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(Manuel Rocha, Forum "Pensar a Educação", 2019/02/03)
“Gostos não se discutem”, diz-se por aí como quem profere a mais límpida das verdades. Acontece, porém, que aqui dentro, e porque o tema é “pensar a educação”, os gostos discutem-se e muito, por ser a partir dos gostos que os lugares são assim ou assado, que a nossa relação com os demais é esta ou aquela, que a nossa visão do mundo tem mais ou menos futuro.
Nas notícias da passada semana dava-se conta de que um grupo de jovens portugueses presentes nas Jornadas Mundiais da Juventude, no Panamá, tinha adoptado como hino da sua passagem pelas américas a canção “Toda a Noite". Mau gosto, disse eu para comigo, que sou dos que acham que os gostos se discutem. Mas o pior da notícia viria a seguir, sob a forma de uma declaração do responsável do grupo que referiu que a canção, entretanto depurada do conteúdo brejeiro, “manifesta a alegria de sermos portugueses”.
Perdoai-me a arrogância, mas a minha alegria de ser português encontra, assim à primeira lembrança, uma boa dezena de canções desde a “Tia Anica de Loulé” até ao “Canto Moço” de José Afonso passando pelo “Ó Rama ó Que Linda Rama”. Todas elas são (para mim, claro está) mais demonstrativas da alegria de sermos portugueses do que uma canção que diz “Vou beijar, vou cantar / Vou hum hum até me cansar / Toda a noite”, memorável obra da língua pátria embrulhada numa variante de melodia sul-americana que entra fácil no ouvido geral.
É, pois, do ouvido geral que importa falar aqui - porque isso é também matéria da educação - sabedores de que só nos entra no ouvido aquilo que o ouvido já lá tem. Tem o bom e tem o mau, é tudo uma questão de escolha, que é para isso que o Criador nos deu o juízo. Neste mundo de tantos estímulos, de tanta informação, entram milhares de melodias nas nossas vidas que hão de associar-se a outras tantas sensações. Falando de sensações estou convencido de que a da paixão que assola inevitavelmente os jovens de todas as gerações encontrará certamente uma banda sonora mais encantadora na “A noite passada” de Sérgio Godinho (“a noite passada acordei com o teu beijo / descias o Douro, fui esperar-te ao Tejo”) do que num qualquer “hum hum até me cansar”. A música, enquanto organização sonora de conteúdo cultural, entra-nos na vida desde a cantiga de embalar até ao último sopro; vivemos a música que escolhemos e também aquela que soa e ressoa mesmo que não a tenhamos chamado a nós: nas ruas, nas salas de espera, no supermercado, no elevador, no restaurante, nas buzinas esganiçadas das festas todas. Ora, tudo o que nos chega aos sentidos – música, imagens e o que mais ali chegar - poderá ser aprendido na Escola mas é, sobretudo, aprendido fora dela. Impõe-se, por isso, que a discussão dos gostos aconteça na Escola, mas aconteça também fora da Escola. É fundamental, até, que antes da necessária discussão nos mobilizemos para conhecer e dar a conhecer aquilo de que é possível gostar. Aquilo que, em circunstâncias normais, não se cruza com as nossas vidas: uma pintura de Vieira da Silva, uma melodia de Lopes-Graça, um poema do Carlos Oliveira, um romance do Manuel da Fonseca.
Falemos primeiro da Escola. Naquela escola em que os gostos não se discutem, todos os meninos tocam uma flauta de plástico amarelo. Há os que gostam e os que não gostam, mas como os gostos não se discutem o que interessa é cumprir os objectivos, o três na pauta de final de período à distância de um buraco que resiste sempre a ser tapado. Nada de muito preocupante – os nossos jovens alunos eliminam rapidamente da memória aquilo de que não gostam. Preocupemo-nos então em construir no nosso sistema educativo um programa eficaz de educação musical, que decida, também ali, quais as aprendizagens essenciais que possam apontar caminhos de emancipação cultural crescentemente capazes de construir alternativas aos produtos das indústrias do gosto de massas, aqueles que nos entram na vida por repetição exaustiva.
Houve um tempo em que o significado educativo das artes era assunto que não ocupava os cuidados públicos. Nasci nesse tempo. Cultura em Portugal era quase só a Fundação Calouste Gulbenkian e aqueles que resistiam à ditadura salazarista. Era a ideologia dominante a impor um modelo de escola em que o normativo ocupava o lugar da aprendizagem. Porque goste-se, ou não se goste, a Arte e a educação artística democráticas estão intimamente ligadas à construção do pensamento crítico, essa poderosa ferramenta de análise do mundo e de escolha de caminhos, simultaneamente matéria-prima e produto do conhecimento histórico, científico, filosófico, traço essencial da Humanidade na luta pela emancipação dos indivíduos e dos povos.
Na escola em que os gostos não se discutissem tanto faria ser Camões como Rebelo Pinto, e a disciplina de português bem poderia prescindir do romance, do ensaio, da poesia, do encontro do pensamento com as palavras que gostaríamos de ter sabido escrever. Naquela escola não haveria sequer pensamento – haveria metas, essa palavra de pudor perdido a identificar uma escola em que os meninos são galgos de corrida e os conhecimentos são aquele coelho desesperado que corre pela pista para escapar à trincadela. Ainda bem que, naquela escola, os gostos não se discutem. Ou seria insuportável a visão dos alunos alinhados no estrado do auditório, no requentado dia do diploma, o senhor director em roupa de ver-a-deus distribuindo rolinhos de papel e beijinhos – um aperto de mão para os rapazes – a premiar a excelência de coisa pouca: classificações e assiduidades, apenas, impressas no papel onde falta o registo das alegrias, das amizades valiosas de que também os cábulas são capazes, da vontade de desvendar um mundo cheio de existências e dos gostos que são capazes de gerar, tão bons de discutir.
Naquela escola em que os gostos não se discutem há os talentosos e os outros. Assim se explica que a educação artística não tenha ainda descolado, no sistema educativo, da condição de acessório, como os naperons que antigamente se punham sobre o televisor – é dispensável, mas fica bem. Os talentosos hão de entrar nos Conservatórios, que é o lugar de onde venho; os outros hão de amanhar-se com a tal flauta de plástico no 2º Ciclo, e façamos figas para que consigam cumprir a meta de tocar o tema do Titanic até ao fim sem falhar nenhum buraco. Não se estranhe, por isso, que a maioria dos cidadãos aceite – valorize, até - a fealdade urbana, o ruído radiofónico, o enredo das novelas, o alcatrão em vez da calçada, as manchetes do Correio da Manhã onde a tragédia dos outros é felizmente maior do que a nossa própria tristeza. Não podemos deixar que seja assim. Não podemos permitir que a Pedra Filosofal do Gedeão morra às mãos do pragmatismo neoliberal, em que a escola é fornecedora da empresa e do empreendedorismo individualista à cata da suposta criação do próprio emprego.
Estamos aqui para pensar, para discorrer sobre a importância de encontrar estratégias, e ferramentas, de prevenção do insucesso escolar e do abandono da Escola. Mais ainda: para somar ideias de valorização da importância da Escola e do Conhecimento, de promoção da Educação não formal, a partir de actividades nas áreas da educação ambiental, patrimonial, expressão musical e promoção do livro e da leitura.
Desde há muito que se preconiza intervir nestas áreas a partir da idade pré-escolar, na escola e fora dela. Porque é aqui que encontramos as idades receptivas a tudo o que espante, seres inteligentes que não desenvolveram ainda os filtros do preconceito, da recusa da novidade. Por incrível que pareça, até o banqueiro Salgado há de ter desenhado um dia o retrato da sua mãe – primeiro um borrão, depois uma bola encimando as linhas compridas das pernas, mais tarde o detalhe do vestido ou o sorriso largo (decerto que o há de ter havido).
A Arte é sempre um lugar de descoberta, desde que os humanos deram conta de que viver era também desenhar, cantar, dançar, dizer – transformando sempre o traço, a entoação, o gesto, o verbo. Quando a Humanidade inventou a escola, criou um poderoso instrumento de manipulação do gosto ou, pelo contrário, da sua educação. E se, durante o fascismo português, arte na escola era doutrina, o nosso tempo só pode ser o da reivindicação da Escola a favor do conhecimento. A tarefa não é simples – na nossa terra, o lugar da discussão do gosto está ocupado por mecanismos de manipulação, com que o pensamento dominante ensina a gostar dos produtos de fácil consumo e a desprezar o que o não seja – o corredor do Centro Comercial em vez do parque, a playlist no lugar da diversidade, o reflexo condicionado em vez da reflexão, o preconceito no lugar da opinião, o mercado no lugar da comunidade, o consumo no lugar do lazer.
Falemos agora da educação não formal. Por muitas razões de queixa que tenhamos, Portugal que já não é o país de há 50 anos. Na história contraditória da educação em Portugal, o movimento associativo e os contextos vários de educação informal geraram ofertas formativas na área artística – muitos dos milhares de jovens que reivindicam o acesso ao ensino artístico são produto das filarmónicas, das colectividades, de escolas informais, dos Clubes de Música, de Dança e de Teatro das escolas de ensino regular. Muitos destes acederam, entretanto, ao ensino superior artístico e estão disponíveis para cumprir o seu papel. É com estes que importa contar, para o salto que se pretende dar a nível da sugestão de caminhos para os jovens todos, com especial atenção àqueles que estão na fronteira do abandono escolar.
Não conheço em pormenor o que se passa nos ambientes educativos de Santiago. Permitam-me, porém, que chame a atenção para os cuidados gerais que há que ter na definição das tarefas a cumprir e na escolha de estratégias de emprego das ferramentas das artes no apontar de caminhos. Não se trata, aqui, de apenas colocar um instrumento musical nas mãos de um jovem, e ensinar-lhe as diferentes posições que permitem acompanhar uma cantiga. Porque as posições que servem para acompanhar uma boa cantiga do Jorge Palma são exactamente as mesmas que servem para acompanhar uma qualquer brejeirice em sol-e-dó. De pouco serve ter uma ferramenta se com ela não conseguirmos mais do que insistir em mais do mesmo. É por isso que – sem escusados paternalismos - é importante fazer com que o ensino musical se acompanhe de mais saberes essenciais, que conheça e transforme a cultura popular local, que conheça e dialogue com a Natureza, com o património, que perceba que numa qualquer actividade de levar ao público as tais posições da guitarra - por exemplo, num infantário daqui - é mais proveitoso cantar e tocar a “Canção de Roda” do Barata Moura do que um qualquer super-êxito da Floribela do momento, que já tem muito quem o mostre. É essencial que os formadores destes jovens os saibam ganhar para a superação dos limites de cada um, ao invés de os colocar – como tanto acontece por esse país fora – em competição com os seus pares. É por isso essencial que se perceba que a reprodução dos modelos dos concursos de talentos, da adaptação local dos produtos das multinacionais do entretenimento não é o melhor dos caminhos. Dir-se-á, como tanto o dizem os meus colegas do Conservatório, que os miúdos gostam dos concursos. Eu defendo que não. Aquilo de que os miúdos gostam é do reconhecimento, do convívio, da observação dos outros, da capacidade que se lhes reconheça de acrescentar ao mundo a sua pegada individual. O professor de que se lembram os velhos como eu é sempre aquele que reparou em nós e que nos pôs a descobrir o conhecimento, em ambiente de prazer, levando-nos o olhar para fora da escola.
Numa entrevista recente a um jornal português questionaram a pianista Maria João Pires acerca da validade dos concursos. Disse assim: “aí sou muito radical: considero-os a morte da arte e da música, de tudo. Sejam bons ou maus, honestos ou desonestos: o concurso é inimigo de qualquer criatividade, de qualquer artista. E são o grande inimigo da possibilidade de as novas gerações terem ainda a oportunidade de transmitir aquilo que é essencial na música”.
Educação e conhecimento para além da escola é a tarefa mais hercúlea que pode haver. Porque não é só feita de saberes, é feita dos viveres que o conhecimento orienta. Por isso faz sentido que a Câmara se mobilize para resolver o que considera ser a sua competência, exigindo do poder central aquilo que lhe compete fazer, sobretudo quando as governações procuram fugir aos deveres. Educação e conhecimento para além da escola é a música, de que vim aqui falar, mas é, junto com ela, a oferta cultural que a complementa e justifica, os transportes que se vá e se regresse, a saúde que nos dispõe para a vida, o trabalho onde nos cumprimos, o lazer enquanto espaço de observar o mundo, o convívio onde somos nós nos outros.
Sei ainda pouco sobre o programa Insucesso Zero. Mas gostei de saber que aqui em Santiago se arregaçam as mangas para puxar os jovens para a vontade de conhecer, para a vontade de se conhecerem, para a vontade de sair à rua e sentir que vale a pena cruzar o caminho em direcção à escola.
Sou de um tempo juvenil em que cantar a canção Acordai do compositor português Lopes-Graça podia ser motivo de prisão. Era uma canção apenas, dir-se-á. Era mais: era a tal Arte. Objecto libertador, ao mesmo tempo ideia e prazer, simultaneamente reflexão individual e colectiva.
Dizia há pouco que Portugal já não é o país de há 50 anos, tantas são as instituições, os projectos, as experiências, os programas, as reflexões que a democracia suscitou, pela mão da Escola e além da sua porta. No fundo trata-se de perceber o que de melhor se vai fazendo, também em Santiago do Cacém, e replicar Portugal afora.
Havemos de lá chegar, ao tempo em que os gostos não se imponham – discutam-se. Ao tempo em que as tarefas não se treinem – eduquem-se. Ao tempo em que à conformação da desilusão se responda com a determinação da cidadania. Havemos de chegar ao tempo em que o abandono escolar seja apenas uma memória do subdesenvolvimento. Em que a iliteracia seja um fóssil sem reencarnação. Para já fazemos caminho. Como na cena final de Tempos Modernos em que Charlot, recusando a desumanização da modernidade industrial, se faz à estrada, de braço dado com o seu amor.
(2 de Fevereiro. no Forum "Pensar a Educação", promovido pela Câmara Municipal de Santiago do Cacém)
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