2019/12/22

Sobre Bananas a Propósito da Ideologia Dominante

As bananas e suas cascas
(Manuel Augusto Araújo, AbrilAbril, 2019/12/17)

Anda o mundo infestado de performers que fazem parte da epifania colectiva destes tempos de danação em que quase deixa de haver lugar para a criação artística excepto como forma de ganhar dinheiro.

Um artista, Maurizio Castellan, cola numa parede uma banana com fita adesiva prateada, em três versões, duas provas de artista e uma final, depois de um ano a «trabalhar nessa ideia». Um trabalho muitíssimo árduo como se presume, em que acabou por escolher três bananas entre as centenas que andam pelos mercados. Aos compradores, entre eles um museu, a «obra» foi vendida por 120 mil dólares. O curador da galeria explica que é necessário ir substituindo a banana todas as semanas, «como uma flor».



A «obra» ganhou visibilidade com uma imagem que corre mundo sem assombrar ninguém nesta sociedade entediada com o seu próprio tédio que, quanto muito, a olha com um sorriso amarelento. Um performer completou o quadro comendo a banana explicando que «comeu a obra e o seu conceito» (…) «não sou uma pessoa normal sou um artista, um performer, não estou comendo uma banana, estou comendo arte». Tamanha empáfia é típica de gente que, por todo o mundo, planta tretas que se espalham cancerosamente, procurando ser levados a sério – no que, diga-se, pelo estado de inacção desta sociedade oca, conseguem algum êxito ou, pelo menos, não serem contestados por maiores dislates que digam. É ler as bulas que acompanham esses eventos ditos artísticos para se sair derrotado pela cerrada obscuridade de uma amálgama de conceitos superlativamente adjectivados, tão mais sofisticadamente inteligentes quanto mais mediocremente indigentes são as obras, qualquer que seja o género em que se inscrevem.

Anda o mundo, todo o mundo, infestado de performers que fazem parte do grande circo da estupidez sustentado pelo baixo clero destes tempos pós-modernos – curadores, comissários, produtores, gestores culturais, especialistas, muitos deles doutorados nessas malas-artes – que, com estas ou outras bananas, fazem parte da epifania colectiva destes tempos de danação em que quase deixa de haver lugar para a criação artística excepto como forma de ganhar dinheiro, um caminho que Warhol, sem ironias nem sentimentalismos, percorreu com inquietante êxito.

Instalação «Comediante», de Maurizio Castellan,
na exposição de arte contemporânea Art Basel,
em Miami Beach, EUA, 5-8 de Dezembro de 2019.
Antes de a banana colada à parede ter sido comida
numa «performance artística» por David Datuna
já tinha sido vendida a um coleccionador francês
por 120 mil dólares.

Aliás, foi Warhol quem começou por consagrar a banana na capa de um disco dos Velvet Underground, a que se seguiu a casca de banana no chão de Jeanne Silverthorne (EUA, 2007) e o furgão com uma tonelada de bananas de Paulo Nazareth (Art Basel, Miami, 2011).

A metafísica das bananas inscreve-se no estado de sítio em que o que sobrou para as artes, para todas as disciplinas artísticas nestes tempos pós-modernos, foi regressar ao dadaísmo, não como protesto desesperado contra um mundo insuportável, sem dignidade e sem dignidade para oferecer, mas para uso publicitário, porque o destino histórico dos formalismos termina sempre na utilização publicitária do trabalho sobre a forma. É a porta grande por onde entra o conceptualismo, moda corrente porque é fácil, porque até pessoas sem conhecimentos o conseguem fazer, em que a única exigência é ter ideias a que não se exige sequer que sejam boas ou brilhantes, que desaguam na grande falsidade das artes performativas, a face mais evidente da grande fraude em que mergulhou a arte contemporânea. Existem, como é de regra, excepções que cumprem o desígnio expresso por Burckhardt «talvez hoje existam grandes homens para coisas que não existem»1. Homens que provam a sua genialidade em obras fragmentadas, de afirmação individual, o que também é uma contradição central no quadro social globalizado, desperdiçando muito do seu talento numa arte comercial que lhes é imposta e, reconheça-se, a que dificilmente se poderiam subtrair.

É a multiplicação sem precedentes das artes performativas, sobretudo na música, nas artes visuais mas também na literatura, em que os sujeitos da acção, os artistas performativos exploram a hibridização entre géneros artísticos, abolindo hierarquias entre os materiais e as formas da pintura, escultura, música, teatro, cinema desvalorizadas pelos novos suportes, instalações, happenings, vídeos, concertos performativos, performances, etc., plantando obstinadamente um kitsch impossível de avaliação estética. O que Hermann Broch vitupera sem contemplações: «quem quer que seja que produza kitsch não pode ser avaliado por critérios estéticos, é um depravado do ponto de vista ético»2.

Instalação
«Mercado de Bananas/Mercado de Arte»,
de Paulo Nazareth, na secção
«Posições da Arte», destinada a artistas
emergentes, na feira Art Basel,
em Miami Beach, EUA, em 2011.

Também nos devemos interrogar porque é que esse plâncton de artistas performativos que alimenta essas artes sem arte, não aprende a filmar, a representar, a cantar, a compor, enfim a aprender aquelas coisas básicas que são o mínimo dos mínimos exigível para tão rarefeitas ideias, sem um grão de inovação e descoberta. Tudo requentado e ruminante na esteira de Marcel Duchamp, desossado do seu propósito de destruir a aura da arte, apropriado por um mundo sobrepovoado de artistas que como assinala Avelina Lésper «deixam de ser imprescindíveis porque qualquer obra substitui-se por outra qualquer, uma vez que cada uma delas carece de singularidade (…) a carência de rigor (nas obras) permitiu que o vazio de criação, o acaso e a falta de inteligência passassem a ser os valores desta arte falsa, entrando qualquer coisa para ser exposta nos museus». Luciano Trigo3, entre muitos outros, foca a mesma questão por outro ângulo: «Por que ninguém fala hoje em Picasso e tanta gente ainda se inspira em Duchamp? A resposta é simples: a arte de Picasso exige talento, técnica, reflexão sobre a vida e a História, enquanto Duchamp, por genial que tenha sido em seu momento, traz uma mensagem muito mais fácil de ser assimilada e copiada: qualquer um pode ser artista».

A dura realidade é que desnudar, desvendar os mecanismos económicos e institucionais em que se funda o estado actual das artes não tem comprometido nem a sua credibilidade cultural nem a sua credibilidade comercial e mundana, como Mário Perniola extensamente teorizou no magnifico ensaio A Arte e a sua Sombra4. Essas desmistificações, por mais sérias e credenciadas que sejam, são sistematicamente remetidas para nichos onde se espera fiquem sepultadas. Raramente ultrapassam os muros que defendem a rede de interesses económicos que domina o mercado das artes, actualmente um nicho do mercado de artigos de luxo, e impõe, com arrogância ou manhosamente, os seus ditames. O debate estético e cultural está praticamente reduzido a zero, submetido à ditadura dos intermediários culturais, sejam curadores, directores de museus, marchands, programadores, gestores culturais, comissários, críticos de arte, editores, produtores. Aliás, o trânsito entre eles é intenso e não sai dos carris.

«A metafísica das bananas inscreve-se no estado de sítio em que o que sobrou para as artes, para todas as disciplinas artísticas nestes tempos pós-modernos, foi regressar ao dadaísmo, não como protesto desesperado contra um mundo insuportável, sem dignidade e sem dignidade para oferecer, mas para uso publicitário, porque o destino histórico dos formalismos termina sempre na utilização publicitária do trabalho sobre a forma»

Analisar esta situação exclusivamente pelos parâmetros estéticos dá uma ideia deformada do que é e para que servem essas artes vertiginosamente inscritas num bullying cultural que é outra das imagens de marca do nosso tempo. Quando se analisam os mapas de eventos culturais inscritos num espaço territorial, seja um país ou um continente, o que se verifica é que há uma proliferação de bananas coladas nas programações culturais, sejam promovidas por entidades ou instituições públicas ou privadas, alinhadas com a esquerda ou com a direita. O bananal é igualmente assaltado por uns ou por outros numa distribuição equitativa que até poderia provocar estranheza a quem não tiver a consciência clara que as obras de cultura, os produtos culturais não surgem do nada, de uma qualquer inspiração metafísica, não são um absoluto independente da produção e da reprodução social da vida. Há que perceber claramente que as ideias dominantes são as das classes dominantes porque é dominante a sua posição na esfera económica que se apropria dos principais aparelhos e instituições, meios e instrumentos de produção, difusão e recepção culturais, pelo que todas as bananas de todas essas artes são o produto e a imagem, realizados no quadro da autonomia relativa que as artes sempre tiveram, do capitalismo neoliberal da democracia pós-democrática. Uma arte contemporânea em que a forma é substituída por uma ideia e a personalidade do artista transformada em marca garante do valor da mercadoria artística. Uma esquerda sem essa percepção rende-se. Deixa-se corroer pela onda cultural, muitas vezes atemorizada de ficar à margem das modas quando deveria resistir à normalidade da anormalidade dessa cultura inculta, promotora da iliteracia cultural dominante que Byung-Chul Han expõe com brutalidade: «hoje, a própria a percepção assume a forma de Binge Watching, (assistir a algo compulsivamente, descontroladamente) de visionamento bulímico. Oferecem-se continuamente aos consumidores o que se adapta por completo ao seu gosto— quer dizer, do que eles gostam. São alimentados de consumo como gado com qualquer coisa que acaba sempre por se tornar qualquer coisa. O Binge Watching pode ser entendido como o modo actual de percepção generalizado»5.

Há que perceber claramente que, para essa ordem capitalista, são de importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o dos bens imateriais. É tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais – rádio, televisão, jornais – e dos novos proporcionados pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas, e esse é o pântano em que evoluem e levedam as artes performativas.

Há ainda que perceber que estas actividades culturais e artísticas fazem parte do objectivo mais ambicioso do neoliberalismo de produzir um homem novo, não o que o comunismo procurou realizar, mas um outro construído pela aniquilação do sujeito moderno crítico e marxista, substituindo-o por um sujeito autista, consumidor indiferente à dimensão essencialmente política da existência, um indivíduo que se refere exclusivamente ao aspecto solipsista dos objectos que se realizam como mercadoria subjectiva da cultura de massas, uma cultura amarrada à perda de futuro como dimensão ontológica humana no que é um dos traços fundamentais da sociedade burguesa contemporânea, em que se procura que a alienação global seja voluntária. A esquerda cosmopolita, ao não perceber essa realidade e a ela não resistir, por ignorância ou oportunismo, condena-se a escorregar nas cascas de banana que os outros comeram. Está colonizada, por vezes sem disso ter consciência, pelo pensamento de direita.

1.Burckhardt, Jacob, Considerations sur L’Histoire, Allia, 2001
2.Broch, Hermann, Quelques Remarques à Propos du Kitsch, Allia, 2001
3.Luciano Trigo, A grande feira: uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea, Civilização Brasileira, 2009.
4.Perniola, Mário, A Arte e a sua Sombra, Assírio & Alvim, 2006
5.Byung-Chul, Han, A Expulsão do Outro, Relógio d’Água, 2018

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