2018/11/29

Policias Alugados ao Capital Portuário

Novos Ratinhos
(Manuel Rocha, N' As Beiras, 2018/11/24)

Setúbal. A guarda chegou na manhã para afastar os trabalhadores portuários que impediam a passagem do autocarro que, literalmente, iria furar a greve por direitos laborais. Não se disseram, mas poderiam ter-se dito - mesmo que outra seja a seara - as falas que José Saramago deixou escritas em Levantado do Chão: "Estão agora dois grupos de trabalhadores frente a frente, dez passos cortados os separam. Dizem os do norte, Há leis, fomos contratados e queremos trabalhar. Dizem os do sul, Sujeitam-se a ganhar menos, vêm aqui fazer-nos mal, voltem para a vossa terra, ratinhos. Dizem os do norte, Na nossa terra não há trabalho, tudo é pedra e tojo, somos beirões, não nos chamem ratinhos, que é ofensa. Dizem os do sul, São ratinhos, são ratos, vêm aqui para roer o nosso pão. Dizem os do norte, Temos fome. Dizem os do sul, Também nós, mas não queremos sujeitar-nos a esta miséria, se aceitarem trabalhar por esse jornal, ficamos nós sem ganhar. Dizem os do norte, A culpa é vossa, não sejais soberbos, aceitai o que o patrão oferece, antes menos que coisa nenhuma, e haverá trabalho para todos, porque sois poucos e nós vimos ajudar. Dizem os do sul, É um engano, querem enganar-nos a todos, nós não temos que consentir neste salário, juntem-se a nós e o patrão terá de pagar melhor jorna a toda a gente”.



Outros tempos, aqueles, a mesma realidade triste. Mas manhas maiores, agora sabedoras dos riscos de permitir que trabalhadores levantados conversem com agachados. Assim, desta vez não se correram riscos: encerraram-se os novos ratinhos num autocarro – uma ilha rodeada de guardas por todos os lados – e negou-se-lhes o direito a ouvir aqueles a quem iriam ocupar lugar. E levaram-se os grevistas para trás de gradeamento, negando-lhes o direito de apelar para a humanidade dos que lhes vinham ratar o pão. Os compromissos essenciais das governações das últimas décadas celebram-se nas mesas negociais da permissão do lucro, aquelas em que o Trabalho não tem assento. Por isso, valores mais altos se levantaram a quem decidiu, nestes dias, ofender as leis da República - no ano quarenta e quatro da democracia portuguesa o governo escolheu ser o feitor da nova praça de jorna.

Num ambiente de contradições, grande é o simbolismo das declarações de um comandante das forças policiais que retiraram, um a um, operários e deputados daquela estrada de Setúbal. Congratulava-se o oficial com não ter havido violência e detenções entre aqueles que “estavam a defender os seus postos de trabalho e a lutar pelos seus direitos” (palavras do comandante). Ficou-lhe bem reconhecer que os trabalhadores que lhe ordenaram “pôr na ordem” eram lutadores, não desordeiros. Mas não nos iludamos – os dias em que as forças da ordem são instrumento da ilegalidade são dias de luto para a democracia. São dias de ofensa ao Estado de Direito. São dias de violência - tal como no tempo dos ratinhos - para não ter de "pagar melhor jorna a toda a gente".

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