O Marxismo, crítica da economia política ou economia política?
(Rémy Herrera in ODiário.info, 2018/10/12)
O marxismo é uma das armas teórico-práticas mais poderosas – senão a mais poderosa – de que as classes trabalhadoras dispõem para travar as suas lutas. Isso explica simultaneamente a sua presença marginal nas esferas académicas e intelectuais, onde essas classes não estão (ou quase não estão) representadas e onde a influência ideológica da burguesia é asfixiante, e também o facto de o marxismo não desaparecer, apesar de sinais evidentes de declínio e das esperanças dos seus inimigos – incluindo os sociais-democratas. No entanto, a sua relação com a economia, enquanto disciplina científica, não é evidente. Primeiro, porque a economia dita “política”, que apareceu na Europa ocidental entre os séculos XVI e XVIII, é um subproduto da evolução histórica do sistema capitalista.
A fórmula escolhida por Jean-Baptiste Say para definir a economia como a ciência que estuda a forma como “se formam, se distribuem e se consomem as riquezas” [1] , transmite a impressão de que isso acontece a estas últimas “se não por si só, pelo menos, duma forma independente da vontade do homem”, segundo escreveu Léon Walras, que acrescentou: “o que seduziu os economistas para esta definição [a definição dada por Say], é precisamente esta cor exclusiva de ciência natural que ela dá a toda a economia política. Este ponto de vista ajudava-os especialmente na sua luta contra os socialistas. Qualquer plano de organização da propriedade era rejeitado por eles a priori e, por assim dizer, sem discussão”. [2] O marxismo vai mais longe, mostrando, como sublinhava Engels, que “a economia não trata de coisas, mas de relações entre pessoas e, em última análise, entre classes; mas essas relações estão sempre ligadas às coisas e aparecem como coisas”. [3]
As ideologias dominantes do capitalismo consolidaram-se com as mutações deste campo disciplinar que se transformou lentamente de “economia política” em “economia pura”. “Economia política” é a forma sob a qual ela nasceu por volta do século XVII, graças a autores como Antoine de Montchrestien e William Petty [4] , traduzindo a predominância da economia sobre a política consecutiva à afirmação do capitalismo: depois sob a que foi aperfeiçoada a partir do século XVIII, por Adam Smith, David Ricardo e as contribuições clássicas. “Economia pura” é o que pretende passar a ser a partir do final do século XX, e cada vez mais neste início do século XXI. A parte central do tríptico cronológico que é representado pela formulação duma “economia política pura” (a teoria walrasiana do equilíbrio geral dos mercados) nos últimos decénios do século XIX, num momento em que a disciplina se tinha autonomizado (da filosofia e do direito, e depois da ciência política e da sociologia) e já estava solidamente institucionalizada.
É certo que o marxismo, primeiro que tudo, é uma crítica a esta economia política. Marx e Engels têm uma concepção histórica do capitalismo e criticaram aqueles que o consideram uma interpretação “fetichista”, atribuindo um poder a simples objectos materiais. Insistem nas relações sociais. O capital é uma relação social de produção, ligado a uma determinada estrutura social e historicamente determinada. São os meios de produção monopolizados por uma parte da sociedade, e que comandam, numa relação de domínio e de exploração, os trabalhadores que vivem dos seus salários. Criticaram os clássicos que identificaram “leis económicas” sem perceberem que estas são históricas e exprimem as contradições da sociedade e as tendências para mudanças profundas nessa sociedade.
Mas o marxismo, dado ser uma crítica, também é o fundamento dos conceitos-chave de um saber científico autêntico, radicalmente alternativo, em economia política. É com Marx e Engels, no quadro duma concepção materialista da história, que vão ser determinadas as características do modo de produção capitalista, vão ser articuladas as forças produtivas e as relações de produção, vão ser traçados os contornos dos antagonismos de classes, vão ser desvendados os segredos da exploração, incluindo os movimentos complexos do capital, vai ser medida a gravidade das suas crises – e, na prática, vão ser abertos os horizontes das revoluções proletárias que estavam a chegar.
Na altura dos processos de transição socialista, o recurso aos instrumentos duma planificação baseia-se numa ciência económica própria destes sistemas, adaptada ao seu funcionamento para a propriedade social, o papel dos mecanismos dos mercados, a organização institucional, etc. O ciclo é iniciado pelo objectivo de atingir a melhor satisfação possível das necessidades do conjunto da população. Já não é o poder de compra dos agentes que é determinante, mas a opção de satisfazer as necessidades sociais e o desenvolvimento. As actividades produtivas devem ser efectuadas com uma eficácia crescente, graças a este novo “cálculo económico”. Mobilizam-se termos bastante semelhantes aos utilizados no capitalismo (excedentes, custos…), mas o seu conteúdo é distinto dada a especificidade das relações em que se inserem. Os espaços ocupados pelo mercado estão condicionados pela predominância de critérios sociais e pelo objectivo de crescimento compatível com a solidariedade. A lógica que guia a reprodução alargada da economia já não é a do lucro e da exploração.
Que o marxismo é simultaneamente crítico da economia política e da economia política alternativa, é confirmado pela própria trajectória da ciência económica moderna. A corrente neoclássica, actualmente hegemónica, apanhou o hábito de se apresentar como a herdeira dos pensadores clássicos. Ora, as rupturas que foi obrigada a fazer, em relação a estes últimos, foram decisivas e necessárias, perante os desenvolvimentos marxistas, destruidores e criadores, simultaneamente: parentes tão próximos das reflexões clássicas, mas levando, pelos caminhos que Marx descobriu, à teoria da extorsão da mais-valia.
Estas rupturas, que os neoclássicos escondem, são visíveis a nível metodológico, teórico e conceptual. i) No método: com o individualismo metodológico desaparece do pensamento burguês toda a visão sócio-histórica do capitalismo, bloqueando as análises em termos de classes sociais e de tendências a longo prazo. ii) No plano teórico: dada a fixação sobre a utilidade, que abandona a realidade social dum conjunto de homines œconomici , quebra-se a ponte entre a teoria do valor e a da exploração e, ao mesmo tempo, uma certa ligação da economia com a política. iii) Nos conceitos: dada a substituição de um equilíbrio a curto-prazo por ajustamento dos preços por um equilíbrio a longo-prazo por ajustamento das quantidades, fica condenada a compreensão dos ciclos, e sobretudo das crises.
Actualmente, estas rupturas (entre clássicos e neoclássicos) são apresentadas de modo falacioso pela corrente predominante, como continuidades que permitem transformar a correspondência ideológica entre “harmonia universal” das teorias (históricas, sociais) dos clássicos e “o equilíbrio óptimo” dos pseudo-teoremas (a-históricos, a-sociais) dos neoclássicos num contínuo puramente teórico. Ou como pô-los em comunhão uns com os outros – com excepção de Marx! – numa visão apologética unificada de um capitalismo considerado como o único concebível na teoria e no horizonte inultrapassável da história. Essa corrente predominante, em apoio das suas pretensões a ciência, a riqueza das suas “teorias novas”, quando a investigação que controla já não fornece, segundo a opinião de alguns dos seus eminentes representantes [5], o mínimo resultado inovador. [6] Daí advém uma disciplina económica fictícia “apolítica”, mas esmagada por uma corrente hegemónica dogmática que a faz pender para o que eu chamo uma “ciência(ficção) económica”. [7]
O marxismo a que me refiro aqui é um pensamento liberto do economismo e do determinismo em que muitos “ortodoxos” encerraram esta corrente depois de Marx. [8] Este último, sobretudo no final da sua vida, em investigações consagradas nomeadamente às formações sociais pré-capitalistas e comunitárias agrárias, insistiu na necessidade duma visão da história não linear, sobre análises inovadoras em que as relações de produção se interligassem noutras relações, a fim de engrossar o exame das formas de propriedade, de domínio e de exploração e, portanto também sobre a multiplicidade das vias possíveis de passagem ao socialismo.
Para aprofundar, algumas referências do autor:
HERRERA (R.), “Critique de l’économie ‘apolitique’ “, L’Homme et la Société, n° 135, p. 87-104, Paris, 2000.
— “Y a-t-il une ‘Pensée unique’ en économie politique?”, La Pensée, n° 325, p. 99-111, Paris, 2001.
— “The ‘New’ Development Economics: A Neoliberal Con?”, Monthly Review, vol. 58, n° 1, p. 38-50, New York, 2006.
— “The Hidden Face of Endogenous Growth Theory”, Review of Radical Political Economics, vol. 38, n° 2, p. 243-257, New York, 2006.
— “A Critique of Mainstream Growth Theory: Ways out of the Neoclassical Science(-Fiction) and Towards Marxism”, Research in Political Economy, vol. 27, n° 1, p. 3-64, New York, 2011.
— “Neoclassical Economic Fiction and Neoliberal Political Reality”, International Critical Thought, vol. 3, n° 1, p. 98-107, Londres, 2013.
— “A Marxist Interpretation of the Current Crisis”, World Review of Political Economy, vol. 5, n° 2, p. 128-148, Londres, 2014.
— Penser les crises, (dir.) (avec A. Casanova), Le Temps des Cerises, Paris, 2014.
Notas:
[1] SAY J.-B., Traité d’économie politique, Chapelet, Paris, 1803.
[2] WALRAS L., Œuvres économiques complètes, tome 8, Economica, Paris, 1988.
[3] MARX K. et ENGELS F., Études philosophiques, Éditions sociales, Paris, 1977.
[4] L’expression “économie politique” est arrivée avec le Traicté de l’œconomie politique (1615) de Montchestien.
[5] MALINVAUD E., “Pourquoi les économistes ne font pas de découvertes”, Revue d’économie politique, vol. 106, n° 6, p. 929-942, 1996.
[6] HERRERA R., La Maladie dégénérative de l’économie: le “néoclassicisme”, Delga, Paris, 2015.
[7] HERRERA R., “Dépenses publiques et croissance économique - Pour sortir de la science(-fiction) néoclassique”, L’Harmattan, Paris, 2010.
[8] HERRERA R., Friedrich Engels Karl Marx - Sur le colonialisme, Éditions critiques, Paris, 2018
*Investigador do CNRS (Centro de Economia da Sorbonne), remyherrera.com/index.php/fr/
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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