Brasil: a destruição do espaço público é o triunfo do poder absoluto do mais forte
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 26/10/2018)
Por andar a escrever bastante sobre o Brasil e por Gregório Duvivier (“Porta dos Fundos”) ter partilhado uma entrevista que lhe fiz nas redes sociais, tenho tido muitas reações de brasileiros que vivem em Portugal e no Brasil. Por essa via tive, há uns tempos, uma experiência antropológica interessante. Um brasileiro enviou-me um conjunto de “notícias” sobre a esquerda brasileira. Desde leis apresentadas no Congresso, com links não acessíveis por se tratarem de fotografias e com resumos onde se fala de “promoção do ateísmo” ou do ensino de que “ninguém nasce homem ou mulher”, até o já famoso “kit gay”. De forma pedagógica e paciente, fui enviando os links para as propostas de lei referidas, para que o meu interlocutor verificasse que os resumos eram falsos, e links para notícias que desmentiam o vídeo que ele me enviava da TV Record (da IURD).
Nem os links para as propostas de lei originais, nem o facto das notícias que lhe enviei virem de órgãos de comunicação social claramente de direita, como a “Veja” ou a “Globo”, ou de referência, como a “Folha de São Paulo” ou o “El País-Brasil”, demoveu o meu interlocutor. A cada conjunto de links que lhe enviava ele respondia-me com mais material de propaganda, notícias truncadas e teorias da conspiração. Tenho acompanhado os angustiantes e exasperantes debates que se vão fazendo nas redes sociais entre brasileiros. Das poucas vezes que se os dois lados se cruzam e entram em diálogo, raramente podemos falar de diálogo. Para além dos insultos, sobra a intoxicação. Quando ela vem dos apoiantes do Bolsonaro (e ela vem grande parte das vezes daí, apesar de haver casos opostos) e é desmentida por notícias, há sempre uma fuga: o jornalismo é pago pelo PT. Se o candidato do PSL disser que o sol nasce uma vez por semana dirão, perante a evidência da mentira, que foi o corrupto PT que pagou ao sol para nascer todos os dias. Com base numa teoria geral da conspiração toda a realidade se torna desmentível.
O isolamento imposto ou autoimposto aos apoiantes de Bolsonaro leva o fanatismo à total irracionalidade e falta de senso comum. Será ignorância? Nada tem a ver com isso. Tirando pessoas da área académica, o padrão é que as pessoas com maiores habilitações literárias e mais dinheiro votam mais em Bolsonaro do que as mais pobres. Sei como é que isto acontece porque o experimentei por uma noite: perante tanta insistência de uma só pessoa e com material tão tosco, mesmo assim eu cheguei a duvidar. Eu, que faço da minha vida a busca de informação, que estou profissionalmente apetrechado para descobrir manipulações informativas. E imaginei: se eu não tivesse estes instrumentos, se em vez de uma pessoa fossem mil, se em vez de um dia fosse um mês, dois meses, meio ano?
É importante acrescentar a isto um facto que já repeti num outro texto: grande parte deste fenómeno deu-se no WhatsApp, uma aplicação em que a comunicação se faz de forma privada, seja individualmente ou em grupo. Isso tem razões económicas, relacionadas com os tarifários, que não domino. Dois terços dos brasileiros usam esta aplicação como principal forma de se informarem. Com 120 milhões de usuários, este é o espaço ideal para a intoxicação. Milhares de notícias espalham-se de forma viral sem que ninguém as possa desmentir. Tudo se passa numa enorme rede subterrânea. Milhões de pessoas recebem informações falsas, partilham-nas julgando-as verdadeiras, enviam-nas para grupos onde ninguém as desmente. E criam uma realidade virtual, onde a mentira e a verdade já não fazem propriamente sentido. A extrema-direita brasileira percebeu-o e desde as manifestações de 2013 que constrói uma rede muito eficaz neste espaço.
A intoxicação política através da mentira não tem nada de novo. Não nasceu com as redes sociais. As redes sociais apenas as tornaram muito mais eficazes e virais. Mas aquilo a que assistimos no Brasil é diferente. Ali junta-se a força viral do boato público com a opacidade do boato privado. E isto tem uma força destrutiva que ainda não conseguimos medir. No Brasil, assistimos ao fim do espaço público, o lugar onde o confronto acontece.
Cada lado fica preso na sua realidade, protegido de qualquer contraditório ou até da verdade. E é por isso que, quando esses mundos que não se tocam se encontram, só nasce insulto e tolerância. Porque é com espanto que descobrem o outro. E se a democracia é o espaço do confronto (o que implica encontro), ela também o espaço da negociação. Não quero resumir o que se passa no Brasil a isto, mas isto é o que de mais universal existe no que se está a passar no Brasil.
No fim desta campanha, a “Folha de São Paulo” acusou vários empresários de injetarem ilegalmente 12 milhões de reais (cerca de 2,8 milhões de euros) para distribuir notícias falsas através do WhatsApp. Um dos principais financiadores é Luciano Hang, dono da maior rede de armazéns de venda a retalho no Brasil. Uma personagem que arregimenta e assedia os seus trabalhadores para espetáculos como este. Ironicamente, o financiador das notícias falsas exigiu direito de resposta na “Folha de São Paulo”. Esse é um dos dramas quando nos temos de confrontar com os inimigos da democracia: eles recusam-se a cumprir as suas regras mas exigem beneficiar delas.
Muitos dos que acreditam que a destruição dos órgãos de comunicação social tradicionais traria mais democracia na informação são agora confrontados com aquilo que me parece óbvio: o que determina o poder dos mais fortes não são os instrumentos que usam, é a sua força social. A única vantagem dos mediadores que conhecíamos não é a sua independência, neutralidade ou objetividade, que nunca existiu. É a sua exposição à crítica. É mover-se num plano ético onde existe, pelo menos aos olhos de quem os lê, ouve ou vê, há certo e errado, falso e verdadeiro. A destruição dos instrumentos de mediação não nos libertou do poder de homens como Luciano Hang. Pelo contrário, deu-lhes um poder muito maior para agirem na sombra, já sem qualquer necessidade de disfarce ou de respeito formal por algumas regras.
O caos é coisa que devíamos ter aprendido com a história, não é a desordem onde o povo ordena. É a lei do mais forte. O que assistimos na forma como a informação hoje circula é o mesmo que assistimos na forma como o dinheiro circula. A desordem desregulada acabará como acabou nos EUA ou no Brasil: com a liberdade absoluta do poder perante o embrutecimento dos que lhe devem obedecer.
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