Venezuela, para que conste
(Domingos Lopes, Público, 2019/02/05)
Não há ninguém com o mínimo de honestidade intelectual que não aceite que a crise venezuelana, para além da incompetência e dos erros da ação governativa, enfrenta pressões e ingerências dos EUA. É para vergar o regime pela miséria que se juntam os que querem as riquezas daquele país.
Há, em torno da crise venezuelana, um redemoinho infernal de notícias. A grande maioria das notícias foca a realidade do que se passa naquele país do seguinte modo: há um ditador e uma ditadura nascida com o chavismo de um lado e, do outro, os opositores à ditadura, que, neste momento, têm Guaidó como cabeça, e que é o presidente da Assembleia Nacional (Parlamento). Isto é, há um Parlamento eleito democraticamente. Estranha ditadura... que chegou com Chávez, Presidente eleito em todas eleições a que concorreu, e reconhecidas por todo o mundo como tendo sido livres e limpas. Portanto, na Venezuela, não houve e não há uma ditadura.
Existem na Venezuela dois poderes – o que decorre da Assembleia Nacional, que se opõe ao campo político de Nicolás Maduro, e o que emana de Maduro, recentemente eleito, e cujas eleições são contestadas pela oposição venezuelana e sobretudo por Trump, a que mais tarde se juntou a UE.
Não há ninguém com o mínimo de honestidade intelectual que não aceite que a crise venezuelana, para além da incompetência e dos erros da ação governativa, enfrenta pressões, ingerências e até um embargo dos EUA àquele país, tanto mais quanto os EUA decidiram aplicar sanções às empresas que façam negócios com as petrolíferas venezuelanas. É para vergar o regime pela miséria que se juntam os que querem as riquezas daquele país.
A Venezuela é o país com as maiores reservas petrolíferas, e sabe-se por experiência trágica vivida na Iraque o quão forte é a gula daquele país por países com petróleo.
Trump, o nacionalista, o que só quer a América Grande, afinal também quer a Venezuela e na sua desbragada linguagem não descarta enviar tropas e a esta ameaça Guaidó olha para o céu, esperando que os tropas venham derrubar a estátua de Chávez, e que alguém em Portugal volte a comparar a invasão agora da Venezuela com o 25 de Abril de 1974...
Mas este estranho e paranóico mundo nem sequer dá conta de que se está a falar de um país em que há eleições... e milhares de manifestantes nas ruas…
Olhemos para outro país riquíssimo em petróleo, a Arábia Saudita. Aqui as eleições são, à luz de teoria sunita made in Casa Real, uma heresia. A realeza saudita encarna uma espécie de poder divino que não se compadece com a sorte dos cidadãos – é a Casa Real que sabe, decide e impõe.
Pois, neste país não só não há qualquer vislumbre democrático como os seus dirigentes assassinam friamente os seus opositores, mesmo noutros países, e impõem uma guerra destruidora num pequeno país do Golfo, o Iémen, para esmagar a revolta dos hutis, árabes muçulmanos da corrente xiita.
Comparemos a desfaçatez destes senhores do mundo que se puseram de cócoras face à Arábia Saudita quando os seus dirigentes encomendaram o hediondo assassinato do jornalista Khashoggi, designadamente a pequenez do senhor Pedro Sánchez, que manteve a venda das fragatas aos senhores feudais da Arábia Saudita, mas que agora altivamente se colocam ao lado de Trump contra Maduro.
O problema não se coloca em apoiar ou não apoiar Maduro, mas com Maduro e todos os outros venezuelanos, incluindo Guaidó, encontrarem saídas, que respeitem a soberania do povo venezuelano.
Portugal tem um ministro dos Negócios Estrangeiros que nesta crise mais se parece com um galaró do que com um chanceler que respeita um país onde trabalham centenas de milhares de luso-descendentes e quer ser respeitado nas atitudes que toma.
Rui Rio, ao apoiar o Governo nesta matéria, fazia-o, disse, porque Portugal estava do lado dos mais fortes e, portanto, um pequeno país como o nosso lá vai como a maria-vai-com-as-outras.
Um país como o nosso não se deve pôr em bicos de pé, dar ares do que realmente não é, visando agradar aos poderes dominantes, desprezando posições que realmente podiam dar a Portugal outro protagonismo e outra capacidade na defesa da imensa comunidade portuguesa na Venezuela e das futuras relações com aquele país.
Essa postura, a juntar-se à do grupo de contacto do Uruguai, México e outros, e à do Papa, ajudaria a criar novos posicionamentos que contribuiriam para uma saída menos dolorosa da crise.
Portugal calou-se covardemente diante de um país que nem as mulheres deixa sair à rua e que assassina e faz desaparecer o cadáver de Jamal Khashoggi. Põe-se agora a falar de cima do capoeiro, como se vozes de garnisé chegassem ao céu...
Chávez foi um amigo de Portugal, com quem foram realizados negócios bons para os dois lados, um Presidente democraticamente eleito e que ganhou em eleições livres e limpas. Não instaurou uma ditadura, nem defendeu ditadores como fez Bolsonaro. Para que conste. A ditadura fria, cruel, absolutista está em Riad, de onde Trump e os líderes europeus enchem os bolsos com os triliões de dólares da venda de armamento.
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