2018/09/26

Outra Vez?

Braudel distinguia três camadas de perenidade na evolução da humanidade, a económica, onde as mudanças se dariam no espaço de décadas, a cultural, onde as transições durariam séculos, e a religiosa, das permanências milenares. Não concordo plenamente. Por mim, a ordem seria outra, mas reconheço a existência dos três planos, reconheço-a e revejo-a na magistratura medieval portuguesa deste século XXI, e nos nomes sonantes, com verdete, que pintam as direcções das instituições culturais do burgo nortenho, alimentadas com o estrume do cavaquistão.

Injustiça e incultura? Juntas no mesmo prato? Mais do que no prato, nos mesmos lugares, temporal e geográfico.

Por estes dias, o país civilizado ficou estarrecido com a censura de uma exposição fotográfica e a pena suspensa aplicada a dois violadores. E não, não vou fazer ressalvas quanto a gravidades relativas. Se um penaliza uma bebedeira com uma violação juridicamente justificada, o outro mantém a beleza do sexo na esfera do hipocritamente incorrecto. Os juízes da relação do Porto puniram uma jovem que bebeu demasiado numa discoteca com uma violação autorizada, e a direcção da Casa de Serralves mandou para casa, jogar kildemol e ver mortos vivos, os filhos dos pais que queiram ver uma exposição fotográfica com genitais ao natural e sadomasoquismo a preto e branco, e sem sangue!

Lembram-se do outro? Também da relação do Porto? O que justificou a agressão com passagens de um romance porque ela o traiu? Pois!

E sim, as chagas ainda estão abertas e o sangue das vitimas ainda escorre pela calçada, mas isso não impede uma análise lúcida e distanciada da ruralidade entranhada no verdete das fundações e na tacanhice das togas.

Porque me preocupa mais a procura das causas do que o luto dos mortos, procuro culpados. E ao procurar culpados, encontro nos planos sociológicos de Braudel a razão de ser desta tacanhez mental num país que já deu mundos ao mundo. Eu vejo, nas duas decisões, uma mesma origem, a ruralidade beiroca que desceu e se instalou no Porto, o isolamento resultante de meio século de um fascismo rural, religioso, curvado sobre si próprio, de botas.

48 anos de fascismo deixaram marcas, profundas, no tecido judicial e cultural português. Vai sendo tempo de os reformar.

E porque alguma coisa já foi dita sobre o assunto, deixo aqui umas refr&ncias para as análises possíveis. Desde a que se ri dos risíveis e rurais juízes, passando por uma análise fria e detalhada do escrito com que os juízes justificam uma violação, até á comparação da pena para um roubo do qual resulte a morte do roubado e que pode ir de 8 a 16 anos com a da violação da qual resulte a morte ou suicídio da vítima que pode ir de quatro anos e meio a 15. Sim na sociedade da propriedade privada a propriedade vale muito mais do que o corpo da mulher.

E ainda alguns links para as noticias sobre os casos:
Sobre a violação premiada com pena suspensa:
(Público, 2018/09/20) Violaram-na quando estava inconsciente, mas tribunal entendeu que o mal feito não é “elevado”
(Público, 2018/09/22) Acórdão que desvaloriza violação é assinado por presidente do sindicato dos juízes.
(Público, 2018/09/24) Protesto convocado: “Não aceitamos uma justiça machista!
(Público, 2018/09/25)UMAR acusa juízes de misoginia no caso de violação em Gaia.

Sobre a censura em serralves:
(Expresso, 2018/09/22) “Só se pode censurar a censura”. A fronteira entre arte e pornografia em museus como Serralves.
(Público, 2018/09/25) Curadores portugueses e estrangeiros preocupados com a situação em Serralves.
(Público, 2018/09/25) As exposições de arte não carecem de classificação etária.



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O Tribunal da relação do Porto e os Nossos Danos
(Isabel Moreira, Capazes, 2018/09/25)

Vou por aqui.

Já muito foi escrito sobre o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que condenou dois homens pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência na pena de quatro anos e seis meses de prisão. A suspensão da execução da pena pelo mesmo período tem uma fundamentação que dá mais tijolo ao grande edifício do sexismo jurisprudencial, denegrindo diretamente a vítima, evidentemente, e causando enorme dano em todas e todos nós.



Quando uma juíza e um juiz (presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses) decidem estruturar uma decisão na reprodução da legitimação de séculos de subjugação das mulheres, fica claro qual a mensagem que é passada à sociedade.

Ao ler o Acórdão entretanto defendido – como é usual – pelo corporativismo da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (não vou perder tempo com quem não perde tempo com a vítima e entra em transe linguística com a palavra “violação”) há quatro coisas que, enquanto mulher, fiquei a saber.

Em primeiro lugar, se eu estiver inconsciente e for violada dolosamente (tecnicamente, o termo é “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”) por dois homens, tem muito peso que os criminosos em causa o tenham feito pela primeira vez. Não se tratando de um crime económico, claro, é provável que os senhores juízes se demorem a explicar o elevado grau de ilicitude da conduta, para depois explicarem imediatamente que, vamos lá ver, é a primeira vez que dois comparsas se lembram de dar cabo da vida de uma mulher inconsciente. Isso deve ter peso: ser a primeira vez que dois homens despem uma mulher inconsciente numa casa de banho decidindo violá-la. Sendo a primeira vez, é coisa para não se repetir, certo?

Em segundo lugar, lê-se no acórdão o seguinte: “apesar da censurabilidade das suas condutas, os danos físicos provocados não assumem especial gravidade considerando o período de cura das lesões provocadas essencialmente com as palmadas (equimoses e hematomas)”, o que significa que o Tribunal disse-nos que, para si, os danos de uma violação que efetivamente relevam são os físicos, como equimoses e hematomas, pelo que desconsidera totalmente os efeitos psicológicos, duradouros, em tantas de nós para a vida toda, de uma violação. O que milhares de mulheres ficaram a saber ao lerem as notícias sobre este Acórdão, é que se forem violadas e fizerem queixa, são capazes de levar com uma sentença ou um acórdão que despreza o seu sofrimento e se limita a contabilizar equimoses.

Em terceiro lugar, quando se fundamenta a suspensão da pena, escreve-se que “acresce o diminuto receio de cometimento de novos e idênticos factos atento o facto de não haver notícia das posteriores deslocações da ofendida ao “F…” ou de qualquer tipo de contacto entre ela e os arguidos, com núcleos de vida familiar e profissional perfeitamente afastados”. É-nos dito, portanto, que se for dado como provada uma violação, a avaliação do risco da suspensão da pena limita-se a averiguar se a mulher violada não será violada novamente pelo violador ou violadores, imagine-se, e não se assim de repente outras mulheres não ficarão em perigo perante a liberdade de quem viola mulheres, já agora sem qualquer sinal de arrependimento.

Em quarto lugar, ficamos a saber que dançar numa discoteca tem um nome: “ambiente de sedução mútua”. Se uma de nós for violada na sequência de uma dança, arrisca-se a levar com uma sentença que situa a culpa dos agentes “na mediania”, que isto da dança e do álcool, já se sabe, deixa os homens fora de si.

É isto. Uma juíza e um juiz do Tribunal da Relação do Porto fizeram-nos mal. A todas. E a todos. Há gente que terá medo de fazer queixa relativamente a crimes sexuais por causa de um Acórdão que lembra que “os arguidos estão perfeitamente integrados, profissional, familiar e socialmente”.

Como escrevia a Professora Teresa Pizarro Beleza “estão, estarão, o problema é mesmo capaz de ser esse”. Como esse será o problema desta juíza e deste juiz. Como esse é o problema de muitos outros.

Acontece que a igualdade de género é um princípio constitucional, acontece que as decisões dos Tribunais não estão isentas de escrutínio, acontece que não nos calamos quando a soberania faz pelo lado errado da história, acontece que estamos cansadas de ver o nosso corpo e a nossa liberdade serem menos protegidos do que bens económicos, acontece que temos voz.

A manifestação é dia 28.

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As relações que a Relação promove
(Manuel Cardoso, Sapo24, 2018/09/25)

É preciso entender que as discotecas são ambientes onde se vive um clima de sedução mútua no qual, não raras vezes, o sedutor e o seduzido acabam em casa, o primeiro a visitar websites em modo privado, a segunda a descrever no Whatsapp a inabilidade do interlocutor às amigas. O que os dois funcionários da discoteca em Gaia fizeram foi apenas operar uma mudança de paradigma, nada de mais.

Como cidadãos avisados e informados que são, os meus leitores não necessitarão de contexto para ler esta crónica. Esta semana ficou marcada pela discussão em torno de um acórdão da Relação do Porto (they did it again), que confirmou suspensão da pena de dois funcionários de uma discoteca em Vila Nova de Gaia, que praticaram “cópula vaginal” com uma jovem de 26 anos que se encontrava tão consciente como uma pedra pomes.

Para mim, que não sou jurista (uma frase amplamente usada por pessoas que não são juristas quando se preparam para meter o bedelho incipientemente em assuntos jurídicos), causa-me algum espanto que um crime que aparentemente é tão injustificável e cruel não seja punido de uma forma mais contundente. O acórdão considerou a pouca probabilidade de reincidência da prática criminosa, mas não é que o statement “eu raramente violo” seja particularmente abonatório. Para a Relação do Porto, o crime de violação encontra-se com uma pena promocional: a primeira é de borla.

A utilização da referência ao “ambiente de sedução mútua”, como que funcionando como atenuante ao crime, é descabida. Só posso concluir que os desembargadores – serão netos de Neto de Moura? – não saem à noite desde a festa da cerveja - a mítica - de 1951. Ou talvez imaginem o ambiente de uma discoteca em Vila Nova de Gaia seja em tudo semelhante aquele que vivenciaram no Sarau de Direito da Família da mesma década.

É estranho que o acórdão do Porto descreva um ambiente de discoteca como de "sedução mútua". A maior parte das situações que testemunhei em danceterias foram de claro "desinteresse unilateral". Não obstante o ambiente de engate que atenua violações, o acórdão refere ainda que a vítima estava a dançar na pista. Eu, uma vez, também dancei numa festa de anos, quando me encontrava no 5.º ano, ao som do tema “Candy Shop”, da autoria do rapper 50 Cent. Devo dizer que em momento algum tal coreografia simbolizou uma luz verde para que qualquer adulta ou adulto me pudesse levar a cabo um felácio, atividade a que a música claramente alude, incorrendo assim no crime de pedofilia.

Não quero, no entanto, entrar no discurso, próprio de populistas de quem André Ventura é um sucedâneo, de que em Portugal somos brandos com os criminosos e que os violadores merecem castração química ou tiros no joelho. A violação é um crime grave, daqueles que despoletam fervores e ânsias de justiça popular, e não é isso que se pretende num estado de direito. Em todo o caso, o que tem vindo a chocar é o total desfasamento dos juízes do nosso país em relação ao impacto dos crimes nas vítimas. É vigente, ainda e sempre, um respeitinho institucional pelos ímpetos do macho latino. A responsabilidade desse ambiente não se cinge à justiça, mas talvez a culpa dos magistrados se situe um pouco além da mediania.

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É pior roubar que violar
(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 01/10/2018)

Para um roubo ser violento basta constranger; na violação o mero constrangimento não é violência, diz a lei. Porque, lá está: à partida ninguém consente em ser roubado, mas sabe lá quem viola se a vítima não está a gostar.

Muita gente ficou espantada por descobrir que a lei não dá ao ato de violar uma pessoa inconsciente o nome de violação mas de “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”. E por um acórdão da Relação do Porto certificar que esse é um crime “sem violência”. Também a moldura penal do dito (de dois a dez anos, praticamente igual à de violação — de três a dez) causou perplexidade: há quem a repute de demasiado baixa.

Precisamente, numa ida à TV em defesa do acórdão, uma representante sindical dos juízes aventou que o problema não está em quem julga mas na lei, que deveria, talvez, ser alterada. Em quê não disse. Já a professora catedrática de Direito Penal Fernanda Palma, em declarações ao DN, foi clara: o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (165.º do CP) deve ser incluído no crime de violação (164.º) e a pena deste último deve aumentar.

Palma sublinha igualmente que a atual redação do artigo 164.º e a sua muito estrita definição de violência é inconsistente com as definições de violência que informam outros crimes.

Por exemplo, a definição do crime de violência doméstica inclui, além da violência física, a psicológica. E, no capítulo dos crimes contra a propriedade, o roubo (artigo 210.º), que se distingue do furto (204.º) pela violência na apropriação da coisa alheia, tem, frisa a jurista, uma tipologia que evidencia o facto de “a violência neste crime não ter de significar ofensas corporais”, ou seja, violência física. Será roubo, por exemplo, constranger alguém a entregar um porta-moedas ou telemóvel apenas por via do temor criado pela exigência.

No roubo não há diferenciação estipulada de penas e portanto de gravidade consoante a vítima leva uns encontrões e chapadas para ceder o que é seu ou se o entrega sem protestos, paralisada pelo temor. Ambas as condutas são, e bem, consideradas violentas.

Mas, ao contrário do que sucede no atual artigo 164.º, em que se preveem dois tipos de violação – um mais grave, “com violência, ameaça grave ou colocação em incapacidade de resistir” e pena de três a dez anos, e outro menos grave, em que o constrangimento para a submissão ao ato sexual é “por qualquer outro meio” – e aí a pena é de um a seis anos -, no roubo não há diferenciação estipulada de penas e portanto de gravidade consoante a vítima leva uns encontrões e chapadas para ceder o que é seu ou se o entrega sem protestos, paralisada pelo temor. Ambas as condutas são, e bem, consideradas violentas.

O que há no crime de roubo, cuja pena-base é de um a oito anos, é um conjunto alargado de agravantes que a aumentam para de três a 15 anos. Vão desde a natureza do bem – “ser afeto ao culto religioso” é uma – ao que se tem de fazer para lhe aceder (arrombar uma gaveta fechada à chave, por exemplo), até ao aproveitar de uma circunstância em que a vítima se encontra – a sua “especial debilidade”, “um desastre”, “acidente” ou “calamidade pública”.

Assim forçar uma gaveta ou aproveitar a especial debilidade ou fragilidade circunstancial de alguém para roubar merece, para a lei em vigor, uma pena muito mais grave do que aproveitar o facto de uma pessoa estar inconsciente para a despir e usar sexualmente – o tal “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”. Para não falar do facto de se considerar que a tutela dos bens “afetos a cultos” deve impor penas mais altas do que a do direito que cada pessoa tem de decidir quem lhe toca, com quem tem ou não tem sexo, quem pode ou não penetrá-la.

Forçar uma gaveta ou aproveitar a especial debilidade ou fragilidade circunstancial de alguém para roubar merece, para a lei em vigor, uma pena muito mais grave do que aproveitar o facto de uma pessoa estar inconsciente para a despir e usar sexualmente.

Esta evidência, que demonstra o quanto o Código Penal de 2018 está desadequado em relação ao sentir básico da “pessoa comum”, para quem uma violação (sobretudo se nela perpetrada, claro) é algo de infinitamente mais gravoso do que ser despojado de um objeto, ganha outra dimensão quando olhamos para a história da lei penal. Até 1995, esta não via sequer os crimes sexuais como crimes contra as pessoas, muito menos, como hoje são definidos, contra a liberdade sexual. Estavam incluídos na parte “Dos crimes contra os valores e interesses da vida em sociedade” e no capítulo “Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social”. Eram, portanto, crimes “contra a moralidade”.

E com uma particularidade: a vítima era identificada como feminina. A violação – artigo 201º do CP de 1982 – era definida como “ter cópula com mulher”. E no seu número 3 previa que a pena, de dois a oito anos, seria “especialmente atenuada se a vítima, através do seu comportamento ou da sua especial ligação com o agente”, tivesse “contribuído de forma sensível para o facto.” (Estão a ver de onde vem a “sedução mútua”?)

Este Código, no qual as vítimas de crimes sexuais eram sobretudo mulheres e portanto das quais por princípio se desconfiava, foi aquele que a maioria dos juízes dos tribunais superiores conheceram no seu período de formação. Quiçá alguns não terão dado conta de que mudou. Até porque, na verdade, o seu espírito persiste no atual: a pena para um roubo do qual resulte a morte do roubado ainda é muito mais elevada – de oito a 16 anos – do que a da violação da qual resulte a morte ou suicídio da vítima: de quatro anos e meio a 15.

É possível que haja para esta infâmia outro motivo que não o do desprezo secular da justiça pelas mulheres. Mas não me ocorre nenhum.

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