2018/12/05

A Crise da Venezuela Vista por Quem Lá Esteve

O Bloqueio que não passa na Televisão
(Bruno Amaral de Carvalho, Voz do Operário, 2018/12)

A Venezuela que se lê nos jornais não é a Venezuela que se encontra quando se aterra no Aeroporto Simón Bolívar, em Maiquetia. Este mês, cumprem-se 20 anos das eleições que elegeram Hugo Chávez presidente. O que leva a que sofra uma crise económica desta dimensão um país que conseguiu alcançar níveis elevados de acesso à educação, saúde, alimentação e cultura a toda a população? Só em duas décadas, foram entregues 2,4 milhões de apartamentos à população mais pobre. Nos bastidores daquilo que nos chega diariamente à televisão, há um povo que resiste ao cerco económico imposto pelos Estados Unidos e União Europeia.



São 16.25 em Caracas. No Quartel da Montanha, soam os canhões que disparam, pontualmente, todos os dias à hora em que morreu Hugo Chávez há quase cinco anos. É aqui que está o túmulo do ex-presidente venezuelano custodiado de forma permanente por quatro elementos hussardos da Guarda de Honra Presidencial que gritam “Chávez vive, la patria sigue!” invariavelmente sempre que há mudança de turno. Foi a partir deste edifício, donde se pode ver toda a cidade, que, em 1992, Hugo Chávez dirigiu uma insurreição militar com a intenção de depor o governo neoliberal de Carlos Andrés Pérez, responsável pela morte de milhares de venezuelanos durante uma explosão social três anos antes.

O objectivo não foi alcançado mas seis anos depois o povo venezuelano acabaria por dar-lhe, através das urnas, aquilo que não conseguiu pelas armas, sob a promessa de encetar um processo de profundas transformações sociais e políticas num país afogado em pobreza, apesar de ter as maiores reservas de petróleo do mundo.

Os programas sociais, baptizados de missões, transformaram a vida de milhões.

Foi o caso de Carmen Goitia. Trabalha como guia no Quartel da Montanha e é primeiro cabo da Milícia Bolivariana, um corpo oficial que integra cerca de meio milhão de civis preparados militarmente para defender a soberania e independência da Venezuela de qualquer agressão externa. “Este país não é o que diz a ultra-direita”, explica à A Voz do Operário.

“Orgulho-me de ter conseguido licenciar-me através das missões Ribas e Sucre. Hoje, sou licenciada em educação graças ao nosso comandante”. Primeiro, esteve na missão Ribas, programa educativo que beneficiou milhões de adultos das camadas pobres da população que sabiam ler e escrever mas que não haviam conseguido acabar o ensino básico e secundário.

Depois, na missão Sucre, acedeu ao ensino superior onde se formou em educação. Com o processo bolivariano, a Venezuela erradicou o analfabetismo em cinco anos. Mais de 1,8 milhões de pessoas aprenderam a ler e a escrever e, ao contrário de países como Portugal, passou a garantir o acesso às universidades de forma gratuita.

Cozinhar um povo em lume brando

Entre murais chavistas e o verde das montanhas, talvez Caracas seja a mais bonita das cidades feias. Com cerca de três milhões de habitantes, imponentes edifícios espelham o período de bonança petrolífera nos anos 50. A cidade, localizada num vale, está dividida. No lado oriental, vive a classe alta, no lado ocidental, estão as camadas populares.

Também ao redor, nas encostas da cordilheira que separa Caracas do mar, estendem-se importantes favelas. São o coração do chavismo.

Carlos Casanueva, chileno que fez parte da Frente Patriótica Manuel Rodriguez, braço armado do Partido Comunista durante a luta contra a ditadura de Augusto Pinochet, diz que é a “trincheira latino-americana da resistência” ao poder dos Estados Unidos.

Ao contrário do que espelha a maioria dos órgãos de comunicação social em Portugal, o dia-a-dia capital caribenha transcorre com normalidade. O tempo de espera no metropolitano, principal meio de transporte, é metade daquele a que se está habituado em Lisboa.

Distante de um país em que se diz haver uma crise humanitária, os principais serviços públicos e o comércio estão abertos. Há jornais e canais de televisão da oposição. Nas ruas, vê-se propaganda de partidos contrários ao governo.

Durante a estadia d’A Voz do Operário na Venezuela, a imprensa portuguesa noticia que não há gasolina nas estações de serviço e que a maioria dos semáforos em Caracas não funcionam. Nenhuma das informações se revelou verdadeira. Apesar de tudo, há, de facto, uma crise económica com razões internas e externas com consequências graves em alguns setores como o da saúde, como explica Carlos Casanueva.

As difíceis circunstâncias que vive a Venezuela hoje são muito parecidas com aquelas que viveu o Chile durante o último ano da presidência de Salvador Allende antes do golpe fascista. “A estratégia do imperialismo é semelhante. Asfixiar este povo em lume brando e vergá-lo para que veja como inevitável a mudança no poder. Aqui há uma guerra económica”, alerta.

Entre as razões para as graves falhas no acesso a determinados produtos no mercado, Eduardo Samán, ex-ministro do Comércio de Hugo Chávez, descreve à A Voz do Operário que, historicamente, a economia venezuelana viveu sempre dependente da indústria do petróleo.

Nos anos 80, com os tratados de livre comércio entre os países latino-americanos e os Estados Unidos, a pouca indústria importante existente no país foi praticamente desmantelada pelas políticas de direita. “Hoje, mais de 90% das divisas estrangeiras que entram no país, sobretudo o dólar, devem-se ao petróleo.

Não vendemos mais nada”. Mas precisam de comprar tudo. Produtos básicos de higiene, medicamentos, materiais de construção, peças automóveis, produtos de higiene, entre outros, vêm de fora e, com a queda para mais de metade do preço internacional do barril de petróleo, caiu também brutalmente a entrada de divisas na Venezuela, dificultando a importação de produtos.

Samán reconhece que uma das maiores derrotas do processo revolucionário encetado por Hugo Chávez foi não ter conseguido inverter esse caminho e diversificar a economia para diminuir a dependência externa.

Ao mesmo tempo, Carlos Casanueva denuncia que boa parte dos comerciantes, entre os quais muitos portugueses donos de padarias e supermercados, alinhados com a oposição, trataram de aproveitar a situação para especular com os preços dos produtos escondendo parte deles para agravar a escassez e aumentar ainda mais a inflação. Inspirado pela resistência do governo de Salvador Allende à guerra económica desatada pela oposição alinhada com Washington, Nicolás Maduro anunciou em 2016 a criação dos Comités Locais de Abastecimento e Produção (CLAP). No Chile, explica Casanueva, vivia-se uma situação económica igualmente marcada pelo açambarcamento e escassez de alimentos, sabotagem dos sistemas de distribuição e transporte de mercadorias e o caos geral no abastecimento, acompanhados de uma campanha de ódio contra o governo pela imprensa de então, que provocavam mal-estar na população. Foi então que o presidente chileno anunciou as Juntas de Abastecimento e Controlo de Preços (JAP). Na Venezuela, as populações organizam-se em conselhos comunais e elegem os responsáveis pelos CLAP.

Quinzenalmente, todas as famílias têm acesso a cabazes com produtos básicos. Mas às vias alternativas de superar a guerra económica, os Estados Unidos e a União Europeia têm anunciado sanções que dificultam cada vez mais a compra de produtos no estrangeiro.

O libanês Ghazi Nasr Al-Din, um dos mais importantes empresários na área da distribuição, acusa Washington de impor um embargo económico à Venezuela impedindo o país de importar e de fazer transações bancárias.

“Tenho muitos problemas com bancos no exterior. Raramente conseguimos que aceitem transferências para fazer pagamentos. É muito difícil”, confessa à A Voz do Operário.

O pão ao serviço da comunidade Um quarteirão abaixo do palácio presidencial de Miraflores, na padaria La Minka vários jovens cozem pão enquanto outros o vendem à população. Até 15 de março do ano passado, a padaria chamava-se Mansión Bakery e estava nas mãos de portugueses. Farta dos abusos nos preços, a comunidade decidiu tomar a padaria e pô-la ao serviço de todos.

Durante várias semanas, a esquina foi cenário de batalha entre apoiantes da expropriação e a oposição, onde se incluíam os antigos proprietários, mas a vitória foi da população que alterou o modelo produtivo e comercial do estabelecimento.

À A Voz do Operário, um dos responsáveis, José Solorzano explicou as razões. “No pior período da guerra económica, as principais transnacionais, encabeçadas pela companhia mexicana Gruma que domina o mercado do milho e do trigo na América Latina, aliaram-se às padarias privadas para sabotar o abastecimento de pão. A farinha de trigo era em parte subsidiada pelo Estado que começou a exigir controlo nos preços e as padarias começaram a esconder o pão e a especular cada vez mais.

Esta gente comprava farinha a preços regulados e vendia-a a preços absurdos. Então, decidimos juntamente com os instrumentos de fiscalização do governo revolucionário fechar esta padaria e passá-la para as mãos do povo”. O jovem conta que há mais de ano e meio que gerem a padaria, agora de propriedade social, e que o pão deixou de ser uma mercadoria e passou a ser um alimento para organizar a população e dar alimento.

“A maioria do pão é vendida aos CLAP para distribuição sem haver um intermediário”, conta.

O pouco dinheiro recebido serve para financiar atividades sociais, culturais, recreativas e formativas no bairro de Altagracia. “O excedente económico já não vai para os bolsos de um privado mas serve antes para investir socialmente na comunidade com planos de férias para crianças, oficinas de trabalho, formação e actividades artísticas”, descreve Solorzano.

A batalha das fraldas e do papel higiénico

A Kimberly-Clark é um gigante mundial dos produtos de higiene. Detém, entre muitas marcas, algumas conhecidas de todos como os lenços Kleenex, o papel higiénico e guardanapos Scottex e as fraldas Huggies.

Em 2016, anunciou que abandonaria a sua fábrica em Maracay, importante cidade a uma hora e meia de Caracas, deixando cerca de mil operários sem emprego. A pedido dos trabalhadores, Nicolás Maduro anunciou que o governo tomaria as instalações para fazer frente à guerra económica e nomeou José Gregório Hernández para a administração da nova empresa que agora se chama Cacique Maracay.

Enquanto A Voz do Operário espera pela entrevista com o administrador-geral, um dos recepcionistas, com uma deficiência na fala, explica que na Venezuela há uma lei que protege as pessoas com deficiência e que se garante o direito ao trabalho destes cidadãos.

O administrador revela que não foi apenas o modelo produtivo que mudou mas também o modelo de gestão: “Os trabalhadores e o Estado assumiram a condução da empresa e já estamos há dois anos e meio sem que a produção tenha parado.

A Cacique Maracay é a fornecedora do povo. É ele que trabalha aqui, é ele que distribui e é ele que usufrui. Eu não sou o patrão, sou mais um trabalhador. Temos o papel da responsabilidade da administração, que é colectiva, mas aqui não há a relação trabalhador-patrão.

Todo o excedente económico é investido na empresa e nos seus trabalhadores”. José Gregório Hernández sabe que trabalha num sector sensível e que os produtos que esta empresa fornece são os que causam “muita irritação” quando não estão disponíveis. Sobretudo as fraldas.

“Uma mãe que não as consiga comprar fica revoltada. É a reacção que estas transnacionais queriam. Esperavam promover uma explosão social”.

Apesar do êxito do novo modelo de produção, sabe que as barreiras são muitas.

“Temos dois bloqueios. O bloqueio financeiro do imperialismo e o bloqueio da matéria prima.

A Kimberly-Clark tem 149 empresas e tenta impedir-nos de continuar a produção. Temos de procurar outras empresas e isso aumenta-nos os custos”.

E dá um exemplo: “Tentámos comprar uma máquina no Brasil há três meses. Uma rebobinadora que nos permitiria exportar bobinas semi-elaboradas para as Caraíbas. E não a pudemos trazer porque não a pudemos pagar. Ou seja, todos os bancos intermediários que tentámos usar congelaram-nos as contas e tivemos de tirar de lá o dinheiro. É um problema grave. Eu estive em Cuba no período mais difícil do bloqueio e, agora, sinto que é como se estivesse lá outra vez como quando foram bloqueados por todos os lados. Não podemos adquirir tecnologia, nem matéria prima, nem medicamentos, nem comida. Querem asfixiar-nos. Temos dinheiro mas não conseguimos comprar. Tentam vender no mundo que temos uma crise humanitária. O que temos é uma crise do bloqueio.” Mas como tantos outros venezuelanos é peremptório: “Não nos vão conseguir vencer. Estamos aqui e estamos de pé”.

Publicado no jornal «A Voz do Operário», número 3060

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