica com a transformação económica que a classe dominante impõe. Vejamos: se entre 1976 e 1977 a distribuição de rendimento entre trabalho e capital atingiu em Portugal valores próximos de 60% para salários e 40% para rendas, lucros e juros; em 1995 já essa distribuição se cifrava em 37% para salários e 41% para rendas, lucros e juros; e em 2016, 34% para trabalho, 43% para capital (Ver estudo) . Se a estes valores acrescentarmos a segurança social, ainda assim, a tendência de desequilíbrio da balança de distribuição de rendimentos para o lado do capital é evidente. Se tivermos em conta a segurança social, em 1980, os rendimentos de trabalho recebiam 70% do PIB, e em 2016 apenas 60%. Sendo que essa diferença reverte directamente a favor do capital. Essas alterações estruturais na distribuição do rendimento são resultado directo do domínio económico sobre a política, concretizada pelos partidos ao serviço da burguesia organizada e posicionada enquanto classe dominante.
PS, PSD e CDS optaram pelo integral alinhamento com as regras de funcionamento do capitalismo convertidas em lei, através da integração da chamada legislação europeia na legislação nacional e essa subordinação agrava os efeitos da exploração capitalista em Portugal, desvalorizando salários, privatizando e liberalizando serviços ou empresas fundamentais. A entrada na Comunidade Económica Europeia e posteriormente na União Europeia são momentos formais da aliança entre a grande burguesia nacional e transnacional, com claro benefício e com o prejuízo claro da pequena burguesia nacional e das camadas laboriosas. A desigualdade entre rendimentos directos e indirectos agrava-se consistentemente desde o abandono e traição das conquistas e objectivos de Abril, acompanhados da reconstituição monopolista apoiada pelo PS, PSD e CDS.
Enquanto os trabalhadores disputam aumentos salariais, ou resistem contra os cortes, enquanto as populações lutam pela manutenção e dignificação dos serviços públicos e os sucessivos governos lhes cortam ou congelam direitos e rendimentos, privatizam ou degradam serviços, os grandes grupos económicos obtêm benefícios e o sistema financeiro apoios obscenos. Ao mesmo tempo, um conjunto de agiotas lucra com o serviço da dívida portuguesa, assaltada pela especulação e alimentada pela política de desmantelamento do aparelho produtivo.
As despesas com saúde, educação e cultura (quadro 1) têm seguido uma tendência decrescente, que traduz uma opção política clara e que assenta na perspectiva neoliberal de degradação do serviço público com a intenção mais ou menos declarada de privatização e mercantilização, particularmente agravadas no caso da educação e da cultura pelo seu pendor formativo de massas e pela capacidade que as classes dominantes adquirem para perpetuar ou aprofundar a hegemonia. Essa tendência decrescente dos valores disponíveis para estes serviços fundamentais ocorre em sistemas já profundamente depauperados, com carências graves por força de um subfinanciamento estrutural e crónico, o que coloca os serviços de educação, saúde e cultura muitas vezes próximos da inoperância ou em ruptura real. Podemos analisar o quadro 1 para compreender como os salários da administração pública acompanham a tendência decrescente do financiamento dos serviços. Mas, nesse mesmo quadro, podemos observar a tendência contrária na coluna correspondente a «juros e outros encargos».
Enquanto nos últimos 10 anos a despesa com pessoal na administração pública decresce 5 mil milhões de euros, a despesa com juros e encargos da dívida cresce 3 mil milhões. Esse crescimento da despesa com encargos e juros da dívida encontra explicação no assalto especulativo à dívida pública desde 2009 e a sua origem não está numa política de investimento em serviços públicos ou de valorização dos trabalhadores, mas sim nos problemas do sistema financeiro e no envolvimento do Estado em negócios privados através das inúmeras Parcerias Público-Privadas, SWAP e outros que resultam em rendas devidas.
Entre 2006 e 2016 a dívida pública mais do que duplicou em valor absoluto em euros, resultado do assalto especulativo das agências de notação e da política de destruição da produção nacional determinada pela integração de Portugal na UE e o financiamento dessa dívida colocou novas exigências sobre o OE que justificam e tornam cada vez mais urgente a resolução dos problemas estruturais da economia nacional, a ruptura com a política de direita e a renegociação da dívida nos seus prazos, juros e montantes, com especial incidência sobre os credores institucionais e estrangeiros.
A crescente despesa com juros e encargos da dívida contrasta de forma muito frontal com as despesas em funções constitucionais do Estado, mas é acompanhada por uma despesa que representa igualmente um frete ao grande capital: a da despesa fiscal por via de benefícios fiscais. Em 2018, o Governo vai dar aos grandes grupos económicos 10,8 mil milhões de euros por via dos benefícios fiscais garantidos pelas opções e decisões de PS, PSD e CDS. Ora, a falta de recursos apregoada como justificação para os cortes em vários serviços ou para a não recuperação e reconstrução de direitos roubados pelo anterior governo, embate com a realidade de forma incontornável: os dez mil e oitocentos milhões que o Governo abdica de cobrar em nome do Estado às grandes empresas não terão um efeito multiplicador no investimento – como aliás se tem vindo a verificar não suceder ao longo dos anos – e são assim negados ao orçamento do Estado para o financiamento das obrigações constitucionais do Estado.
Sabemos também que nos últimos dez anos o Estado entregou aos bancos quase 20 mil milhões de euros para capitalizações, resgates e resoluções. A esse valor acrescem as despesas anuais que se vão verificando com a gestão dos activos tóxicos resultantes da falsa nacionalização do BPN, da resolução do BES e do BANIF, da capitalização do BCP, BPI e Caixa Geral de Depósitos. Ainda agora o Estado tem compromissos futuros com o Novo Banco que decorrem da aplicação da medida de resolução ao BES, sem a devida identificação dos beneficiários de créditos para que o Estado pudesse ser compensado pela resolução que pagou.
Estamos, portanto, perante um cenário de reconstituição do poder dos monopólios, da agregação e composição de novos monopólios e de reconfiguração do Estado, da sua forma e do seu papel. Aos 10 mil milhões de euros de benefícios fiscais e aos 8 mil milhões de juros da dívida acresce um valor de cerca de 1.5 mil milhões pagos em função dos contratos de Parcerias Público-Privadas na saúde e nas infra-estruturas rodoviárias e a parcela não sistematizada que o Estado paga com SWAP, resultantes de opções políticas, muitas delas relacionadas com episódios com fortes suspeitas de corrupção e outras que, sendo legais, representam igualmente a corrupção do sistema capitalista, o corrompimento da democracia e da soberania.
A ruptura necessária e urgente
A exigência de uma ruptura com a política de direita que tem vindo a prostrar o país ante os grandes grupos económicos – e ante potências capitalistas estrangeiras que são a sua sede – não está desligada da impossibilidade de realizar uma política de progresso com base na doutrina e prática neoliberal que é lei no quadro da UE; nem da impossibilidade de realizar uma política ao serviço do povo e do país sem romper com o poder dos monopólios e o domínio da grande burguesia nacional e transnacional. Dir-nos-ão que é a dinamização do mercado e das condições de investimento – nomeadamente no contexto de globalização capitalista – que cria as condições para a elevação das condições de vida da população, assim impondo uma espiral de diminuição de direitos e de assalto aos rendimentos do trabalho como forma de promover a competitividade. O resultado dessa política é, no presente e perante as actuais limitações históricas, políticas e materiais do capitalismo, exactamente o oposto: a liberalização e mercantilização de todas as dimensões da vida política, social, económica e cultural que tem vindo a implicar a estagnação ou degradação das condições de vida da generalidade da população e a cada vez maior exploração do trabalho que, pesem as alterações tecnológicas, continua e continuará a ser a única forma de produção de riqueza.
Outros poderão ainda dizer que é conciliável a aceitação das normas da UE, da União Económica e Monetária e dos mercados únicos, com um reformismo progressista e o cumprimento dos preceitos constitucionais. Ora, sendo que as normas da União Europeia não são nada mais, nada menos do que as normas de regulação do capitalismo no espaço abrangido pela UE. Ou seja, «União Europeia» é apenas o nome pomposo para «capitalismo» num espaço assimétrico e heterogéneo, com economias em graus de desenvolvimento muito díspares.
Se consideramos necessária e até urgente a ruptura política e a reconstrução das conquistas de Abril e a reconstituição da democracia política, económica, social e cultural e da soberania, então a primeira exigência que se nos coloca é o esclarecimento dos trabalhadores sobre os engodos ideológicos do reformismo, da social-democracia e das soluções enquadradas no actual sistema. A exigência que se nos coloca é a de contribuir para a elevação da consciência social e política dos trabalhadores – pela difusão teórica e pela participação prática e democrática –, ao mesmo tempo que se contribui por todas as formas para a elevação das suas condições de vida, através da participação directa dos trabalhadores na política e através da acção política institucional e de massas do Partido Comunista Português.
A legalidade constitucional está do lado dos que, como os comunistas portugueses, defendem as conquistas de Abril e a construção do socialismo. No entanto, a prática política está do lado da conservação da hegemonia e do domínio da grande burguesia. Isso significa que a capacidade dos trabalhadores para a ruptura necessária e urgente está intimamente relacionada com a capacidade de afirmar os valores Abril no futuro de Portugal e com a valorização da força política que defende essa consigna e organiza para a sua concretização. A luta dos trabalhadores, sem perder nenhuma oportunidade para ganhar posições mais vantajosas que a actual, é a da exigência de uma política que coloque os recursos do país ao serviço da concretização de uma política decidida pelos portugueses sem imposições ou limitações que advenham de estruturas alheias, estrangeiras ou supranacionais. A força, a lei, a fiscalidade, a educação e a cultura ao serviço do desenvolvimento social, acompanhando uma política de redinamização do aparelho produtivo e de aproveitamento do potencial nacional, rompendo as amarras que impuseram a terciarização e financeirazação da economia portuguesa, com custos para todo o tecido económico, incluindo para a pequena burguesia, fortemente descapitalizada e endividada, detentora de sectores da economia incapazes de competir na lei da selva do mercado único e da moeda única.
A recuperação programática dos valores de Abril implica uma política de valorização do interesse dos trabalhadores portugueses e uma política ao seu serviço. Uma política que resgate a democracia, pela via da recuperação da soberania, sem ignorar as contradições internas mas também sem ignorar as pontuais ou circunstanciais convergências de interesses e objectivos, e tomando partido pelos trabalhadores nesse antagonismo e dialéctica internos. Mais do que construir o futuro de Portugal com os valores de Abril, trata-se também de compreender que só com os valores de Abril Portugal terá futuro.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O seu comentário ficará disponível após verificação. Tentaremos ser breves.