(Alan MaCleod, O Diário.info, 2019/12/11)
O presidente boliviano Evo Morales foi deposto por um golpe de Estado apoiado pelos EUA no início deste mês, depois de generais do exército boliviano apareceram na televisão exigindo a sua renúncia. Enquanto Morales fugia para o México, o exército nomeou a senadora de direita Jeanine Añez como sua sucessora. Añez, uma conservadora cristã que tem descrito a maioria indígena da Bolívia como "satânica", chegou ao palácio presidencial segurando uma enorme Bíblia, declarando que a Cristandade estava de regresso ao governo. Anunciou de imediato que iria "tomar todas as medidas necessárias" para "pacificar" a resistência indígena à sua tomada do poder.
Isso incluiu pré-exonerar os notórios serviços de segurança do país de todos os crimes futuros no seu "restabelecimento da ordem", levando a massacres de dezenas de pessoas na maioria indígenas.
O New York Times, o jornal mais influente dos Estados Unidos, aplaudiu imediatamente os eventos, com o seu conselho editorial recusando-se a usar a palavra "golpe" para descrever o derrube, alegando em vez disso que Morales tinha"renunciado", deixando um "vácuo de poder" que Añez fora forçada a preencher. O Times apresentou o presidente deposto como um “arrogante” e “cada vez mais autocrático” tirano populista “abusando descaradamente” do poder, “preenchendo” o Supremo Tribunal com partidários seus, “esmagando qualquer instituição” no seu caminho e presidindo um “altamente duvidoso” processo eleitoral.
Isto, para os bolivianos de espírito democrático, foi "a gota d'água" e forçá-lo a sair "tornou-se a única opção restante", exaltou o Times. Expressou alívio por agora o país estar nas mãos de "líderes mais responsáveis" e declarou enfaticamente que toda a situação era culpa dele; "Não resta dúvida de quem foi o responsável pelo caos: Evo Morales, presidente que recentemente renunciou", afirmou o conselho editorial no primeiro parágrafo de um artigo.
O Times, de acordo com o professor Ian Hudson, da Universidade de Manitoba, co-autor de "Gatekeeper: 60 Years of Economics According to the New York Times", continua a ser o mais influente veículo de notícias dos EUA na formação da opinião pública. “Apesar da mudança no cenário dos media e dos problemas financeiros dos modelos de jornalismo da velha escola - incluindo o New York Times -, continua a ser quem marca a agenda. As redes sociais usam ou respondem às histórias do Times frequentemente. Ainda é provavelmente o veículo de notícias mais referenciado nos EUA. Outros sites, como Yahoo, obtêm mais acessos, mas não fazem reportagem nem criam as suas próprias histórias. O New York Times ainda é tido como a principal organização de notícias de investigação e formação de opinião ”, disse ao MintPress News.
O primeiro rascunho da história
As redacções nos Estados Unidos recebem com antecipação cópias da primeira página do Times, para que saibam o que são "notícias importantes" e ajustem a sua própria cobertura de acordo com isso. Dessa maneira a sua influência vai muito para além dos seus quase 5 milhões de assinantes, e a sua produção torna-se o primeiro rascunho da história. No entanto, quando se trata de intervenção dos EUA, o Times oferece o seu "apoio consistente" às acções norte-americanas em todo o mundo, diz Hudson, alegando que o mais recente exemplo da Bolívia "seguiu muito essa tendência". De facto, raramente houve uma acção de mudança de regime que o jornal não tenha totalmente endossado, incluindo os seis exemplos seguintes.
Irão 1953
Em 1953, a CIA planeou um golpe contra a administração de Mohammad Mossadegh, instalando o xá como autocrata no seu lugar. Mossadegh, um reformador secular liberal, tinha enfurecido os governos ocidentais ao nacionalizar a indústria de petróleo do Irão, argumentando que os recursos do país deveriam ser propriedade de e usados em benefício do povo do Irão. O xá presidiu a décadas de terror e violações dos direitos humanos, sendo finalmente derrubado na revolução de 1979.
A primeira página do New York Times em 1953/08/20. Foto | @OnThisDayNYT |
Brasil 1964
Como Mossadegh, o presidente brasileiro João Goulart estava longe de ser comunista; o reformador de centro-esquerda que estava no poder desde 1961 inspirou-se em John F. Kennedy. Foi deposto em um golpe de Estado militar apoiado pelos EUA que trouxe mais de vinte anos de ditadura fascista que viu dezenas de milhares de pessoas presas e torturadas.
Dois dias após o evento, o conselho editorial do Times anunciou: "Não lamentamos a morte de um dirigente que se mostrou tão incompetente e tão irresponsável". Tal como na Bolívia, recusou-se a usar a palavra "golpe", afirmando em vez disso que Goulart, que "quase não tinha apoiantes", fora deposto em "outra revolução pacífica".
Um mês depois, um artigo intitulado "Brasil aliviado pela queda de Goulart" alegava que "não houve protestos nem mesmo preocupação" sobre os acontecimentos, mas sim um "sentimento generalizado de profundo alívio e optimismo" no país. Afirmava que todo o Brasil havia "arrumado" o regime "extremista" e "de extrema-esquerda" e apoiado a "revolta" contra ele. De maneira particularmente orwelliana, afirmava que a "nação parece ter ansiado" por uma "limpeza política" de "extremistas", aplaudindo a prisão generalizada de funcionários do governo Goulart com o argumento de que eram "comunistas".
Chile 1973
O derrube do democraticamente eleito socialista chileno Salvador Allende em 1973 e a sua substituição pelo ditador fascista Augusto Pinochet é um dos mais conhecidos e infames acontecimentos da história da CIA. As consequências da má administração económica e do reinado de terror de Pinochet continuam até os dias de hoje e fornecem o pano de fundo para o enorme movimento de protesto anti-governo que actualmente assola o país.
Assim que Allende foi eleito, o Times iniciou uma campanha para demonizar o novo líder, alegando que as "instituições livres" do Chile provavelmente não sobreviveriam à "brusca viragem à esquerda" que ele estava a propor. No dia seguinte ao golpe, quando as forças de Pinochet bombardearam o palácio presidencial e forçaram Allende a suicidar-se, o conselho editorial do Times culpou o presidente pela sua própria queda, tal como fez com Morales e Mossadegh, alegando:
Nenhum partido ou facção chilena pode escapar a alguma responsabilidade ... mas uma pesada parcela deve ser atribuída ao próprio infeliz Dr. Allende. Mesmo quando os perigos da polarização se tinham tornado inconfundivelmente evidentes, ele insistiu em promover um programa de socialismo generalizado para o qual não dispunha de mandato popular.
A primeira página do New York Times em 1973/09/12. Foto | @OnThisDayNYT |
Também determinou que o muito óbvio envolvimento do governo dos EUA, conduzindo uma campanha de guerra económica contra o Chile, a fim de "fazer a economia gemer" nas palavras dirigidas à CIA pelo presidente Nixon e Henry Kissinger, era inexistente. O conselho informou que "é essencial que Washington mantenha meticulosamente as mãos fora da crise actual ... Não devem existir quaisquer motivos para mesmo uma suspeita de intervenção externa".
Venezuela 2002 e 2019
Em Abril de 2002, o governo dos EUA encorajou e apoiou uma tentativa de golpe contra o presidente venezuelano Hugo Chávez. Seguindo um padrão consistente, o conselho editorial do Times aprovou com veemência os procedimentos, abstendo-se deliberadamente de usar a palavra golpe. Dois dias após o acontecimento, observou:
Com a renúncia de ontem do presidente Hugo Chávez, a democracia venezuelana deixou de estar ameaçada por um pretenso ditador. O Sr.Chávez, um demagogo ruinoso, deixou o cargo após a intervenção militar e entregou o poder a um respeitado líder empresarial, Pedro Carmona. ”
E, tal como em outros golpes, o Times imediatamente tratou a ideia de envolvimento dos EUA de totalmente impossível, acrescentando: "Correctamente, a sua remoção foi um assunto puramente venezuelano".
O que foi único neste acontecimento foi que o golpe foi dramaticamente derrubado por centenas de milhares de pessoas nas ruas, que convenceram unidades militares leais a Chávez para retomar o palácio presidencial. Desde então, sucessivos governos dos EUA dedicaram significativos recursos à mudança de regime na Venezuela. O Times também aplaudiu a tentativa do auto-nomeado presidente Juan Guaidó de alcançar o poder no início deste ano, apresentando-o como um homem do povo, alegando que era “aplaudido por milhares de apoiantes nas ruas e um número crescente de governos, incluindo os Estados Unidos.”
Mas quando a tentativa de Guaidó entrou em colapso sob o peso de sua própria impopularidade, o Times expressou a sua raiva por Maduro, um agente russo corrupto, que levou a Venezuela à "ruína completa," permanecer no poder. “Seria um grande alívio para a Venezuela livrar-se” de Maduro, ponderou o conselho editorial, “quanto mais cedo as forças armadas expulsarem os ladrões” melhor, disse, decepcionado por pela primeira vez não poder celebrar um golpe dos EUA bem sucedido.
Fabricação do consentimento
Estudando a cobertura do Times de tentativas de golpe orquestradas pelos EUA, fica claro que há uma lista de verificação de pontos de discussão que ele emprega uma e outra vez para justificar acontecimentos.
1. Culpar o governo de todos os problemas económicos e políticos; ignorar o efeito de quaisquer sanções dos EUA.
2. Apresentar constantemente o líder visado como um autocrata tirânico que esmaga a dissidência, não importando qual seja a realidade.
3. Insistir em que o líder é realmente um implante russo controlado pelo Kremlin.
4. Evitar usar a palavra "golpe". Preferir em vez dela palavras como "levantamento", "revolta" ou "transição".
5. Ridicularizar expressamente a ideia de que os EUA possam estar envolvidos no assunto.
6. Descrever os novos governantes apoiados pelos EUA como de mentalidade democrática e minimizar qualquer violência que cometam ao estabelecer o seu governo.
7. Culpar os líderes depostos pelo seu próprio derrube.
Evidentemente, o New York Times não é o único grande veículo de media culpado por apoiar reflexivamente todas as acções dos EUA em todo o mundo. O Economist e o Washington Post vieram ambos apoiar o golpe na Bolívia, tal como tinham feito antes com a Venezuela. Mas a posição do Times como "o jornal de registo" diferencia-o em termos de importância.
Essa posição torna-o uma arma crucial na guerra de propaganda travada contra o povo norte-americano, a fim de fabricar consentimento para mudanças de regime no exterior.
Alan MacLeod é redactor da equipa do MintPress, bem como académico e escritor pela Fairness and Accuracy in Reporting. O seu livro, Bad News from Venezuela: Twenty Years of Fake News and Misreporting, foi publicado em Abril.
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