A Grande Ilusão da Economia Verde
(Carl Boggs, CounterPunch/Adaptação de O Lado Oculto, 2019/12/11)
Sucedem-se as cimeiras climáticas, multiplicam-se as promessas para atingir metas de curto, médio e longo prazo, transformaram-se as questões ambientais em artigos da moda política e mediática e o aquecimento global continua a sua ascensão sem retorno. No centro de toda a novíssima inquietação ecológica estão as elites políticas, governamentais e, sobretudo, empresariais que colocaram o mundo no caminho da catástrofe. Isto é, os que estragam o planeta são os mesmos que cuidam agora de consertá-lo com base em enxurradas de promessas, mas sem mudar de atitudes e comportamentos. Ou seja, a tão propagandeada “economia verde” não passa de uma grande ilusão, melhor dizendo, uma imensa fraude.
À medida que a crise ecológica se aprofunda, aproximando-se do assustador ponto de não retorno – conduzindo-nos para as imediações de uma catástrofe planetária – somos levados a acreditar que um urgente “esverdeamento” da economia mundial nos libertaria de um futuro muito sombrio. De alguma maneira somos induzidos, contra toda a lógica, a depositar uma fé colectiva na pretensa vontade dos governos e das grandes corporações transnacionais de fazerem a coisa certa. As pegadas do carbono serão drasticamente reduzidas graças a uma combinação de estratagemas de mercado e magia tecnológica. Assim, enquanto o abrandamento do efeito de estufa avança na perfeição as forças dominantes podem regressar ao que melhor sabem fazer – satisfazer a sua religião de acumulação e de crescimento sem fim.
Este cenário tão mirificamente enfeitado acaba por ser a mais triste – e paralisante – de todas as grandes ilusões. E em nenhum lugar a sua influência é mais forte do que no meio dos maiores culpados ambientais, os Estados Unidos da América.
O tão elogiado Acordo de Paris de 2015 foi apresentado como a última grande esperança; agora será melhor descrevê-lo como um bem-intencionado exercício de futilidades, mais próximo da “fraude sem acção, apenas promessas”, segundo James Hansen. Em Paris, os representantes de 200 países adoptaram a fórmula 20/20/20: redução das emissões de carbono em 20%, aumento das fontes de energias renováveis para 20% do total, elevação da eficiência energética geral em 20%. Teoricamente, uma tal combinação limitaria a elevação das temperaturas médias globais a dois graus (idealmente 1,5 graus) acima dos níveis pré-industriais.
O problema é que todas as metas são voluntárias, não dependem de mecanismos vinculativos. Nos termos do Acordo de Paris, cada nação signatária (187 actualmente) estabelece os seus próprios planos, define os objectivos e divulga a informação sobre os seus esforços para conter as emissões de carbono. De facto, nenhum membro avançou ainda para as metas consideradas consistentes com a receita 20/20/20 – e a maioria estabeleceu objectivos lamentavelmente curtos. Embora o presidente Trump tenha retirado os Estados Unidos do acordo de Paris, os seus excessos de emissões de carbono acabam por não ser mais graves – de facto são menos – que os de outros grandes emissores – China, Índia, Rússia, Alemanha, Canadá, México. [se contados todos juntos - Ver nota*]
Economia fóssil imparável
Apesar de se ter alcançado uma maior dependência da energia sustentável em muitos países, o aumento do crescimento económico geral traduziu-se em maiores emissões globais de carbono de 1,6% em 2017 e 2,7% em 2018, prevendo-se agravamentos mais acentuados em 2019. A economia fóssil avança a toda a velocidade: as extracções de petróleo e gás atingiram os máximos de todos tempos, sem que se prevejam desacelerações. Mesmo que as energias renováveis subam significativamente, como está a acontecer na China, na Índia e na Europa, observamos pegadas de carbono cada vez maiores devido aos desenvolvimentos totais do crescimento económico e no consumo de energia. Actualmente, os 10 principais países emissores representam 67% de todas as emissões de gases do efeito de estufa, com poucas mudanças à vista.
Recentemente, o Programa Ambiental das Nações Unidas (PNUMA), que dificilmente poderá considerar-se uma fonte radical, calculou que até 2030 a produção global de combustíveis fósseis cobrirá em mais do dobro os progressos registados na redução de emissões para reverter o aquecimento global. Por outras palavras, o Acordo de Paris é essencialmente nulo e de nenhum efeito. O relatório do PNUMA, extrapolando os dados dos oito principais países emissores, conclui que a humanidade está a mover-se por um caminho suicida em termos ecológicos, marcado por aumentos de temperatura de quatro graus Celsius, ou ainda mais elevados.
Mesmo que as metas 20/20/20 fossem fielmente cumpridas por todas as principais nações emissoras isso pouco mudaria. De facto, a soma de todas as promessas de Paris não impediria que as temperaturas subissem dois graus (ou ainda mais) nas próximas décadas. O consumo geral de combustíveis fósseis, ditado pelos níveis de crescimento, inutiliza facilmente esses esforços, pelo que as estratégias existentes de mitigação de carbono acabam por ser ilusórias.
Fracasso político
De facto, muitos estudiosos que seguem atentamente a evolução dos acontecimentos acreditam que já é tarde demais e que, sobrecarregados por um legado de fracasso político, caminhamos directamente para o desastre planetário. Ondas de protestos climáticos activos em todo o mundo traduzem a inquietação pública crescente, mas essas manifestações de revolta (e outras antes delas) não conseguiram gerar ainda o tipo de oposição política coesa capaz de reverter a crise. Parecemos presos num ciclo de futilidade, um tipo de imobilidade psicológica que David Wallace-Wells, na sua obra “Mundo Inabitável”, qualificou como “niilismo climático”. Os protestos em massa não se traduzem prontamente em mudanças antissistema ou mesmo em reformas de longo alcance como as que aparecem associadas aos vários e pretensos Green New Deals (Novos Acordos Verdes).
Autores como o citado Wallace-Wells afirmam que estamos presos num mundo que se move inexoravelmente em direcção a uma subida média de quatro ou cinco graus Celsius até ao final do século, se não antes. E conclui:
“…Se os próximos 30 anos de actividade industrial traçarem o mesmo arco que os últimos 30 anos, regiões inteiras tornar-se-ão inviáveis de acordo com qualquer padrão que temos actualmente. O cataclismo ecológico ocorrerá em grandes áreas da Europa, América do Norte e América do Sul. Neste cenário, a economia mundial seria reduzida à desordem permanente, fazendo com que a famosa teoria das crises de Karl Marx parecesse um pouco descabida. (…) O aquecimento de três graus Celsius desencadearia um sofrimento além de qualquer coisa que os seres humanos já tenham experimentado em milénios de tensões, conflitos e guerra total”.
A água, a agricultura e a carne
Juntamente com a “actividade industrial”, Wallace-Wells poderia ter mencionado o domínio ainda mais problemático da agricultura e da alimentação: esse será mesmo o elo mais fraco de um sistema pleno de crises.
Actualmente, até 80% de toda a água doce destina-se à agricultura, sendo metade desse volume dedicado à produção de carne. Vivemos num mundo em que são necessários nove mil litros de água para produzir um quilo de carne e 685 litros de água para um litro de leite, em comparação com apenas algumas dezenas de litros para quantidades equivalentes de cereais e vegetais. Metade de toda a terra arável é destinada a pastagens corrosivas de animais, sem expectativas de declínio, enquanto a maioria das nações atingem o estatuto de industrializadas. A pegada de carbono da agricultura baseada em carne pode representar 30% do total do uso de combustíveis fósseis. Com mais de dois mil milhões de pessoas já privadas actualmente de água e alimentos adequados, a dramática insustentabilidade do agronegócio capitalista e da indústria de fast-food está à vista de todos sem exigir grandes explicações.
O negócio do costume
No meio dos apelos da moda para “salvar o planeta” e do recente aumento do “activismo climático” muito poucos países adoptaram um programa sério de mitigação das emissões de carbono. Para as elites governamentais e empresariais os negócios continuam como sempre. Na publicação Climate Leviathan, os marxistas britânicos Geoff Mann e Jonathan Wainwright advertem:
“A possibilidade de alcançar uma rápida mitigação global de carbono para atenuar as mudanças climáticas já passou. As elites do mundo, pelo menos, parecem tê-la abandonado – se é que alguma vez a levaram a sério. (…) Em vez disso, o plano real daqui em diante é o de adaptação a um planeta em aquecimento contínuo”.
Os mesmos gigantes corporativos que dominam a economia mundial moldam igualmente as decisões que têm impacto no futuro ecológico. Actualmente, de acordo com Peter Phillips, 389 grandes empresas transnacionais gerem um sistema mundial avaliado em 255 biliões (milhões de milhões) de dólares; grande parte dessa quantia foi investida numa infinidade de combustíveis fósseis. Os Estados Unidos e a Europa são responsáveis por quase dois terços desse volume. Hoje em dia, não mais de 100 empresas são responsáveis por pelo menos 70% de todas as emissões com efeito de estufa. No topo desta pirâmide, 17 gigantes financeiros dirigem a economia capitalista mundial. Até ao momento, não há indícios de que os senhores do capitalismo fóssil estejam prontos a desviar-se do seu curso historicamente destrutivo.
Nos Estados Unidos, hoje em dia, existe muita conversa acesa entre as elites do sector Big Tech (grandes tecnologias) no sentido de reduzir as emissões de carbono, um movimento obviamente benéfico para a respectiva imagem corporativa, atendendo às correntes ecológicas da moda. Chefes de entidades como Google, Microsoft, Amazon e Facebook parecem ansiosos por lançar as suas próprias cruzadas ecológicas. Como num ritual, exaltam as tecnologias verdes como sendo marcos do caminho para mitigação das emissões de carbono. O patrão da Amazon, Jeff Bezos – considerado o homem mais rico do mundo – promete que até 2030 o seu grupo utilizará 100% de energia com origem em fontes renováveis. Outros oligarcas tecnológicos, aos comandos de um universo tecnológico dinâmico, parecem prometer uma economia sem carbono – pelo menos tendo em consideração a crescente inquietação dos trabalhadores com a situação climática.
Outra grande ilusão: a Big Tech e a Big Oil (grandes produtores de combustíveis fósseis) decidiram avançar em estreita parceria para supostamente combater efeitos prejudiciais da exploração e utilização de hidrocarbonetos. No entanto, essas ideias para “esverdear” a economia parecem não se estender às actividades de Google, Microsoft e Amazon para ajudarem outros gigantes como a Shell, Exxon Mobil, Chevron, BP a localizarem perfurações melhores, mais baratas e eficientes por exemplo em locais de fracking para produção de petróleo e gás de xisto, altamente prejudiciais do ponto de vista ambiental. A Big Tech pode suprir com precisão as maiores necessidades: instalações lucrativas em nuvem, robótica, inteligência artificial, grande volume de dados geológicos e meteorológicos. Uma tal colaboração tem sido especialmente útil para o boom massivo de petróleo de xisto no Canadá e nos Estados Unidos. Referindo-se especialmente à Exxon Mobil, Jeff Bezos, da Amazon, disse que “precisamos de ajudá-los em vez de os difamar”. Isso pode significar uma produção extra de 50 mil barris diários de petróleo de xisto por uma empresa que destrói o clima.
A realidade persistente diz-nos, contudo, que até 2040 o mundo deverá estar a consumir mais um terço de energia do que actualmente – provavelmente 85% da energia terá origem em petróleo, gás natural e carvão.
Há ainda muitos milhões de milhões de dólares de combustíveis fósseis para explorar. A lógica empresarial do lucro determina que essas inacreditáveis fontes de riqueza sejam exploradas ao máximo, sejam quais forem as metas de “ecologização” que venham a ser estabelecidas em Madrid ou quaisquer outras cimeiras climáticas como o foram em Paris.
Enquanto a crise se agrava, apesar da emergência de forças que combatem as alterações climáticas – claramente insuficientes do ponto de vista prático – não existe uma alternativa eficaz de êxito na luta contra o aquecimento global que não seja o estabelecimento de um cenário político internacional inteiramente novo e que liberte o mundo da dominação corporativa transnacional - mais as suas falsas preocupações “verdes”.
* «Os dados mais recentes estão compilados nas páginas do Global Carbon Atlas ou do World Economic Forum. Referentes ao ano de 2017, esses dados revelam que a China e os Estados Unidos da América (EUA) são responsáveis por mais de 40% das emissões de dióxido de carbono (CO2) em todo o mundo. A China lidera destacadamente a tabela com 9.839 milhões de toneladas métricas de dióxido de carbono (MtCO2), 27,2% das emissões globais em 2017, seguindo-se os EUA com 5.269 MtCO2, 14,6% das emissões globais.
Depois da China e dos EUA surgem a Índia (2.467 MtCO2, 6,8% das emissões globais), Rússia (1.693 MtCO2, 4,7% das emissões globais), Japão (1.205 MtCO2, 3,3% das emissões globais), Alemanha (799 MtCO2, 2,2% das emissões globais), Irão (672 MtCO2, 1,9% das emissões globais), Arábia Saudita (635 MtCO2, 1,8% das emissões globais), Coreia do Sul (616 MtCO2, 1,7% das emissões globais) e Canadá (573 MtCO2, 1,6% das emissões globais).»
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