Ali por volta de meados do século XIX, dois modernos filósofos, o Carlos e o Frederico, demonstraram que a ideologia dominante, naquele caso a burguesa, se reproduzia e mostraram como era o processo, hoje, no DN o Pedro Tadeu aborda uma das formas de reprodução da ideologia dominante: a censura da diferença. @Refer&ncia
Um mamilo de Rubens desafia o capitalismo?
(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 2018/07/25)
Os dirigentes do Rubenshuis, de Antuérpia, decidiram gozar com o Facebook: filmaram um vídeo onde se veem dois supostos seguranças a percorrerem o museu, que mostra inúmeras pinturas do século XVI assinadas por Peter Paul Rubens.
Os dois capangas abordam visitantes e perguntam: “tem conta numa rede social?”. Quando o espantado turista responde que sim, os seguranças pedem desculpa mas, justificando-se com as regras em vigor das redes sociais, obrigam-no a afastar-se das pinturas de mulheres nuas que deram reputação de génio ao pintor flamengo e, provavelmente, ocuparam lugar de relevo entre os sonhos eróticos de certas realezas barrocas europeias, que mecenaram o artista.
A piada em vídeo viral da “Casa de Rubens” tem um alvo óbvio – o Facebook, a rede social dominante neste lado do mundo – mas, na verdade, a empresa de Mark Zuckerberg não é citada no vídeo, pois o museu prefere alertar para o reacionarismo das regras que impedem a publicação, nos novos media, de obras artisticas clássicas.
Lembro-me de ler noticias do Facebook censurar uma publicidade que usava uma mulher, símbolo da República Francesa (semelhante à portuguesa), que mostrava os seios enquanto liderava, bandeira tricolor na mão, uma revolta popular (a pintura original é de Eugéne Delacroix).
Lembro-me de ler notícias do Facebook censurar a publicação da foto de uma estatueta com 30 mil anos de uma mulher nua, aparentemente grávida, interpretada pelos arqueólogos como um símbolo de fertilidade, mas entendida pelos gestores da rede social como sendo um “conteúdo impróprio”.
Lembro-me de ler notícias do Facebook censurar a reprodução de um quadro chamado a Origem do Mundo: uma vagina e um par de seios cruamente mundanos, pintados por Gustave Coubert no século XIX, em provocação aos nus desenhados em grandes cenas mitológicas ou oníricas que algo hipocritamente prevaleciam nas artes visuais europeias.
O Facebook, portanto, censura mulheres nuas. É um facto. Foi até divulgado um manual interno da empresa com milhares de indicações complexas aos seus trabalhadores sobre os critérios que devem seguir para eliminar publicações com cariz sexual, violentas, racistas, homofóbicas, terroristas e sei lá que mais.
Provavelmente muitos de nós, por razões ideológicas, culturais ou morais, concordarão com algumas das restrições que o Facebook pretende impor nas suas páginas. Provavelmente acharemos outras ridículas e, até, gravemente ofensivas da liberdade de expressão.
Provavelmente muitos identificarão a dualidade de critérios do Facebook: lesto a cortar mamas das suas páginas mas suspeito de ser conivente com invasões empresariais de privacidade ou utilização abusiva de dados dos seus utilizadores. Mas isso, hoje, não me interessa.
O que me interessa agora é perceber as consequências para uma boa parte do mundo, para os indivíduos, dos atos de censura do Facebook .
O que leva as redes sociais a censurar os seus utilizadores?
É a pressão de um número significativo de utilizadores, de gente influente, de organizações, de instituições, de governos?
É a própria adesão a um certo padrão moral de investidores e dirigentes de redes como o Facebook?
É o medo de perder negócio, de criar uma onda de rejeição, de temer que muitas pessoas passem a fugir de um local com reputação de “má fama?”…
Será um pouco disso tudo, mas creio que a razão prevalecente é a última que alvitrei, a relativa à saúde do negócio: os mamilos das mulheres de Rubens são uma ameaça aos capitais investidos no Facebook.
O problema é o tamanho. O Facebook tem uma dimensão quase global e, ao fazer censura aos seus utilizadores, seja por bons ou por maus motivos, tenha ou não razão, está, inevitavelmente e simultaneamente, a influenciar a moral global: pela repetição, anos e anos a fio, destes atos de censura, o código de conduta social que vigorar no Facebook tenderá a ser a moral vigente nas sociedades onde a empresa domina o mercado das redes sociais.
O que o Facebook está a fazer é que a moral e a ética de uma parte da sociedade se imponha, unilateral e ditatorialmente, a todos os utilizadores.
Porque pode o Facebook atuar como guardião de uma moral, de uma ideologia, que não é, necessariamente, a moral de todos os seus leitores e não é, certamente, a moral de todos os povos?
Porque pode o Facebook impor uma moral que reflete, também e necessariamente, opções e aquisições ideológicas, religiosas, culturais e políticas que, claramente, não são as de todos os seus leitores em todos os países e nações por onde eles se espalham?
Porque pode (e porque tantos lho pedem?) o Facebook impor limites à liberdade de expressão dos indivíduos quando, e bem, criticamos tanto os Estados e os governantes que o tentam fazer?
Dirão: “O Facebook é uma empresa privada e pode fazer o que quiser dentro da sua propriedade”… Pois, mas com o tamanho que tem, o Facebook é muito mais do que uma empresa privada: é uma potencial e perigosa fábrica de mentalidades.
Por isso, em nome do bem comum, a rede social Facebook deveria ser socialmente neutra e, na verdade, não o é. Isto é uma ameaça civilizacional
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