2019/12/13

Os Liberalistas Precisam do Estado

“O que seria da Google sem a Internet e o GPS? Nada”
(Mariana Mazzucato, ao Púbico, 2017/12)

Mariana Mazzucato, economista especialista em política de inovação, defende que “o Estado tem de ser recompensado pelos riscos que assume”, esteve em Sintra, no Fórum do Banco Central Europeu.

Com a publicação do livro “The Entrepreneurial State” em 2013, a economista Mariana Mazzucato passou a ser uma voz incontornável nos debates em torno das questões da inovação e do crescimento. Professora na University College de Londres, esta economista, com cidadania italiana e norte-americana, tenta contrariar a ideia de um Estado que apenas tem o papel de regular um sector privado extremamente dinâmico, defendendo que muitos dos avanços tecnológicos mais importantes foram o resultado de uma acção mais ambiciosa do Estado. Ao PÚBLICO diz que não é pela sua pequena dimensão que Portugal não pode seguir uma estratégia em que o Estado é o grande dinamizador da inovação, sendo importante contudo definir à partida uma grande ideia sobre aquilo que se pretende fazer.



Nos bancos centrais, há algum espanto com o facto de, com uma política monetária tão expansionista a retoma estar a ser muito lenta. Qual é que acha que é a explicação?

MM- Se se cria dinheiro, através das actuais políticas expansionistas, sem ao mesmo tempo criar oportunidades para o investimento das empresas, então o dinheiro acaba por ficar no sector bancário. É isso que está a acontecer. Para que se consiga gerar crescimento na economia real, em vez de apenas domar o mercado obrigacionista, é preciso ter uma política industrial e de inovação.

A maior parte dos países apresenta políticas de inovação?

MM- O problema é que a forma com são definidas as estratégias de investimento e de inovação muitas vezes não têm qualquer efeito porque se assume à partida que as empresas querem sempre e que a única coisa de que precisam é de um pequeno incentivo. Não é assim. E tanto não é, que as empresas não têm investido. Há dados sobre isto a um nível macro, mas eu vejo-o a um nível micro também. Pelo contrário, o que acontece é um grande nível de financeirização, em que há muito dinheiro a ser acumulado.

Isso é algo que está acontecer agora ou é uma tendência já mais antiga?

MM- Acho que ficou muito pior desde o final dos anos 90, o momento em que a tendência de financeirização se tornou mais clara. E também porque algumas coisas que antes eram ilegais, passaram entretanto a ser legais, como a autorização dada pelo regulador dos mercados de capitais dos EUA para que se aumentasse o nível de recompra de acções próprias. Mas o problema de base é que não se tem um sector público ambicioso. Isso é algo que se tornou notório desde os anos 80 quando os governos passaram a ficar mais preocupados com as falhas do Estado do que com as falhas do mercado e a consequência é que se deixa de ter liderança em novas áreas de inovação. Essa liderança do Estado foi notória ao nível das Tecnologias da Informação. Mas agora, não vemos isso para as políticas ambientais, excepto na China.

Só há inovação com a ajuda do Estado?

MM- O que sabemos por aquilo que aprendemos com revoluções tecnológicas passadas, por exemplo no campo da nanotecnologia, biotecnologia e internet, é que a-penas quando o sector público cria directamente – não indirectamente – investimentos e define de forma ambiciosa áreas para apostar, é que diferentes sectores ficam entusiasmados acerca das possibilidades. Se aquilo que é feito é apenas reduzir os impostos sobre os ganhos de capital ou introduzir créditos fiscais, o que se faz é apenas contribuir para aumentar os lucros.

Mas a ideia geral é que estamos actualmente numa era de grande inovação, vinda de empresas como a Google, por exemplo…

MM- A questão não é a se temos ou não inovação. Mas a inovação, tal como o crescimento, tem uma taxa e uma direcção. Quando não é direccionada, quando não é parte de uma visão sobre para onde guiar a economia, o que acontece é que ficamos com muitos gadgets e com algumas empresas como a Google, Amazon ou Uber que aproveitam o facto de estarmos numa era em que impera a lógica de que “o vencedor fica com tudo”. Actualmente os governos pensam que têm de mostrar como são amigáveis em relação à Google e a outras empresas para mostrarem que são a favor do crescimento. Mas a verdade é que todas as grandes inovações recentes, à volta dos carros sem condutor ou tecnologia de armazenamento de bateria por exemplo, tudo isso veio do Estado. O que seria da Google sem a Internet e sem o GPS? Nada. O próprio motor de busca foi financiado por instituições públicas. O GPS, que é aquilo que é usado para fazerem os mapas, foi financiado pela Marinha norte-americana e pela NASA. Portanto, não é a Google que é inovadora, o que há é um ecossistema de inovação onde a Google é importante e até é uma das melhores empresas, porque reinvestem os seus lucros. Neste momento o sector público não está a liderar e, portanto, aquilo com que ficamos é com muita inovação dispersa, que não é verdadeiramente transformacional.

Tantos elogios a estas empresas são um problema?

MM- Se a narrativa não é a correcta, se for apenas que a Google é “cool” e inovadora, que o venture capital é fantástico porque corre riscos, então aquilo que acontece é um enorme reforço da capacidade do sector privado para fazer lobby por políticas mesmo más como reduzir os impostos sobre o ganhos de capital em 50% em quatro anos, que é o que a associação de venture capital está a fazer nos Estados Unidos.

O que é preciso para que o sector público seja mais ambicioso?

MM- É preciso que seja recompensado pelos riscos que assume. Quando o sector público lidera, isso significa também assumir riscos elevados. Os banqueiros centrais falam das autoridades monetárias como credores de último recurso, eu vejo o Estado como um investidor de primeiro recurso. Mas se se é um investidor numa fase inicial, haverá sempre muitos projectos falhados e, por isso, é fundamental que aquilo que corre bem compense o que corre mal. Não podemos dizer “não interessa, percam aquilo que quiserem”, cria-se dinheiro através do banco central e aumenta-se os impostos. Portanto, o melhor é criar mecanismos de obtenção de retorno, entrando no capital das empresas, definindo condições de reinvestimento ou de preços, para garantir que o sector público é mesmo recompensado pela inovação que ajuda a criar. Isto é apenas utilizar princípios básicos de investimento, como partilhar riscos e prémios. Mas se não se considera o Estado como alguém que está a assumir um risco e apenas se vê o Estado como um corrector de falhas do mercado, então a questão nem se chega a colocar.

Para um país pequeno como Portugal, com constrangimentos orçamentais, aplica-se a mesma lógica?

MM- É verdade que os constrangimentos orçamentais existem. Eu acho que não fazem sentido e penso que autoridades europeias deviam reavaliar a forma como pensam nessas coisas. Em países como a Itália e Portugal, os défices não têm sido assim tão elevados. O problema é a dívida ser alta, e isso acontece principalmente porque não há investimento. A Itália, por exemplo teve um défice inferior à Alemanha por muitos anos, mas não investiu nas coisas que fazem aumentar a produtividade e por isso, mesmo com um défice reduzido, o denominador não aumentava o suficiente. Agora, em relação à dimensão do país, penso que isso não interessa. A Dinamarca também é pequena, mas definiu uma visão em torno da sustentabilidade e crescimento verde e ao fazê-lo tornou-se no principal fornecedor de serviços ambientais de alta tecnologia para a China. A China gasta 1,7 biliões de dólares no sector ambiental e é este pequeno país, a Dinamarca, que mais está a ganhar com isso. O tamanho não interessa, o que interessa, é claro, é a estrutura do sector público. Geralmente a reforma do Estado apenas significa cortar, com noções muito estáticas de eficiência. É preciso pensar em noções dinâmicas de eficiência, numa rede de actores públicos descentralizada, que criam mais valias e que fazem com que o sector privado também aumente o seu papel. E é muito importante ter agências públicas que têm uma missão. É excitante trabalhar para um serviço desse tipo, não é excitante trabalhar para um sector público que apenas precisa de ser amigável para o sector privado.

O que acha dos planos de investimentos em infra-estruturas nos EUA e Europa?

MM- Investir em infra-estruturas é boa ideia. Não apenas agora, mas especialmente agora porque as taxas de juro estão tão baixas e não custam muito aos Estados. Mas como é que isso se faz é importante. Mesmo o muro que Donald Trump quer fazer na fronteira com o México pode ser chamado de investimento em infra-estrutura, mas esse não é o tipo de infra-estrutura que devemos desejar. E estradas e outros investimentos, se não forem bem pensados, podem acabar por exemplo por aumentar a pegada ambiental do país. O problema é que se não se tem uma visão para o país, para além do “América primeiro” então é muito provável que a infra-estrutura venha a ser parte do problema, não parte da solução. E penso que também a esquerda falhou nisto. Houve tanta conversa sobre como a austeridade é má, que quando apareceu alguém a dizer “vamos investir em infra-estruturas”, disseram logo que sim. Mas isto não é apenas acerca do dinheiro, tem de ser também acerca daquilo em que se está a gastar o dinheiro e de que forma é que as organizações do Estado estão a ser estruturadas. Trump, por exemplo, diz que quer mais infra-estruturas, mas ao mesmo tempo está a matar todas as agências públicas que têm sido centrais para a competitividade dos EUA. Quando falo com Corbyn ou Elisabeth Warren nos EUA o que lhes digo é que aquilo que precisam de fazer para as pessoas ficarem mais entusiasmadas com os seus programas é não falar apenas de redistribuição, por muito importante que seja. Têm de virar o discurso para a ideia do Estado como um criador de riqueza. Ao fingir que é o sector privado que cria e que o Estado apenas redistribui, cria-se uma narrativa aborrecida para os cidadãos e incentiva-se uma visão egoísta dos problemas.

É apenas um problema do discurso?

MM- O discurso conta, a linguagem é importante. Se se fala sobre uma coisa de determinada forma, afecta a confiança. Por exemplo, nos EUA há uma lei que diz que o Estado tem o direito a limitar os preços dos medicamentos que tiveram financiamento público, mas esse direito nunca foi exercido porque, perante aquilo que é a narrativa dominante, o Estado não sente a confiança necessária para mostrar o seu peso e mantém-se apenas como um jogador de retaguarda.

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