2018/03/25

A Escola Pública do PCP

Sem Titulo
(Manuel Rocha in Encontro Nacional do PCP sobre a escola pública, 2018/03/17)

Se experimentarmos ir à procura de traços que definam a nossa natureza de humanos, encontraremos na Arte um elemento de central significado. Arte é impulso de todos nós, e até os gestores de fortunas, os banqueiros e os correctores da Bolsa sentiram, em algum dia das suas vidas das crianças que já foram, a sensação transformadora de tirar de um lápis de carvão o mundo inteiro, num tempo em que o gesto tinha a forma de uma ideia e da felicidade que pudesse gerar. A opção de classe viria depois e, para esses, o valor da Arte passou a ser directamente indexada ao lucro financeiro que as criações artísticas pudessem gerar.



Para os comunistas a Arte é uma decorrência da própria vida. Por isso é que lhe negamos a condição acessória que a sociedade capitalista atribui ao seu papel educador. Por isso é que reivindicamos para as lutas o seu significado progressista, a face revolucionária, a capacidade de traduzir o pensamento em sinais que se ligam às emoções, no lugar civilizacional onde é inadmissível a exploração do Homem pelo Homem. Tem este Partido a felicidade de sempre se ter batido a favor do papel emancipador da Arte, e de ter entre si, e junto de si, desde sempre, quem tenha feito da Arte um instrumento de luta pela liberdade individual e colectiva. Na luta pela democracia plena, antes e depois da Revolução de Abril, o PCP reclamou sempre a Arte no sítio em que reclamou o pão, sabedor de que, para os acordados, não há alimento do corpo que possa prescindir de alimentar o pensamento.

A maioria dos artistas da História da Humanidade não se sentou à mesa dos mecenas ou dos contratadores. É que mesmo que as classes exploradoras nunca tenham menosprezado as qualidades da Arte, o labor artístico nunca foi ofício da sua predilecção; quando muito – e apenas - o saber necessário para a conveniência do tocar piano e falar francês com que o poder económico se acrescentava uma nuance de erudição. E se, por todo o lado, a condição do artista era a do servo, a Arte, gozando da fama de ser o idioma dos eleitos, dos talentosos, daqueles em cujo engenho se acende uma luz especial, sempre foi, afinal, não mais do que ganha-pão. Ainda que, na forma, pudesse parecer diferente da sabedoria do camponês que semeia, da habilidade do operário que transforma, o labor do artista nunca deixou de ser força de trabalho geradora de mais-valia. E, por ser trabalho, a Arte soube às vezes ser criadora de consciência de classe com a particularidade de poder ser ferramenta estética de comunicação e difusão de ideias. Engana-se quem pensar que a Arte é pertença das elites, pois ela é na origem o lugar de encontro do povo com a interpretação da vida, de experimentação estética, de invenção de viveres tanto mais ricos quanto mais participados e interventivos. A arte popular é arte grande por ser indissociável deste caminho a que chamamos História, e disso se aperceberam os picassos que semearam máscaras populares africanas nas suas obras, bartokes que se inspiraram nas vozes dos camponeses, como por cá os lopes-graças viriam a fazer, pintores flamengos que semearam de saltimbancos as telas pelas quais sabemos o seu viver.

Foi na Rússia da Revolução de Outubro que, pela primeira vez na História da Humanidade, a educação artística para todos foi considerada uma tarefa do Estado. Por toda a Rússia revolucionária se multiplicaram as escolas de artes numa expansão de oferta que se manteve mesmo nos anos a seguir à extinção da URSS. O exemplo frutificou, e a valorização da educação artística ocorrida após a II Guerra Mundial nos países capitalistas europeus é fruto do exemplo socialista, tendo adotando os seus processos, metodologias, soluções organizativas. Mais: é preciso que se diga, a este propósito, que a própria extinção da URSS e das governações socialistas europeias não extinguiram hábitos e práticas de vivência e produção artística nos povos daqueles lados. Ali, o gosto generalizado pela Arte e o prestígio social de que gozam as profissões artísticas é ainda o resultado do tempos da governação socialista a nível da educação e da Cultura. É que, como uma vez referiu o camarada Jorge Seabra, pediatra, a queda de Ícaro não significou o fim do sonho de voar. Pelo contrário, marcou o seu mítico começo. Por isso, se hoje formos procurar nos quatro cantos do Planeta a origem de muitos fenómenos culturais e artísticos, encontraremos por lá o rasto – o DNA, como hoje pomposamente se diz – dos ensinamentos da Revolução de Outubro e da herança do socialismo real.

Em Portugal, mesmo que os cuidados governativos a nível da educação artística nunca tenham tido um propósito socialista, o certo é que os cidadãos procuram as aprendizagens das Artes. Num processo que é, também ele, herdeiro dos princípios da educação democrática – isto é, acessível a todos - o movimento associativo assumiu responsabilidades, algum Poder Local foi tomando conta, um pouco por todo o lado foram-se gerando realidades como a das Bandas Filarmónicas, durante décadas a única rede nacional de educação de instrumentistas. Paralelamente, após a Revolução de Abril, o Estado foi ampliando a rede de ensino artístico – de que fazem parte os Conservatórios - mesmo que, entre música, dança e artes visuais a rede pública conte com apenas duas dezenas de escolas. É pouco. Numa floresta tão mal semeada importa registar o do aparecimento, nos finais da década de 1980, de uma rede de ensino profissional artístico, impulsionado sobretudo a norte pelo comunista José Luís Borges Coelho, à altura quadro dirigente de uma Direção-Geral do Ministério da Educação. Ali, através da oferta generalizada de ensino artístico de qualidade, seduziu-se para a aprendizagem musical um número muito significativo de jovens do Vale do Ave, do nordeste transmontano, da Serra da Estrela que são, afinal, a geração de músicos que se apresentam todos os anos à sexta-feira no palco 25 de Abril da Festa do Avante!

Também a nível da educação artística no ensino básico regular se registaram avanços. A Direcção Geral de Educação vem implementando um programa de educação artística e estética, procurando formar os docentes do 1º ciclo e pré-escolar para o trabalho com os seus alunos no plano das Artes. O programa é meritório, mas depende demasiado das capacidades dos docentes titulares de turma para o trabalho em domínios naturalmente específicos e precisados de abordagem adequada. Mais recentemente, projectos como a Orquestra Geração fazem também o seu caminho na área da música, captando para a vivência das Artes crianças e jovens a quem, na prática, as vontades e potencialidades artísticas careciam de concretização.

Enquanto reina a dispersão e falta a sistematização, o “mercado” vai-se ocupando dos nossos jovens, substituindo a vontade de procurar, de conhecer, de experimentar pela aceitação acrítica de produtos de consumo. A Escola pode pouco nessa luta desigual com as plataformas de educação do gosto, (mal) frequentadas por “celebridades”, glamoures, winneres e looseres que reproduzem (no mundo dos sons, das formas e das palavras) a lógica do sucesso enquanto fruto do esforço individual de poucos, em contraste com o insucesso a que está votada a maioria. É o camartelo empreendedorista a educar para a aceitação dos destinos, fora da escola mas também dentro dela, procurando assumir posições em áreas consideradas acessórias, como é o caso da educação artística. Um exemplo claro desse plano de intervenção externa é a implementação das AEC, um exemplo também esclarecedor do que pode (e quer) vir a ser a municipalização da educação. Pela mão das AEC, uma fatia essencial das experiências artísticas dos alunos das nossas escolas é detida por empresas e IPSS, numa operação gigantesca de simulação educativa e encobrimento do desemprego. Já na rede do ensino artístico, as escolas privadas, que constituem cerca de 90% da rede nacional, são protagonistas de processos educativos de elitização a favor dos rankingues e de relações laborais onde abundam as situações de indignidade.

Não se tratando, aqui, de realizar uma análise exaustiva – mesmo que necessária – das diversas situações de que depende a melhoria da educação dos nossos jovens, compete-nos apontar algumas medidas essenciais à melhoria da oferta educativa, de modo a ampliar o acesso à educação e ensino artísticos enquanto factor determinante para o cumprimento das responsabilidades educativas do Estado. Assim, é urgente a criação de condições para que todas as crianças em idade escolar, sobretudo a nível do 1º ciclo, tenham acesso a uma educação artística de qualidade. Nesse sentido, não é justo nem é correto exigir aos professores do 1.º ciclo o desempenho de funções educativas para as quais, na maioria dos casos, não receberam formação adequada e reprodutora de saber. É preciso promover o recrutamento de docentes para o desempenho de tarefas de coadjuvação nas escolas do 1º ciclo em áreas como a música, a dança, o teatro e as artes visuais, naquilo que poderá constituir um plano nacional de educação artística, beneficiando da reflexão pedagógica produzida nestas áreas que vai já muito além da mobilização das vontades para subir ao palco em dia de festa. E dizemos coadjuvação porque as soluções dos comunistas são sempre as da conjugação de esforços.

É urgente, por outro lado, ampliar a rede pública de ensino artístico especializado da música, da dança, das artes visuais e demais áreas artísticas, dotando todas as capitais de distrito de escolas públicas capazes de aplicar um programa nacional de ensino artístico, fomentando a criação de pólos descentralizados que possam dinamizar contextos locais precisados de intervenção educativa. A este propósito, é hoje essencial que se promova o contacto entre contextos de educação artística e ensino artístico, de modo a diversificar as experiências educativas e ampliar o acesso ao ensino artístico.

Quando falamos de rede pública, de gestão pública, de acesso generalizado não é por teimosia, e menos ainda por preconceito. É mesmo por uma questão de princípio, formado a partir da constatação de que a democracia plena é a maior inimiga de todas as formas - evidentes ou encapotadas - de dirigismo, de elitização, de transformação do que é direito de todos em privilégio só de alguns. A educação é um dos lugares em que mais importa denunciar as lideranças fortes, a meritocracia, a competição, os valores do empreendedorismo, com que a violência de classe dos exploradores se mascara de concertação.

O alargamento e implementação de um programa de Educação, nas Artes como em qualquer outro domínio, estão sempre condicionados por opções de classe. Opções de que resultam necessariamente interpretações do mundo e atitudes de interferência no seu girar. Onde uns querem individualismo nós lutamos por que se perceba que a mais grata sensação de individualidade é que se tem no momento em que se escolhe fazer parte da multidão.

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