Israel usa armas químicas com bênção global
(José Goulão in AbrilAbril, 2018/04/27)
«O senhor abrirá diante de vós todos esses povos e submetereis povos maiores e mais fortes do que vós. Toda a região que a planta dos vossos pés pisar será vossa. Desde o deserto até ao Líbano e desde o rio Eufrates até ao mar ocidental serão essas as vossas fronteiras. Ninguém vos poderá resistir; o Senhor vosso Deus espalhará o medo e o terror sobre todos os lugares onde puserdes o pé, como vos afirmou.» (Antigo Testamento, Deuteronómio, cap. 11 – 23, 24 e 25)
Até prova em contrário, esta é a lei ainda em vigor num mundo sem lei. Palavras atribuídas ao profeta Moisés, que não terão pertencido a Moisés, inscritas afinal não se sabe por quem num dos cinco livros do Antigo Testamento, parte da Bíblia que garante a supremacia do «povo escolhido», o «povo de Israel», sobre os demais povos da Terra.
Colectâneas de lendas, ficções e profecias de origens desconhecidas e perdidas no tempo, em torno das quais se alongam discussões e teorias especulativas eternamente inconclusivas, continuam a servir de sustentação a práticas de uma crueldade aterradora, exercidas com uma impunidade absoluta e que se sobrepõem às mais elementares e actuais leis dos homens.
Por isso, Israel usa armas químicas contra a população sitiada da Faixa de Gaza enquanto os cidadãos supostamente informados continuam entretidos com a novela da mirabolante e fracassada tentativa de assassínio dos Skripal, a que se somam as contaminadas historietas sobre os arsenais químicos da Síria de Assad, tão bem escondidos como outrora as armas de extermínio à disposição do Iraque de Saddam.
Por causa das maléficas, mas invisíveis, armas químicas que teriam sido usadas em Duma, na Síria, a tríade fraternal e justiceira formada por Trump, Macron e May, sob coordenação da NATO, fez chover mísseis de cruzeiro sobre terra síria, alguns de um modelo em estreia absoluta, guiados contra paióis tão venenosos que deles não consta ter-se libertado um átomo de qualquer produto perigoso.
Pelo mesmo motivo, sucederam-se reuniões e vetos no Conselho de Segurança da ONU, como se a salvaguarda da lei e do direito no mundo fosse unicamente ameaçada por comportamentos não demonstrados, atribuídos aos senhores de Damasco, amigos e aliados.
Foi tanta a atenção concentrada nestes acontecimentos que não chegou para se debruçar sobre a utilização comprovada de armas químicas israelitas contra os seres humanos indefesos encarcerados em Gaza. Usados ainda como cobaias em testes de munições concebidas para provocar sofrimentos longos e torturantes a pessoas cuja única culpa é a de não pertencerem ao «povo eleito» e quererem viver na terra onde nasceram.
Sobre essa realidade não se pronunciou ainda o Conselho de Segurança da ONU, provavelmente por falta de tempo, ou talvez porque já não se justifique discutir atentados cometidos com engenhos interditos numa situação que se tornou corriqueira, banal, de relevo insuficiente para ocupar espaço na agenda dos senhores do mundo e respectivos vassalos.
Em Gaza, todas as sextas-feiras de há umas semanas para cá, milhares de pacíficas famílias palestinianas, sem armas nem símbolos políticos, reúnem-se na zona dos remanescentes terrenos agrícolas do enclave para tentarem, mais uma vez, denunciar ao mundo as crueldades a que mais de dois milhões de pessoas ali continuam sujeitas: cercadas por vedações, sitiadas militarmente, sem infraestruturas que permitam uma existência digna de seres humanos, entre lixos, ruínas e destroços, quase sem água nem energia eléctrica, com carências gritantes de medicamentos e alimentos, sem trabalho nem escolas. Em Gaza morre-se lentamente numa situação de agonia tão prolongada como feroz.
Os palestinianos que participam nessas manifestações cívicas que designaram como «Marcha do Regresso», o regresso às terras que lhes pertencem de pleno direito em toda a Palestina, expõem-se, em campo aberto, aos exercícios de tiro ao alvo e às sevícias engendradas pelas tropas israelitas sitiantes.
Activistas de todo o mundo que apoiam solidariamente estas acções de resistência afirmam, com um optimismo pouco objectivo, que a coragem demonstrada por estas famílias palestinianas tem vindo a reflectir-se na opinião pública e entre dirigentes de todo o mundo, que assim adquirem uma nova consciência do desequilíbrio de forças e da injustiça flagrante da situação.
Em Fevereiro último passaram 30 anos sobre a primeira vez que estive em Gaza, menos de um mês depois de ter explodido a chamada «Intifada», a genuína, legítima e justa revolta das pedras – iniciada naquele paupérrimo território.
O cenário que então chegou a grandes meios de comunicação social, revelando cruamente a desproporção do confronto entre jovens arremessando pedras contra um exército de topo esmagando-os com tanques, chamou a atenção para o problema da ocupação ilegal da Palestina.
Porém, a resposta eficaz da propaganda sionista e dos seus poderosos tentáculos ramificados em todo o planeta foi dando volta à situação, tornando fugaz a indignação internacional, transformando a legítima expressão da ira dos ocupados, perseguidos e espoliados em episódios de «terrorismo» doutamente comentados e explicados por quem se ocupa apenas de deturpar a realidade e mentir sobre razões.
Os ecos da «Marcha do Regresso» não rompem agora a barreira formada pela propaganda instalada e institucionalmente sedimentada, cavalgando fronteiras. Por isso, a tropa israelita recorre a armas químicas reais e o mundo não dá por isso, entretido com divagações e mistificações em torno de falsas armas químicas.
O notável cirurgião francês Christophe Oberlin tem estado em Gaza, ocupando-se da assistência a vítimas da chacina permanente cometida pelo exército israelita contra a população sitiada. Não tem quaisquer dúvidas em afirmar que estão a ser cometidos atentados com armas químicas «no norte e no sul» do território mártir.
«Esses ataques deixam no terreno dezenas de feridos inconscientes e agitados por convulsões durante longos minutos», escreve o Professor Oberlin. «Convulsões que se repetem regularmente nos feridos hospitalizados nas unidades de cuidados intensivos». A causa são «gases neurotóxicos», explica o médico, que durante 8 e 15 de Abril realizou cirurgias sucessivas no Hospital de Shifa, em Gaza, o mais importante da região. São também «usados outros gases, de cor diferente, que provocam vómitos e diarreias sangrentas», acrescenta.
Ao que consta, ninguém encarregou ainda a Organização para a Destruição de Armas Químicas de investigar estas denúncias fundamentadas – quiçá por isso silenciadas.
O testemunho do Professor Oberlin permite detectar ainda a utilização, pelas tropas israelitas, de engenhos invulgares produzidos por mentes irremediavelmente doentes. São balas «com efeitos explosivos que fazem rebentar os ossos, transformam o interior dos crânios em pastas sangrentas, destroçam os corpos abrindo crateras pelas quais podem passar punhos», testemunha o médico.
Dezenas de mortos e mais de 500 feridos é, até agora, o balanço das chacinas israelitas cometidas para travar as «marchas do regresso» semanais. Membros da organização «Médicos Sem Fronteiras» presentes no terreno confirmam as informações prestadas pelo Professor Oberlin.
Depararam com «ferimentos devastadores de uma severidade pouco habitual, de tratamento extremamente complexo e que deixarão sequelas na maioria dos pacientes». As balas «destroem literalmente os tecidos e pulverizam os ossos», explica a Dr.ª Marie-Elisabeth Ingres, responsável pela equipa dos «Médicos Sem Fronteiras» presente em Gaza.
Sobre estas utilizações de armas e engenhos interditos que ferem o direito internacional paira um absoluto silêncio do Conselho de Segurança da ONU. Como se já não sobrasse direito internacional para ferir.
Silencioso está igualmente o secretário-geral da ONU. Talvez seja melhor assim, ou voltaríamos a escutar um dos seus corajosos apelos à «contenção de ambas as partes»: neste caso os cidadãos desarmados e indefesos que se manifestam pelos seus direitos, garantidos nas resoluções aprovadas pela organização que dirige, mas sempre sonegados; e soldados israelitas recorrendo a armas químicas e apoiados em snipers que actuam em campo livre, e sem resposta, disparando balas que «pulverizam ossos», destroçam tecidos e transformam crânios em «pastas sangrentas». Justiça biblicamente salomónica, a de Guterres.
Perante o quadro em que funciona actualmente a chamada «comunidade internacional» é natural que qualquer cidadão israelita, mesmo céptico em relação à religião oficial do seu país, sinta a inutilidade de esgrimir argumentos racionais e humanitários perante as convicções e as verdades divinas invocadas pela doutrina político-religiosa fundamentalista – a essência do sionismo - em que assenta a existência do Estado de Israel.
Por isso esta transitou, pacífica e gradualmente, de uma hipócrita democracia formal para um sistema indisfarçadamente elitista, xenófobo, racista, ditatorial e de absolutismo religioso fundamentalista, regredindo 3500 anos ao encontro dos argumentos míticos e lendários do Antigo Testamento, como alicerces providenciais de um nacionalismo dogmático.
O Estado de Israel de hoje assume-se, sem rebuço, como o lar do «povo eleito» – «Passarás o Jordão para entrares na terra que o Senhor, teu Deus, te há-de dar; toma posse dela e habita ali». (Deuteronómio, cap. 11 – 31)
Ao Estado de Israel é permitido assumir, com toda a discricionariedade e sem risco de sanção, comportamentos e atitudes agressivas, difamatórias e ameaçadoras para com os outros Estados, povos e cidadãos do mundo. As organizações, interesses e potências que usam o poder da força para fiscalizar abusivamente a «ordem mundial» são de uma tolerância cúmplice e sem limites para com estes procedimentos.
Tal como o Estado de Israel, também estas entidades violam o conjunto das leis internacionais com o qual se comprometeram. Por isso se uniram em aliança dita «indestrutível», porque todos ganham em violar as leis terrenas – para pragmático usufruto das vantagens terrenas – cultivando fraternalmente as mais inquestionáveis ficções, afinadas em forma de moderna propaganda. São elites sumptuosas e globais que se elegeram a si mesmas – a versão actual do «povo eleito».
Nos dias que correm, as leis internacionais tornaram-se letra morta, substituídas pelo resultado das combinações oportunistas e voláteis dos efeitos da mistificação intoxicante feita de propaganda, mentiras, silêncios, superficialidade, desinformação e intoxicação, retorcidos dogmas religiosos e civilizacionais.
Uma circunstância que permite, por exemplo, cantar loas a uma gesta guerreira contra o uso de armas químicas virtuais enquanto se gaseiam impunemente, com armas químicas reais, os indefesos seres humanos confinados a um campo de morte lenta. Em nome dos direitos humanos.
«Destruirás, pois, todos os povos que o Senhor, teu Deus, te entregar; não olharás para eles com piedade, nem adorarás os seus deuses, porque isso seria para ti uma armadilha». (Antigo Testamento, Deuteronómio, cap. 7 – 16)
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